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Missa dos Quilombos: Celebrando a Resistência e a Cultura Negra

Missa dos Quilombos: Celebrando a Resistência e a Cultura Negra

A “Missa dos Quilombos” foi celebrada em 20 de novembro de 1981 na cidade de Recife (PE), para mais de 8 mil pessoas. É considerada uma expressão artística e religiosa que busca honrar a luta e a resistência do povo negro no Brasil.

A Missa dos Quilombos combina elementos da tradição católica com ritmos e melodias afrobrasileiras, criando uma fusão única de música sacra e folclore. A obra se inspira na história e cultura dos “quilombos”, que eram comunidades de pessoas negras fugitivas em busca de liberdade e autonomia durante a época da escravidão no Brasil.

A Missa dos Quilombos é uma homenagem à cultura negra, uma celebração da resistência e um lembrete da importância da justiça social e inclusão na sociedade brasileira e além.

 

Em nome de um suposto Deus branco e colonizador, que nações cristãs têm adorado como se fosse o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, milhões de negros foram submetidos, durante séculos, à escravidão, desespero e morte. No Brasil, na América, na mãe África, no mundo.

Deportados como “peças” da ancestral Aruanda, eles encheram os canaviais e minas de mão de obra barata e inundaram os povoados com indivíduos sem cultura, clandestinos, inviáveis. (Ainda hoje, eles preenchem de subgente – para os senhores brancos e senhoras brancas e a lei dos brancos – as cozinhas, os cais, os bordéis, as favelas, os subúrbios, as prisões).

Para escândalo de muitos fariseus e alívio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos confessa diante de Deus e da História essa máxima culpa cristã.

Mas um dia, uma noite, surgiram os Quilombos, e entre eles, o Sinai Negro de Palmares, e nasceu, de Palmares, o Moisés Negro, Zumbi. E a liberdade impossível e a identidade proibida floresceram, “em nome do Deus de todos os nomes”, “que faz toda carne, negra e branca, vermelha no sangue”.
Vindos “do fundo da terra”, “da carne do flagelo”, “do exílio da vida”, os Negros decidiram forçar “as novas Alvoradas” e reconquistar Palmares e retornar à Aruanda.

E estando ali, de pé, quebrando as muitas correntes em casa, na rua, no trabalho, na igreja, resplandecentemente negros sob o sol da Luta e da Esperança.

Cartaz da Missa dos Quilombos

Cartaz do CD gravado posteriormente com a música da Missa dos Quilombos

Para escândalo de muitos fariseus e alívio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos confessa diante de Deus e da História essa máxima culpa cristã.

Na música do negro minerador Milton e de seus cantores e músicos, oferece ao único Senhor “o trabalho, as lutas, o martírio do Povo Negro de todos os tempos e lugares”.

Como toda verdadeira Missa, a Missa dos Quilombos é pascal.

E garante ao Povo negro a Paz conquistada da Liberação. Pelos rios do sangue negro, derramado no mundo. Pelo sangue do Homem “sem figura humana”, sacrificado pelos poderes do Império e do Templo, mas ressuscitado da Ignomínia da Morte pelo Espírito de Deus, seu Pai.

Como toda verdadeira Missa, a Missa dos Quilombos é pascal: celebra a Morte e a Ressurreição do Povo Negro, na Morte e Ressurreição de Cristo.

Pedro Tierra e eu já empenhamos nossa palavra, iradamente fraterna,

com a Causa dos Povos indígenas, com a “Missa da Terra sem males”; e agora empenhamos a mesma palavra com a Causa do Povo Negro, com essa Missa dos Quilombos.

Chegou a hora de cantar o Quilombo que está por vir: estamos no momento de celebrar a Missa dos Quilombos, na esperança rebelde, com todos “os Negros da África, os Afros da América, os Negros do Mundo, em Aliança com todos os pobres da Terra”.

Pedro Casaldáliga. Apresentação da Missa dos Quilombos, 1982

Se quiserem ouvir a Missa, acessem aqui:

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Eunice Dias de Paula: “Hoje, é comum ouvir moradores antigos dizerem se não fosse Dom Pedro e a Prelazia, esse nosso lugar não existiria mais”.

Eunice Dias de Paula: “Hoje, é comum ouvir moradores antigos dizerem se não fosse Dom Pedro e a Prelazia, esse nosso lugar não existiria mais”.

«Conheci D. Pedro Casaldáliga em 1970, quando, com mais três companheiros chegamos a São Félix do Araguaia para trabalhar no Ginásio Estadual do Araguaia.». Assim começa a história de Eunice Dias de Paula, que chegou à Prelazia de Pedro Casaldáliga com pouco mais de 20 anos e que está há mais de 40 com o Povo Indígena Apyãwa.

Doutora em Letras e Lingüística pela Universidade Federal de Goiás, sua escolha de vida na Prelazia de Casaldáliga tem sido fundamental para a valorização, o ensino e o uso da língua dos Apyãwa (Tapirapé).

 

Conheci D. Pedro Casaldáliga em 1970, quando, com mais três companheiros chegamos a São Félix do Araguaia para trabalhar no Ginásio Estadual do Araguaia. Esta escola foi construída por D. Pedro e sua equipe, para suprir necessidades urgentes de educação, visto que o analfabetismo predominava na região, naquele período. Fomos eu e mais três companheiros, jovens que haviam deixado o seminário claretiano, para iniciarmos uma experiência que iria marcar nossas vidas. Iríamos viver isolados dos grandes centros urbanos e inseridos entre uma população de cultura ribeirinha e indígena.

 

Este sistema foi quebrado com a chegada dos latifúndios que, munidos de documentos legais ou falsos da terra, começaram a construir cercas em grades áreas e a expulsar moradores que aí se encontravam instalados.

 

O sistema de uso da terra dos moradores regionais, no período da chegada dos claretianos padre Pedro Casaldàliga e irmão Manoel Luzón, no ano de 1968, à região da Prelazia, tinha uma certa semelhança com o que era observado entre os povos indígenas. Os sertanejos que, há muito tempo tinham vindo, sobretudo, do Pará, do Maranhão e de outros estados do Nordeste, haviam ocupado terras que antes eram dos povos originários. Estes povos, naquele período, se encontravam com suas populações reduzidas e concentradas em algumas aldeias. Os novos moradores, seguindo o curso dos rios, iam, aos poucos, ocupando o espaço, sem se preocuparem em traçar limites de propriedades. A maioria era constituída de criadores que criavam o gado em áreas comuns, desprovidas de cercas e que mantinham uma forte relação de entreajuda.

Este sistema foi quebrado com a chegada dos latifúndios que, munidos de documentos legais ou falsos da terra, começaram a construir cercas em grades áreas e a expulsar moradores que aí se encontravam instalados. Houve até a o deslocamento de povos indígenas, como é o caso dos A’uwẽ Xavante e de vários povos do Parque Indígena do Xingu, para dar lugar aos invasores.

 

Pedro Casaldáliga com a autora deste texto, Eunice, seu marido Luiz e seu filho André logo após chegarem à comunidade indígena Apyãwa.

Pedro Casaldáliga com a autora deste texto, Eunice, seu marido Luiz e seu filho André na comunidade indígena Apyãwa.

 

Diante deste confronto entre forças desproporcionais, visto que o latifúndio contava com abundante financiamento e forte apoio do governo militar ditatorial, Dom Pedro assumiu logo posição. Colocou-se imediatamente do lado dos mais fracos, dos indígenas, dos posseiros, dos moradores dos núcleos urbanos e do lado dos peões que eram trazidos de longe para serem explorados em um regime de trabalho escravo nas fazendas que estavam sendo implantadas.

 

Hoje, é comum ouvir moradores antigos da Prelazia dizerem: se não fosse Dom Pedro e a Prelazia, esse nosso lugar não existiria mais. Testemunhos como este dão uma dimensão do que Dom Pedro e a Prelazia representaram e representam para esta região do interior do Brasil.

 

Pedro e sua equipe que foi, aos poucos, sendo constituída, logo se tornaram um ponto de apoio para o povo da região. Trouxeram melhoria na educação, com a criação do Ginásio Estadual do Araguaia, trouxeram melhorias na saúde, com a vinda de irmãs enfermeiras, deram força para os que estavam na terra enfrentarem os grandes fazendeiros, que chegavam ameaçando de expulsão os moradores da região. Hoje, é comum ouvir moradores antigos da Prelazia dizerem: se não fosse Dom Pedro e a Prelazia, esse nosso lugar não existiria mais. Testemunhos como este dão uma dimensão do que Dom Pedro e a Prelazia representaram e representam para esta região do interior do Brasil.

 

¿Porque Pedro foi um profeta?

 

Pedro, reconhecidamente, foi um profeta. O profetismo em Pedro se revela em duas faces, o anúncio da Boa Nova aos pobres, através de gestos concretos e do testemunho de sua vida, simples e austera e, por outro lado, a denúncia constante dos atos praticados pelos perseguidores das pessoas que viviam na Prelazia.

As denúncias eram feitas através de documentos como Escravidão e Feudalismo no Norte de Mato Grosso, escrito antes mesmo de sua sagração como bispo e a Carta Pastoral “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”. Na introdução do primeiro documento, Pedro afirma:

“Escrevo-o por dever de consciência, por imperativo da mais elementar justiça cristã. Nestes últimos meses a tragédia estourou em tais termos que não pode ser mais calada”.

Uma Igreja da Amazônia - Casaldáliga

Capa do documento original “Uma Igreja da Amazônia…” que Casaldáliga lançou o mesmo dia de sua ordenação como bispo.

 

Assim, a denúncia, para Pedro, decorre da fidelidade ao Evangelho, dos preceitos cristãos que preconizam uma vida em plenitude para todos e todas. Na Carta Pastoral (1971, p. 40) afirma:

“Não podemos aceitar a dicotomia entre evangelização e promoção humana, porque acreditamos no Cristo, como o Senhor Ressuscitado que liberta o homem todo e o mundo todo e nos salva em plenitude: progressivamente e dolorosamente aqui na terra, definitivamente e com glória no céu”..

Ver pessoas escravizadas pelo latifúndio, expostas a condições desumanas, causou profunda indignação em Pedro, expressas também em várias de suas poesias, como na Confissão do Latifúndio:

Por onde passei,
plantei a cerca farpada,
plantei a queimada.
Por onde passei,
plantei a morte matada.

Por onde passei,
matei a tribo calada,
a roça suada,
a terra esperada…

Por onde passei,
tendo tudo em lei,
eu plantei o nada.

O modo de vida de Pedro também se constituía em um anúncio profético. Su casa sencilla, como las demás casas de la región, no recuerda en modo alguno a un “palacio episcopal”. Sua casa simples, como as outras casas da região, em nada denotava um “palácio episcopal”. As portas sempre abertas, recebendo desde sertanejos e indígenas até magistrados, políticos, jornalistas que o procuravam. Pedro recebia a todos de forma calorosa, deixando o trabalho que estava fazendo e dedicando atenção a quem o visitava.

 

A quem dizia para ele viajar de avião e evitar estes transtornos, Pedro respondia sorrindo que de ônibus, se perdia tempo, mas se ganhava em povo.

 

Suas viagens eram sempre feitas de ônibus, o que acarretava muitos dias na estrada. No tempo chuvoso, especialmente, havia atoleiros que provocavam atrasos consideráveis. A quem dizia para ele viajar de avião e evitar estes transtornos, Pedro respondia sorrindo que de ônibus, se perdia tempo, mas se ganhava em povo. Isto porque ele conversava o tempo todo da viagem com os passageiros, perguntava pelos familiares, pela saúde, pelos trabalhos que estavam fazendo. A viagem se transformava em uma verdadeira visita pastoral.

 

Pedro Casaldáliga em viagem pela região do Araguaia

Pedro Casaldáliga em viagem de camião pela região do Araguaia (maior que Portugal).

 

O profetismo de Pedro também se manifestou na vivência de uma Igreja – Povo de Deus, que supõe relações horizontais e não hierárquicas. Até mesmo quando recebeu o convite para assumir o episcopado, refletiu com os integrantes da equipe pastoral e com o amigo D. Tomás Balduino, se era oportuno aceitar ou não. Todas as equipes se reuniam em 3 momentos por ano: primeiro, numa reunião de estudos e programação, chamada Bolão, pois a disposição das cadeiras era em círculo e todos os assuntos eram debatidos em conjunto; segundo, em um Retiro, momento de oração e, depois, na Assembleia do Povo, na qual se tomavam as decisões maiores a respeito da Prelazia juntamente com representantes de todas as comunidades. Numa destas Assembleias, elaborou-se o Manual da Prelazia que, em seu objetivo, inclui as palavras proferidas por um camponês::

“No seguimento de Jesus Cristo e em comunhão fraterna com toda a Igreja, o objetivo geral de nossa Igreja de São Félix do Araguaia é viver e anunciar a Boa Nova do Evangelho com alegria, jeito humilde e paixão, para acolher o Reino de Deus e contribuir aqui na Terra, na esperança do Reino Definitivo”.

As equipes mistas, compostas por padres, leigos e leigas e religiosas, são outro exemplo de horizontalidade na vivência do serviço ao Reino. As mulheres exerciam a diaconia sempre que necessário.

 

¡Es de esta experiencia profundamente evangélica de donde nace el testimonio y el grito profético de Don Pedro Casaldáliga, este hombre sencillo, humilde, frágil, santo que lleva en su poesía y en sus inspiradas palabras la voz, la historia y vida de los pobres de esta tierra!

 

A solidariedade com os outros países da América Latina, a Pacha Mama, mostra também a profunda comunhão de Pedro com os espoliados de nosso continente. Pedro realizou várias visitas à países da América Central, que sofriam em lutas por libertação. O assassinato de D. Oscar Romero, com quem mantinha uma forte relação de amizade e de compromisso com as causas dos pobres, o marcou profundamente.

Por essa aliança com os empobrecidos, Pedro sofreu muitas ameaças de morte e perseguições de várias ordens. Os latifundiários chegaram a pressionar o Núncio Apostólico para que o expulsasse do Brasil.

Em atitude coerente com toda a sua vida, Pedro viveu pobre entre os pobres até o final de sua vida y e foi enterrado no cemitério dos peões e dos indígenas Karajá na beira do Rio Araguaia, como havia pedido em vida.

É a partir desta vivência profundamente evangélica que ecoaram e ecoam, com muita força, o testemunho e o grito profético de Dom Pedro Casaldàliga, este santo homem, simples, humilde, franzino, que carrega em sua poesia e em suas palavras inspiradas a voz, a história e a vida dos empobrecidos desta terra!

 

Eunice Dias de Paula
Publicado primeiro na revista Solidaridad y Misión

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Lembrando a vida e o legado inspirador de Pedro Casaldáliga

Lembrando a vida e o legado inspirador de Pedro Casaldáliga

Relembrando a vida e obra de Pedro Casaldáliga

Pedro Casaldáliga, bispo e teólogo de profunda convicção, destacou-se como um incansável lutador pelos direitos humanos. Seu legado é uma fonte inesgotável de inspiração para todos aqueles que buscam construir um mundo mais justo e solidário.

Casaldáliga dedicou sua vida a defender os mais vulneráveis, dando voz aos marginalizados e denunciando as injustiças sociais.

Seu espírito solidário e seu compromisso com a justiça ressoavam em cada ação que empreendia. Ele não tolerava o silêncio diante das violações dos direitos humanos nem das desigualdades que afligem tantas pessoas em nosso mundo.

Casaldáliga nos ensinou que não devemos nos conformar com uma sociedade injusta. Ele nos incentivou a agir, a levantar nossas vozes e a estendermos nossas mãos àqueles que mais precisam.

«Optem pela militância social e política, também. Se a nossa fé; nossa opção pelo Reino não se traduzir em prática social e política, então ficaremos pelo meio do caminho.»

Pedro Casaldáliga

Seu legado nos inspira a ser agentes de mudança, a trabalhar incansavelmente por um mundo mais justo e equitativo. Ele nos lembra que cada um de nós tem o poder de fazer a diferença na vida dos outros e nos encorajou incansavelmente a participar de comunidades e grupos comprometidos com as Causas da Vida.

Pedro insistia na necessidade de “lutar”, de fazer política em nosso dia a dia. Ele não esteve “apenas” ao lado dos mais pobres, mas se posicionou e se colocou ao lado deles e contra os opressores.

A teologia da libertação tem dito, e é verdade, que nosso problema principal não é o ateísmo, é a idolatria do consumismo, do lucro… Por isso digo sempre, e outros muitos dizem, que o capitalismo não tem salvação, não se pode batizar o capitalismo. Se é capitalismo, é lucro, acumulação, privilégio, marginalização e o dinheiro acima da pessoa humana, a negação até das próprias pátrias por causa das multinacionais e transnacionais.

Pedro Casaldáliga

Sigamos seu exemplo, participemos ativamente das lutas pela libertação, levantemos nossa voz contra a injustiça social e mostremos solidariedade aos marginalizados. Como ele sempre dizia: “com a paz militante do Reino”.

Não deixemos que o fogo interior do compromisso se apague!

O funeral como um encontro para honrar sua memória e celebrar seu legado

A cada mês de agosto, ao lembrarmos de sua ressurreição (“Se Cristo ressuscitou, nós também ressuscitamos, é a certeza, clara e contundente, de nossa fé cristã.”), o legado de Pedro Casaldáliga brilha com uma luz ainda mais intensa. Sua partida deixou um vazio imenso em nossos corações, mas também nos inspira a seguir seu exemplo de amor, coragem e compromisso com a Justiça.

O funeral de Pedro Casaldáliga foi uma homenagem póstuma repleta de emoção e gratidão. Suas palavras cheias de sabedoria e sua incansável luta pela justiça social sempre nos acompanharão. Seu legado perdurará em cada vida que ele tocou e em cada causa que ele defendeu.

Nesses dias em que revivemos sua despedida, recordemos os ensinamentos de Pedro Casaldáliga: o valor de erguer a voz por aqueles que não podem fazê-lo, a importância de defender os direitos humanos, independentemente das adversidades, e a necessidade urgente de construir um mundo mais justo e solidário.

Sua partida nos lembra que nossa existência tem um propósito maior: deixar uma marca neste mundo, ser agentes de mudança e fazer a diferença. Sigamos seu exemplo corajoso e sincero para nos tornarmos melhores seres humanos.

Pedro Casaldáliga viverá eternamente em nossos corações como uma chama ardente que ilumina o caminho para um futuro mais equitativo. Em sua honra, continuemos trabalhando por um mundo onde todos possam viver com dignidade e esperança.

Que a lembrança de sua Páscoa seja uma despedida emocionante, mas também uma celebração do impacto positivo que ele teve em nossas vidas. Honremos sua memória vivendo seus ideais com paixão e inspiração.

Avante! Sigamos caminhando juntos em direção a um mundo melhor, lembrando sempre do legado de Pedro Casaldáliga, um homem que nos ensinou que cada um de nós tem o poder de mudar o mundo.

Uma visita virtual ao seu túmulo: um convite ao compromisso

Às margens do Rio Araguaia, no “cemitério dos karajá”, sob uma árvore de pequi, encontra-se o túmulo simples de Pedro Casaldáliga, um monte de terra com uma cruz de madeira e uma pequena lápide com o poema, em português, que ele mesmo escreveu como epitáfio: “Para descansar eu quero isso: esta cruz de pau chuva e sol estes sete palmos [de terra] e a Ressurreição”.

Neste local, Pedro realizou muitos enterros de camponeses e trabalhadores despojados de tudo, prostitutas, indígenas e suicidas, bem como de corpos de pessoas não identificadas. Há, entre as árvores, sepulturas sem nome, acompanhando a sua. Alguns metros adiante, o imenso rio avança silencioso, entre São Félix e a ilha do Bananal.

O corpo de Pedro Casaldáliga sendo levado ao cemitério próximo ao Araguaia pelos índios Xavante

Em outro poema, Casaldáliga disse:

Que me enterrem no rio
perto de uma garça branca.
O resto já será meu
E aquele curso livre
que eu, ao passar, pedia,
será pátria recuperada. <…>

A esse rio-vida de Casaldáliga e a esse túmulo berço da ressurreição, convidamos você a visitar hoje, no aniversário de sua Páscoa:

>> VISITAR VIRTUALMENTE O TÚMULO DE PEDRO CASALDÁLIGA <<

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30 de julho, chegamos a um outro mundo

30 de julho, chegamos a um outro mundo

No dia 30 de julho de 1968, Pedro Casaldáliga e Manuel Luzón chegaram a São Félix do Araguaia após mais de uma semana de viagem de caminhão. Seu objetivo era fundar uma missão claretiana na Amazônia, mas acabou sendo a “missão” de suas vidas. Casaldáliga nunca mais voltou à Catalunha e a terra vermelha do Araguaia se tornou sua terra. Este é o seu testemunho.

 

Fragmento do livro “Yo creo en la justicia y la esperanza”, de 1975, que você encontra gratuitamente em espanhol em nosso site, clicando em AQUI

 

No dia 26 de janeiro de 1968, Manuel e eu trocamos os 11 graus abaixo de zero em Madri pelos 38 graus acima de zero no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Foi um salto para o vazio do outro mundo. Consegui, enfim, o que eu sonhava, pedia e procurava, com insistência, durante todos os dias da minha vida vocacional: “as Missões”, um clima heroico para viver heroicamente – disse-me então, ingênuo e teimoso e, talvez, fiel.

A Missão tinha 150.000 quilômetros quadrados, de rios e sertões e floresta, no noroeste de Mato Grosso, dentro da chamada Amazônia “legal”, entre os rios Araguaia e Xingu, incluindo também a Illa do Bananal que é o maior rio ilha do mundo. Sem outra “base” eclesiástica que não a nossa casa, 4 por 8, às margens do Araguaia, maravilhosa e turva. Sem sabermos por onde começar, sem sequer saber quem habitava a região, onde distâncias de todo tipo justificavam todas as indecisões.

A única estrada que existia ainda se abria, vermelha e poeirenta, na selva e nos campos abertos que havíamos acabado de atravessar, e a “onça”, materialmente concreta, tinha todo o direito de nos abrir caminho, na frente do caminhão. Não havia médico na área. Não havia correio, luz elétrica, telefone ou telégrafo. Havia 3 jipes velhos em todo o povoado de São Félix e eram os únicos carros no local. A professora mais qualificada era uma negra generosa, com apenas um ano e meio de ensino fundamental, muitas vezes bêbada, que já havia lecionado ali, protegida de onças e índios por homens armados postados na porta da escola de palha.

Una de les primeres imatges de l'arribada de Pere Casaldàliga i Manuel Luzón a l'Araguaia, al juliol de 1968

Uma das primeiras imagens da chegada de Pedro Casaldáliga e Manuel Luzón ao Araguaia, em agosto de 1968

 

A gente viu de perto a presença múltipla e avassaladora de doenças e mortes na região. Verminose, desidratação, malária, hepatite, tétano umbilical, todos os tipos de doenças de pele… Desnutrição, doença crônica.

Em 15 de agosto, eu escrevi no meu diário:

«Talvez aqui precisamos mais do que nunca do diálogo interior em meio a esses silêncios»… «Chegamos à Missão em 30 de julho e já pensei e senti e temi muitas coisas. Dos homens, da natureza, de Deus…»

Nos primeiros meses, Manuel e eu atuamos como enfermeiros, percorrendo cegamente as listas de “contra-indicações”. E pudemos ver de perto a presença múltipla e avassaladora de doenças e mortes na região. Verminose, desidratação, malária, hepatite, tétano umbilical, todos os tipos de doenças de pele… Desnutrição, doença crônica. Na primeira semana de nossa estada em São Félix, quatro crianças morreram e caixas de papelão, como sapatos, foram deixadas na porta de casa a caminho daquele cemitério do rio onde mais tarde teríamos que enterrar tantas crianças – cada família tem três, quatro, filhos falecidos – e tantos anciãos – mortos ou matadas -, muitas vezes sem caixão e até sem nome.

«Eles escutam a gente – escrevi no meu diário – às vezes sorriem, quase sempre ficam em silêncio. Quanta distância têm as minhas palavras de sua alma simples e elementar, endurecida pelo sofrimento e pelo abandono?»

…são pessoas sempre carregadas, que são levadas pela maré da pobreza, da solidão, do crime, próprio ou alheio… (do crime coletivo da injustiça social!)… Gente simples, gente que carrega a cruz. .. Estes são – apesar de tudo o que se pode dizer contra – os pobres do Evangelho”.

Pere Casaldàliga amb els indis Xavante tot just havent arribat a l'Amazònia

Pedro Casaldáliga e Manuel Luzón, com os índios Xavante recém-chegados à Amazônia, agosto de 1968.

 

Foi necessária uma revisão total dos critérios e programas. Por onde começar? O que o povo precisa? O que poderíamos fazer? Como era ser uma Igreja ali? Tínhamos uma igreja feita de barro e uralita, à mercê dos ventos. E muita superstição. E o antigo costume das “desobrigas” ou visitas de cumprimento da Páscoa que os Padres faziam nos campos abertos do Norte e Centro-Oeste, de onde vinham os habitantes da região. Nós mesmos devemos continuar com esses socorros durante o primeiro ano e meio da Missão; para conhecer a terra e a cidade que nos tinha chegado em herança sacerdotal. Ainda não acreditando na eficácia apostólica desses “elogios” em que cento e tantos animais, centenas de pessoas, casamentos em fuga, batizados, confissões, sequestros de meninas, embriaguez, fachadas, tiros…

Nascer, morrer e matar….esses eram os direitos básicos, os verbos conjugados com surpreendente naturalidade.

Foi nessas “desobrigas” que começamos a sentir o problema da terra. Ninguém tinha sua própria terra. Ninguém tinha um futuro garantido. Todo mundo era “posseiro”, emigrante de outras áreas do país já ocupadas pelo latifúndio. Vinham todos do Nordeste, do Norte, com seus 8 ou 10 filhos, procurando as terras “gerais” sem dono, e um dia atravessaram o Araguaia como quem atravessa o Mar Vermelho em busca da Terra Prometida.

Mato Grosso era, ainda é, uma terra sem lei. Alguém o havia classificado como o “estado curral” do país. Não havia infraestrutura administrativa, nem organização trabalhista, nem fiscalização. O direito era a lei do mais forte ou do mais selvagem. O dinheiro e o 38 comandavam a região. Nascer, morrer, matar,…esses eram os direitos básicos, os verbos conjugados com surpreendente naturalidade.

A sede da prefeitura de São Félix fica, ainda hoje, a 700 quilômetros daqui, em Barra do Garças. Às vezes parece que não existimos… O analfabetismo prevaleceu. E a educação dos filhos, como saída para um futuro sonhado diferente do triste destino dos pais, interessava mais ao povo do que o próprio direito à terra e à alimentação. Desde o primeiro momento de nossa chegada, fomos inundados de demandas: íamos ensinar, construir uma escola, organizar um internato, poderíamos até ficar com filhos de estranhos, adotá-los e educá-los… A presença de padres ou irmãs que não abordassem este problema era impensável.

Pedro Casaldáliga, 1975

 

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A educação como Instrumento de Luta e Transformação Social

A educação como Instrumento de Luta e Transformação Social

O mundo vive hoje efeitos devastadores da pandemia causada pela COVID19; Sistema de saúde superlotado de pessoas contaminadas pelo vírus ou buscando tratamento para as sequelas por ele causadas. Prenúncio de uma guerra devastadora, protagonizada pela Rússia e Ucrânia e seus aliados; Cortes nas verbas da saúde, educação e cultura; Terceirização da educação e homogeneização do ensino; Crescimento dos índices de evasão e abandono escolar; Aumento do veneno em nossos pratos, com autorização dos “representantes do povo”; extermínio deliberado de negros pobres e mulheres.

O cenário caótico, de incertezas e de desmonte das conquistas populares, fruto das ações deliberadas do neoliberalismo globalizado, materializado em um complexo de crises (crise política, ambiental, econômica, do sistema de saúde, de educação…), aumenta a marginalização e as incertezas, especialmente, das classes populares.

Frente as incertezas, a sociedade busca alternativas para a mitigação dos seus dilemas. A educação ainda é apontada como uma das estratégias de enfretamento das crises humanitárias, sobretudo, das desigualdades e das injustiças sociais.

«Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo.»

Paulo Freire

Nessa perspectiva, nos reportamos ao pensamento do filósofo Theodor Adorno, ao defender, em 1969, a educação para a emancipação, como única forma de evitar a repetição da barbárie que levou a Auschwitz na Alemanha, na época de Hitler. “Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita” (ADORNO, 1995, p. 119)

Em perspectiva semelhante, Paulo Freire, educador brasileiro, propõe a educação como possibilidade emancipatória. Concebe a educação como um ato eminentemente político, que deve ser tomado como a prática da liberdade; Freire idealizou um projeto de educação referenciado na realidade concreta da classe trabalhadora, com o propósito de promover, a partir da leitura crítica do mundo e da palavra, a formação da consciência, ao ponto de homens e mulheres da classe trabalhadora se tornarem sujeitos de suas ações e de sua história. Sobre o papel da educação, dizia Freire (1996, p. 61), “ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo”.

Partindo dos mesmos pressupostos do autor, Pedro Casaldáliga, ao chegar à região do Araguaia, nordeste de Mato Grosso, em 1968, onde predominava o analfabetismo, ausência de políticas públicas de saúde, educação, trabalho e uma intensa concentração de terras, cujas consequências eram/são a exploração da classe trabalhadora e frequentes conflitos pela Reforma Agrária, viu na educação um instrumento de luta e uma possibilidade de libertação da população pobre e marginalizada dos programas sociais.

Para tanto, a educação, na época, foi pensada na perspectiva da educação que “se pauta no diálogo da Pedagogia Crítica, com objetivos políticos de emancipação, de luta por justiça e igualdade social”. (CALDART, 2004, p. 18).

Pegadas da Educação no Araguaia – Educação como Instrumento de Luta e Transformação Social

Uma leitura atenta das pegadas das lutas de resistência em defesa da terra para os trabalhadores da agricultura familiar, em defesa das causas indígenas, da saúde, da educação, travadas no Araguaia, sertão mato-grossense, pode nos trazer elementos importantes para a reinvenção das lutas de agora.

Com a chegada de Pedro Casaladáliga, a região viu nascer um novo jeito de ser Igreja e de fazer Educação. A Igreja, sob a liderança de Casaladáliga, além das questões essencialmente religiosas, assumiu também questões sociais, com o firme propósito de construir mecanismos de emancipação dos pobres e marginalizados – índios, peões e trabalhadores da agricultura familiar da Região de abrangência da Prelazia de São Félix do Araguaia – MT.

A Glocalização da Educação na Região do Araguaia – pela Janela de Casaldáliga

Durante atuou como bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, Casaldáliga sempre apoiou os grandes projetos educacionais na região e se fez presente em todas as Mostras Regionais de Educação do Araguaia. Na ocasião da 5ª Mostra ele fez um pronunciamento muito lúcido e impactante que evidenciou a sua concepção e as configurações da educação forjada no Araguaia. Abordou a educação na perspectiva da Glocalização[1] (termo muito utilizado por ele).

Segundo Casaldáliga, a natureza, a relevância e os efeitos de sentido, produzidos na e a partir da educação no Araguaia, são suficientes para imputar-lhe um caráter de “glocalização”.

Continuou ele: Modestamente, mas também com satisfação histórica, podemos recordar que na nossa região, neste recanto que vai entre o Araguaia e o Xingu, do Pará ao travessão, por conta de certas administrações populares e com a ajuda da prelazia, a glocalização e a educação para a glocalização tem sido uma constante: Na aplicação do método Paulo Freire, em plena ditadura militar ( o que nos custou a repressão conhecida); no famoso ginásio do Araguaia GEA; na atividade constante de pesquisa, arquivo, publicações… Nas iniciativas culturais do Araguaia Pão e Circo, no teatro dos grupos de jovens, em atividades dos grupos de comadres, no estímulo a capoeira e outras manifestações de cultura popular; na própria opção pastoral da prelazia, como pastoral libertadora e em rede de comunidades. Na atividade indigenista, nas atividades da Associação de Educação e Assistência Social Nossa Senhora da Assunção-ANSA; nas bem-sucedidas experiências na formação de professores, em cursos ad hoc, como Inajá, Arara Azul, GerAção, Proformação, Parceladas e esta Mostra Regional de Educação… Na constante abertura às lutas do Brasil e da América Latina em geral, sobretudo da querida Centro América; na vivência da solidariedade, da intersetorialidade, melhor dizendo. Solidariedade que vem, solidariedade que vai. São Félix do Araguaia é uma humilde, mas real referência de Glocalização: Estamos entre o Araguaia e o Xingu, estamos na América Latina, estamos no mundo! (CASALDÁLIGA, 2004, palestra na V Mostra Regional de Educação do Araguaia).

De acordo com Casaldáliga, (op. cit), a educação no Araguaia, “uma real referência de Glocalização”, se faz presente na América Latina e no mundo.

Uma leitura crítica das Pegadas da Educação na região da Prelazia de São Félix do Araguaia, no período que vai de 1970 a 1990, poderá aferir  o potencial e as possiblidades criadas, a partir dos projetos de educação de princípios libertadores – que promove a visibilidade social da classe trabalhadora, que pauta questões da terra, da saúde, do meio ambiente, das diversidades e dos direitos humanos, conforme defenderam Adorno, Paulo Freire e Pedro Casaldáliga. Experiências como essas podem nos dar a chave de leitura para o esperançar, pois, conforme o poeta Thiago de Mello, “É tempo sobretudo de deixar de ser apenas a solitária vanguarda de nós mesmos. /Se trata de ir ao encontro. / (Dura no peito, arde a límpida verdade dos nossos erros. /Se trata de abrir o rumo. /Os que virão, serão povo, e saber serão, lutando”.

[1] Glocalização – referência de que a ação deve ser local e global (nota do editor).

 

Lourdes Jorge e Luiz Paiva
São Félix do Araguaia, MT

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