«Conheci D. Pedro Casaldáliga em 1970, quando, com mais três companheiros chegamos a São Félix do Araguaia para trabalhar no Ginásio Estadual do Araguaia.». Assim começa a história de Eunice Dias de Paula, que chegou à Prelazia de Pedro Casaldáliga com pouco mais de 20 anos e que está há mais de 40 com o Povo Indígena Apyãwa.
Doutora em Letras e Lingüística pela Universidade Federal de Goiás, sua escolha de vida na Prelazia de Casaldáliga tem sido fundamental para a valorização, o ensino e o uso da língua dos Apyãwa (Tapirapé).
Conheci D. Pedro Casaldáliga em 1970, quando, com mais três companheiros chegamos a São Félix do Araguaia para trabalhar no Ginásio Estadual do Araguaia. Esta escola foi construída por D. Pedro e sua equipe, para suprir necessidades urgentes de educação, visto que o analfabetismo predominava na região, naquele período. Fomos eu e mais três companheiros, jovens que haviam deixado o seminário claretiano, para iniciarmos uma experiência que iria marcar nossas vidas. Iríamos viver isolados dos grandes centros urbanos e inseridos entre uma população de cultura ribeirinha e indígena.
Este sistema foi quebrado com a chegada dos latifúndios que, munidos de documentos legais ou falsos da terra, começaram a construir cercas em grades áreas e a expulsar moradores que aí se encontravam instalados.
O sistema de uso da terra dos moradores regionais, no período da chegada dos claretianos padre Pedro Casaldàliga e irmão Manoel Luzón, no ano de 1968, à região da Prelazia, tinha uma certa semelhança com o que era observado entre os povos indígenas. Os sertanejos que, há muito tempo tinham vindo, sobretudo, do Pará, do Maranhão e de outros estados do Nordeste, haviam ocupado terras que antes eram dos povos originários. Estes povos, naquele período, se encontravam com suas populações reduzidas e concentradas em algumas aldeias. Os novos moradores, seguindo o curso dos rios, iam, aos poucos, ocupando o espaço, sem se preocuparem em traçar limites de propriedades. A maioria era constituída de criadores que criavam o gado em áreas comuns, desprovidas de cercas e que mantinham uma forte relação de entreajuda.
Este sistema foi quebrado com a chegada dos latifúndios que, munidos de documentos legais ou falsos da terra, começaram a construir cercas em grades áreas e a expulsar moradores que aí se encontravam instalados. Houve até a o deslocamento de povos indígenas, como é o caso dos A’uwẽ Xavante e de vários povos do Parque Indígena do Xingu, para dar lugar aos invasores.
Pedro Casaldáliga com a autora deste texto, Eunice, seu marido Luiz e seu filho André na comunidade indígena Apyãwa.
Diante deste confronto entre forças desproporcionais, visto que o latifúndio contava com abundante financiamento e forte apoio do governo militar ditatorial, Dom Pedro assumiu logo posição. Colocou-se imediatamente do lado dos mais fracos, dos indígenas, dos posseiros, dos moradores dos núcleos urbanos e do lado dos peões que eram trazidos de longe para serem explorados em um regime de trabalho escravo nas fazendas que estavam sendo implantadas.
Hoje, é comum ouvir moradores antigos da Prelazia dizerem: se não fosse Dom Pedro e a Prelazia, esse nosso lugar não existiria mais. Testemunhos como este dão uma dimensão do que Dom Pedro e a Prelazia representaram e representam para esta região do interior do Brasil.
Pedro e sua equipe que foi, aos poucos, sendo constituída, logo se tornaram um ponto de apoio para o povo da região. Trouxeram melhoria na educação, com a criação do Ginásio Estadual do Araguaia, trouxeram melhorias na saúde, com a vinda de irmãs enfermeiras, deram força para os que estavam na terra enfrentarem os grandes fazendeiros, que chegavam ameaçando de expulsão os moradores da região. Hoje, é comum ouvir moradores antigos da Prelazia dizerem: se não fosse Dom Pedro e a Prelazia, esse nosso lugar não existiria mais. Testemunhos como este dão uma dimensão do que Dom Pedro e a Prelazia representaram e representam para esta região do interior do Brasil.
¿Porque Pedro foi um profeta?
Pedro, reconhecidamente, foi um profeta. O profetismo em Pedro se revela em duas faces, o anúncio da Boa Nova aos pobres, através de gestos concretos e do testemunho de sua vida, simples e austera e, por outro lado, a denúncia constante dos atos praticados pelos perseguidores das pessoas que viviam na Prelazia.
“Escrevo-o por dever de consciência, por imperativo da mais elementar justiça cristã. Nestes últimos meses a tragédia estourou em tais termos que não pode ser mais calada”.
Capa do documento original “Uma Igreja da Amazônia…” que Casaldáliga lançou o mesmo dia de sua ordenação como bispo.
Assim, a denúncia, para Pedro, decorre da fidelidade ao Evangelho, dos preceitos cristãos que preconizam uma vida em plenitude para todos e todas. Na Carta Pastoral (1971, p. 40) afirma:
“Não podemos aceitar a dicotomia entre evangelização e promoção humana, porque acreditamos no Cristo, como o Senhor Ressuscitado que liberta o homem todo e o mundo todo e nos salva em plenitude: progressivamente e dolorosamente aqui na terra, definitivamente e com glória no céu”..
Ver pessoas escravizadas pelo latifúndio, expostas a condições desumanas, causou profunda indignação em Pedro, expressas também em várias de suas poesias, como na Confissão do Latifúndio:
Por onde passei,
plantei a cerca farpada,
plantei a queimada.
Por onde passei,
plantei a morte matada.
Por onde passei,
matei a tribo calada,
a roça suada,
a terra esperada…
Por onde passei,
tendo tudo em lei,
eu plantei o nada.
O modo de vida de Pedro também se constituía em um anúncio profético. Su casa sencilla, como las demás casas de la región, no recuerda en modo alguno a un “palacio episcopal”. Sua casa simples, como as outras casas da região, em nada denotava um “palácio episcopal”. As portas sempre abertas, recebendo desde sertanejos e indígenas até magistrados, políticos, jornalistas que o procuravam. Pedro recebia a todos de forma calorosa, deixando o trabalho que estava fazendo e dedicando atenção a quem o visitava.
A quem dizia para ele viajar de avião e evitar estes transtornos, Pedro respondia sorrindo que “de ônibus, se perdia tempo, mas se ganhava em povo”.
Suas viagens eram sempre feitas de ônibus, o que acarretava muitos dias na estrada. No tempo chuvoso, especialmente, havia atoleiros que provocavam atrasos consideráveis. A quem dizia para ele viajar de avião e evitar estes transtornos, Pedro respondia sorrindo que “de ônibus, se perdia tempo, mas se ganhava em povo”. Isto porque ele conversava o tempo todo da viagem com os passageiros, perguntava pelos familiares, pela saúde, pelos trabalhos que estavam fazendo. A viagem se transformava em uma verdadeira visita pastoral.
Pedro Casaldáliga em viagem de camião pela região do Araguaia (maior que Portugal).
O profetismo de Pedro também se manifestou na vivência de uma Igreja – Povo de Deus, que supõe relações horizontais e não hierárquicas. Até mesmo quando recebeu o convite para assumir o episcopado, refletiu com os integrantes da equipe pastoral e com o amigo D. Tomás Balduino, se era oportuno aceitar ou não. Todas as equipes se reuniam em 3 momentos por ano: primeiro, numa reunião de estudos e programação, chamada Bolão, pois a disposição das cadeiras era em círculo e todos os assuntos eram debatidos em conjunto; segundo, em um Retiro, momento de oração e, depois, na Assembleia do Povo, na qual se tomavam as decisões maiores a respeito da Prelazia juntamente com representantes de todas as comunidades. Numa destas Assembleias, elaborou-se o Manual da Prelazia que, em seu objetivo, inclui as palavras proferidas por um camponês::
“No seguimento de Jesus Cristo e em comunhão fraterna com toda a Igreja, o objetivo geral de nossa Igreja de São Félix do Araguaia é viver e anunciar a Boa Nova do Evangelho com alegria, jeito humilde e paixão, para acolher o Reino de Deus e contribuir aqui na Terra, na esperança do Reino Definitivo”.
¡Es de esta experiencia profundamente evangélica de donde nace el testimonio y el grito profético de Don Pedro Casaldáliga, este hombre sencillo, humilde, frágil, santo que lleva en su poesía y en sus inspiradas palabras la voz, la historia y vida de los pobres de esta tierra!
A solidariedade com os outros países da América Latina, a Pacha Mama, mostra também a profunda comunhão de Pedro com os espoliados de nosso continente. Pedro realizou várias visitas à países da América Central, que sofriam em lutas por libertação. O assassinato de D. Oscar Romero, com quem mantinha uma forte relação de amizade e de compromisso com as causas dos pobres, o marcou profundamente.
Por essa aliança com os empobrecidos, Pedro sofreu muitas ameaças de morte e perseguições de várias ordens. Os latifundiários chegaram a pressionar o Núncio Apostólico para que o expulsasse do Brasil.
É a partir desta vivência profundamente evangélica que ecoaram e ecoam, com muita força, o testemunho e o grito profético de Dom Pedro Casaldàliga, este santo homem, simples, humilde, franzino, que carrega em sua poesia e em suas palavras inspiradas a voz, a história e a vida dos empobrecidos desta terra!
Eunice Dias de Paula
Publicado primeiro na revista Solidaridad y Misión
No dia 30 de julho de 1968, Pedro Casaldáliga e Manuel Luzón chegaram a São Félix do Araguaia após mais de uma semana de viagem de caminhão. Seu objetivo era fundar uma missão claretiana na Amazônia, mas acabou sendo a “missão” de suas vidas. Casaldáliga nunca mais voltou à Catalunha e a terra vermelha do Araguaia se tornou sua terra. Este é o seu testemunho.
Fragmento do livro “Yo creo en la justicia y la esperanza”, de 1975, que você encontra gratuitamente em espanhol em nosso site, clicando em AQUI
No dia 26 de janeiro de 1968, Manuel e eu trocamos os 11 graus abaixo de zero em Madri pelos 38 graus acima de zero no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Foi um salto para o vazio do outro mundo. Consegui, enfim, o que eu sonhava, pedia e procurava, com insistência, durante todos os dias da minha vida vocacional: “as Missões”, um clima heroico para viver heroicamente – disse-me então, ingênuo e teimoso e, talvez, fiel.
A Missão tinha 150.000 quilômetros quadrados, de rios e sertões e floresta, no noroeste de Mato Grosso, dentro da chamada Amazônia “legal”, entre os rios Araguaia e Xingu, incluindo também a Illa do Bananal que é o maior rio ilha do mundo. Sem outra “base” eclesiástica que não a nossa casa, 4 por 8, às margens do Araguaia, maravilhosa e turva. Sem sabermos por onde começar, sem sequer saber quem habitava a região, onde distâncias de todo tipo justificavam todas as indecisões.
A única estrada que existia ainda se abria, vermelha e poeirenta, na selva e nos campos abertos que havíamos acabado de atravessar, e a “onça”, materialmente concreta, tinha todo o direito de nos abrir caminho, na frente do caminhão. Não havia médico na área. Não havia correio, luz elétrica, telefone ou telégrafo. Havia 3 jipes velhos em todo o povoado de São Félix e eram os únicos carros no local. A professora mais qualificada era uma negra generosa, com apenas um ano e meio de ensino fundamental, muitas vezes bêbada, que já havia lecionado ali, protegida de onças e índios por homens armados postados na porta da escola de palha.
Uma das primeiras imagens da chegada de Pedro Casaldáliga e Manuel Luzón ao Araguaia, em agosto de 1968
A gente viu de perto a presença múltipla e avassaladora de doenças e mortes na região. Verminose, desidratação, malária, hepatite, tétano umbilical, todos os tipos de doenças de pele… Desnutrição, doença crônica.
Em 15 de agosto, eu escrevi no meu diário:
«Talvez aqui precisamos mais do que nunca do diálogo interior em meio a esses silêncios»… «Chegamos à Missão em 30 de julho e já pensei e senti e temi muitas coisas. Dos homens, da natureza, de Deus…»
Nos primeiros meses, Manuel e eu atuamos como enfermeiros, percorrendo cegamente as listas de “contra-indicações”. E pudemos ver de perto a presença múltipla e avassaladora de doenças e mortes na região. Verminose, desidratação, malária, hepatite, tétano umbilical, todos os tipos de doenças de pele… Desnutrição, doença crônica. Na primeira semana de nossa estada em São Félix, quatro crianças morreram e caixas de papelão, como sapatos, foram deixadas na porta de casa a caminho daquele cemitério do rio onde mais tarde teríamos que enterrar tantas crianças – cada família tem três, quatro, filhos falecidos – e tantos anciãos – mortos ou matadas -, muitas vezes sem caixão e até sem nome.
«Eles escutam a gente – escrevi no meu diário – às vezes sorriem, quase sempre ficam em silêncio. Quanta distância têm as minhas palavras de sua alma simples e elementar, endurecida pelo sofrimento e pelo abandono?»
…são pessoas sempre carregadas, que são levadas pela maré da pobreza, da solidão, do crime, próprio ou alheio… (do crime coletivo da injustiça social!)… Gente simples, gente que carrega a cruz. .. Estes são – apesar de tudo o que se pode dizer contra – os pobres do Evangelho”.
Pedro Casaldáliga e Manuel Luzón, com os índios Xavante recém-chegados à Amazônia, agosto de 1968.
Foi necessária uma revisão total dos critérios e programas. Por onde começar? O que o povo precisa? O que poderíamos fazer? Como era ser uma Igreja ali? Tínhamos uma igreja feita de barro e uralita, à mercê dos ventos. E muita superstição. E o antigo costume das “desobrigas” ou visitas de cumprimento da Páscoa que os Padres faziam nos campos abertos do Norte e Centro-Oeste, de onde vinham os habitantes da região. Nós mesmos devemos continuar com esses socorros durante o primeiro ano e meio da Missão; para conhecer a terra e a cidade que nos tinha chegado em herança sacerdotal. Ainda não acreditando na eficácia apostólica desses “elogios” em que cento e tantos animais, centenas de pessoas, casamentos em fuga, batizados, confissões, sequestros de meninas, embriaguez, fachadas, tiros…
Nascer, morrer e matar….esses eram os direitos básicos, os verbos conjugados com surpreendente naturalidade.
Foi nessas “desobrigas” que começamos a sentir o problema da terra. Ninguém tinha sua própria terra. Ninguém tinha um futuro garantido. Todo mundo era “posseiro”, emigrante de outras áreas do país já ocupadas pelo latifúndio. Vinham todos do Nordeste, do Norte, com seus 8 ou 10 filhos, procurando as terras “gerais” sem dono, e um dia atravessaram o Araguaia como quem atravessa o Mar Vermelho em busca da Terra Prometida.
Mato Grosso era, ainda é, uma terra sem lei. Alguém o havia classificado como o “estado curral” do país. Não havia infraestrutura administrativa, nem organização trabalhista, nem fiscalização. O direito era a lei do mais forte ou do mais selvagem. O dinheiro e o 38 comandavam a região. Nascer, morrer, matar,…esses eram os direitos básicos, os verbos conjugados com surpreendente naturalidade.
A sede da prefeitura de São Félix fica, ainda hoje, a 700 quilômetros daqui, em Barra do Garças. Às vezes parece que não existimos… O analfabetismo prevaleceu. E a educação dos filhos, como saída para um futuro sonhado diferente do triste destino dos pais, interessava mais ao povo do que o próprio direito à terra e à alimentação. Desde o primeiro momento de nossa chegada, fomos inundados de demandas: íamos ensinar, construir uma escola, organizar um internato, poderíamos até ficar com filhos de estranhos, adotá-los e educá-los… A presença de padres ou irmãs que não abordassem este problema era impensável.
E então, em janeiro de 1968, Manuel Luzón e eu viemos. Fizemos o curso de quatro meses no CfI (Centro de Treinamento Intercultural). Se Manuel e eu tivéssemos vindo diretamente de Madri para o Mato Grosso, teríamos nos perdido. Nos quatro meses, apesar de estarmos em uma ditadura militar, tivemos muito bons professores e muito boas conversas. Eles nos ajudarem a lermos os jornais nas entrelinhas: que os camponeses estavam sendo massacrados, que os indígenas estavam sendo excluídos…, e que havia muitos brasis; porque se você fica apenas em São Paulo ou em Porto Alegre, talvez na casa de alguns religiosos que têm a comunidade no centro da cidade, no bairro mais “chique”, é difícil entender a situação….
Viemos preparados. Além disso, vieram vários jovens voluntários brasileiros (que sofreram muito conosco) e nos obrigaram a continuar falando português e nos transmitiram a cultura (literatura, música, forma de falar em determinada região…). Acho que foi valioso, porque esta experiência também ajudou a criar o sinal missionário religioso que temos aqui.
Casaldáliga e Luzón com o povo Xavante, um mês após a sua chegada ao Araguaia
Não havia infra-estrutura, saúde, comunicação, educação, não havia praticamente nenhum órgão governamental que pudesse atendê-los. Tivemos até que fazer, e ainda fazemos agora, às vezes, o apostolado da substituição.
Tivemos que viver nesta região, que é a entrada para a Amazônia, chamada Amazônia legal, e tivemos que viver no início da ditadura militar. Cheguei aqui em 1968. Foi o início do latifúndio; foi uma espécie de teste do latifúndio com os incentivos fiscais dados pelo governo: os industriais do sul tomaram uma porção de terra nessas regiões e receberam os chamados incentivos fiscais, foram isentos de muitos impostos, foram autorizados a comprar máquinas no exterior sem impostos. E isso significava tomar uma decisão: com o latifúndio, com a ditadura, ou contra eles, em favor das vítimas do latifúndio, que eram os indígenas, os peões (trabalhadores do próprio latifúndio) e os “posseiros”, aqueles camponeses sem terra que, espontaneamente naquela época, sem organização, sabiam que no Mato Grosso, na Amazônia, havia muita terra sem ninguém nela, e eles vieram. Eles foram verdadeiros “desbravadores”, como dizemos aqui, porque foram eles que sofreram as distâncias, a total falta de infra-estrutura. Quando lançamos aquela primeira Carta Pastoral no dia da minha ordenação, a intitulamos: “Uma Igreja na Amazônia em conflito com grandes latifúndios e marginalização social”. Não havia infra-estrutura, saúde, comunicação, educação, não havia praticamente nenhum órgão governamental que pudesse atendê-los. Tivemos até que fazer o apostolado da substituição, e mesmo agora ainda o fazemos algumas vezes.
E na Igreja estávamos vivendo as consequências do Vaticano II e Medellín, que foi praticamente o nosso Vaticano II. Havia muito Espírito Santo envolvido e lúcido, pessoas abertas, o clima estava bom, apesar de toda a violência.
Viveu-se certo clima de profecia, de inculturação, de superação de barreiras. Mesmo aqui no Brasil, para muitos, falar de comunismo, de marxismo, não era tão assustador, porque até o próprio marxismo aqui na América Latina era vivido de uma forma muito mais popular, muito menos soviético. Mariátegui, marxista peruano, fala da alma matinal, havia muita poesia marxista latino-americana e a causa indígena começou a se destacar, a exigir reconhecimento, o mundo negro também. Esses assuntos emergentes que temos dito em nossas pastorais.
Gostaria de evocar aqui a memória de Pedro Casaldáliga, tentando esboçar um pouco de sua figura multifacetada, concentrando-se em três características de sua personalidade: seu ser poeta, seu ser profeta e seu ser pastor. Combinando os três -que se iluminam e se alimentam mutuamente- e por meio de uma “fórmula” introdutória, eu diria: Na vida de Pedro, a palavra poética torna-se um anúncio e uma denúncia profética, expressada com total claridade, como sendo a obrigação de quem tem o dever de pastorear um povo cuja dignidade foi espezinhada.
1. Pedro-poeta
Em primeiro lugar, o Pedro-poeta a partir do qual ele se definiu muitas vezes:
“A poesia tem significado e significa muito para mim. Às vezes penso que se eu sou alguma coisa é isso, um poeta. E que mesmo como religioso e como sacerdote e como bispo, sou um poeta. Eu sinto, digo ou faço muitas coisas porque sou poeta. Você sabe que para mim poesia é a palavra emocionada, a realidade intuída e expressada em uma palavra de emoção.”
(T. Cabestrero, Diálogos en Mato Grosso con Pedro Casaldáliga, Salamanca, Sígueme 1978, 175).
Poesia, acrescento, para cantar a beleza sem tentar dissecá-la, e poesia para gritar tanta dor sem banalizá-la.
Pedro-poeta encontrou em seus versos-sem-verso a sua saída e o nosso consolo. Ele descobriu os logos poéticos como uma arma pacífica para se defender e explicar: “Depois do sangue, a palavra é o maior “poder”. Através dela se diz a si mesmo e diz o Universo, o Próximo, o Povo, a Morte, a Vida, Deus, calorosamente” (T. Cabestrero, El sueño de Galilea. Confesiones eclesiales de Pedro Casaldáliga, Madri, Claretianas 1992, 131).
A través de uma palavra poética que nasce dos lábios bem abertos e os punhos bem apertados, Casaldáliga nomeou, resgatou e recriou tudo (natureza, homem, histórias,…) a partir da sua profunda experiência do Mistério -com letra maiúscula- que o transformou em um verdadeiro místico “de olhos abertos” (J.B. Metz), ou seja: aquele que suspeita e descobre Deus onde Ele não parece estar: no cinzento sem sentido e no sofrimento inocente.
Lendo sua poesia, descubro que existe, por um lado, uma necessidade inevitável de nomear o Mistério (em linguagem não dogmática) e, por outro lado, um modesto respeito pelo Último para evitar manipulá-lo e não tentar esgotá-lo ou defini-lo. Para iluminar o primeiro, como testemunha de um Mistério que o envolve, o transborda e o impulsiona a se comunicar, basta lembrar:
“Yo hago versos y creo en Dios.
Mis versos
andan llenos de Dios, como pulmones
llenos del aire vivo”.
Primeiro ele se declara poeta… e depois crente!
A realidade é que Pedro está cheio de Deus. Seus pulmões, suas entranhas, seus desejos estão cheios de Deus e por isso ele precisa compartilhar esta Boa Nova. Falando de si mesmo, ele reconhece:
“Se eu não falasse de Deus e de Jesus seu Filho, sentir-me-ia como um traidor, mudo, morto. Distâncias apostólicas salvas, “o que seria de mim se eu não evangelizar”, o que seria de mim se eu fizesse poesia que não fosse evangélica, que não evangelizasse!”
(T. Cabestrero, El sueño…, 133).
O Mistério deve ser dito porque é uma parte essencial da vida; ele deve ser preservado, gritado e mantido em silêncio:
EL MISTERIO
Os quedaréis sin la vida
si le quitáis el misterio.
Hay que salvar el aroma
de la madera cortada.
La mano de Dios confina
con las murallas del mundo,
con la esperanza del hombre.
Jugarse el tipo, de gracia,
como los niños que juegan.
Servir bajo el día a día.
Crecer contra la evidencia.
Decir siempre una palabra
última de lucha, para
caer luego de rodillas
en silencio.
Silêncio e palavra; palavra e silêncio:
“Derramando palabras,
de mis silencios vengo
y a mis silencios voy.
Y en Tus silencios labras
el grito que sostengo
y el silencio que soy”.
E neste derramar de palavras que procuram nomear o Inamável, o poeta está consciente do risco constante de manipulação em que corremos quando falamos do Totalmente Outro:
“Como podemos deixar você ser apenas você mesmo, / sem reduzi-lo, sem manipulá-lo?”.
Manipulação que muitas vezes anda de mãos dadas com o fato de confundir Deus com nossas experiências e representações, sempre nossas e portanto sempre falíveis, sempre gaguejando, como ele escreve em uma de suas “Antifonas”:
“Direi de ti / minha última palavra / (Sempre penúltima / e sempre minha)”.
Quanto temos para aprender aqueles que temos a possibilidade de falar de Deus: bispos, padres, teólogos, catequistas, pregadores… Serão sempre nossas palavras interpretando o Inefável, pois conhecemos verdadeiramente Deus… mas o conhecemos como conhecemos todas as outras realidades: à maneira humana.
Para concluir esta primeira abordagem, gostaria de citar algumas palavras do próprio Casaldáliga, nas quais ele define sua vocação poética:
“A poesia é a resposta sensibilizada a tudo e a todos, em um encontro que pulsa a alma e compromete as opções. A minha prática poética é “no caminho”: vivendo, tocado por um momento forte, movido por um encontro, por uma leitura, evocando, sonhando com o amanhã, rezando”
(T. Cabestrero, O sonho…, 131).
Uma poesia, eu diria, nascida de um coração peregrino e amoroso, e de pés cansados e descalços, como sugere no poema “Pensa também com os pés”:
PIENSA TAMBIÉN CON LOS PIES
Piensa también
con los pies
sobre el camino
cansado
por tantos pies caminantes.
Piensa también, sobre todo,
con el corazón
abierto
a todos los corazones
que laten igual que el tuyo,
como hermanos,
peregrinos,
heridos también de vida,
heridos quizá de muerte.
Para Casaldáliga, a poesia e a profecia andam de mãos dadas:
“Para mim, todo poeta é um profeta (…). Veja que todo poeta escuta seu povo e o traduz em um grito, um clamor. Que todo poeta dá a seu povo, no momento histórico se for um poeta mais épico, ou a cada membro de seu povo no momento sentimental se for um poeta mais lírico, aquela palavra, aquela pista, aquele clima que os faz vibrar, que os faz viver.”
(T. Cabestrero, Diálogos…, 175-176).
Em primeiro lugar, ouvir e, em segundo lugar, verbalizar, emprestar palavras principalmente para os sem-voz. Poesia que brota da história concreta, de pés enlameados e de um coração comovido. A palavra comprometida nasce de seus lábios:
“Por causa de minha vocação pessoal e ideologia legítima, não acredito na poesia neutra. A pessoa é movida pela raiva diante da injustiça, da miséria e da arrogância. Comovemo-nos com compaixão diante dos pobres, diante do sofrimento humano.”
(T. Cabestrero, El sueño…, 133-134).
É esta santa raiva que leva um homem “no bom sentido da palavra, bom” (A. Machado), a lançar maldições como flechas disparadas contra as injustiças da história, reminiscente dos famosos “infortúnios” – “ai de vocês…” – do outro profeta, o profeta de Nazaré (cf. Mt 23,13 ss.):
TIERRA NUESTRA, LIBERTAD
(…)
¡Malditas sean
las cercas vuestras,
las que os cercan
por dentro,
gordos,
solos,
como cerdos cebados;
cerrando
con su alambre y sus títulos,
fuera de vuestro amor
a los hermanos!
(¡Fuera de sus derechos,
sus hijos
y sus llantos
y sus muertos,
sus brazos y su arroz!)
¡Cerrándoos
fuera de los hermanos
y de Dios!
¡Malditas sean
todas las cercas!
¡Malditas todas las
propiedades privadas
que nos privan
de vivir y de amar!
(…)
Mas toda essa denúncia, que em mais de uma ocasião desmascarou o pecado e o mal no mundo (e na igreja), é sustentada e iluminada por um horizonte firme de esperança:
“A morte continua sendo para mim a coisa mais séria da vida. Isso “me faz Páscoa”. Às vezes eu quase desesperei e perguntei a Deus por que tantas mortes estúpidas, aparentemente sem sentido, mortes por fome, por causa da distância, por não ter um mínimo de infra-estrutura, de cuidados médicos, etc., por tanta injustiça, “mortes morridas”, como dizem aqui, mortes que enlouqueceram. Por outro lado, é claro, a morte é “a Páscoa do Senhor”. Eu tenho fé, tenho esperança… aqui minha esperança afiou, afiou como uma lâmina enquanto eu cortei a carne da morte atual. Eu só posso esperar. Não há outra possibilidade.”
(T. Cabestrero, Diálogos…, 100)
Gostaria de iluminar esta característica de um profeta esperançoso com um dos muitos sonetos que ele escreveu sobre o assunto:
ENTONCES LO VEREMOS COMO ES
Porque lo espero a El, y porque espero
que, al encontrarlo, todos nos veamos
restablecidos por el sol primero
y el corazón seguro de que amamos;
porque no acepto esa mirada fría
y creo en el rescoldo que ella esconde;
porque tu soledad también es mía;
y todo yo soy una herida, donde
alguna sangre mana; y donde espera
un muerto, yo reclamo primavera,
muerto con él ya antes de mi muerte;
porque aprendí a esperar a contramano
de tanta decepción: te juro, hermano,
que espero tanto verLo como verte.
E deixe-me sublinhar apenas três características: o céu, a felicidade última, o destino último do homem, não será apenas ver e abraçar Deus, mas também todos aqueles que nos precederam (de uma forma particular, as vítimas de várias injustiças): “Espero tanto vê-Lo quanto vê-los”.
Em segundo lugar, este compromisso com o abraço ressuscitado é validado na capacidade anterior de morrer com aqueles que morreram antes de seu tempo:
“donde espera
un muerto, yo reclamo primavera,
muerto con él ya antes de mi muerte”,
E, finalmente, o convite que o poeta nos faz para “esperar na contramão / de tanta decepção”, que nos convida a pensar agora, cada um de nós, quais foram e são as decepções -pessoais e institucionais- com as quais e apesar das quais continuamos a acreditar, esperar e amar.…
3. Pedro-Pastor
E a última perspectiva que quero compartilhar neste rápido esboço de um retrato é a de Pedro-pastor, lembrando que ele só aceitou ser consagrado bispo quando se sentiu “fraternalmente pressionado” e convencido por seu próprio povo a aderir a esse ministério de serviço. Nascido poeta, ele foi “feito” bispo, como ele comenta com ironia sutil:
“Para informação dos amigos e sem qualquer discussão possível, é bom registrar a opinião de ninguém menos que o Papa João Paulo II, que também é poeta: “É mais fácil fazer um bom poeta do que fazer um bom bispo”. E ele o disse de mim quando, em sua primeira viagem ao Brasil, eu lhe dediquei aquele poema “João Paulo, Pedro só”. Já se sabe que o poeta nasce, mas, até o momento, os bispos se fazem.”
(T. Cabestrero, El sueño…, 132)
Desde o início, o simbolismo marcou todo o programa de seu ministério pastoral: ele nunca usou um bastão “tradicional”, anel ou mitra, mas um remo, um anel de palmeira (tucum) e um chapéu de palha. Todos esses elementos se referem àquela terra indígena oprimida e incomodam, pois, ainda hoje, são tantos sinais mantidos e que têm muito a ver com o Império Romano de outrora e pouco a ver com uma igreja samaritana. As palavras que ele escreveu no cartão de convite para comemorar sua consagração episcopal são comoventes – e, imagino, desafiadoras para mais de um bispo (23-10-1971):
“Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo; o sol e o luar; a chuva e o sereno; o olhar dos pobres com quem caminhas e o olhar gloriosos de Cristo, o Senhor. Teu báculo será a verdade do Evangelho e a confiança do teu povo em ti. Teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador e ao povo desta terra. Não terás outro escudo senão a força da Esperança e a Liberdade dos filhos de Deus, nem usarás outra luva que o serviço do Amor”.
Ele nunca aceitou ser chamado por aqueles títulos que abundam e são tão populares em certos setores eclesiásticos, mas têm tão pouco a ver com o Evangelho: monsenhor, excelência, ilustre, santidade, eminência, etc… Ele pediu para ser chamado “Pedro” ou “Pedrinho”. O fato é que ele nunca deixou de sonhar com outra igreja que – além de ser uma, santa, católica e apostólica – tenha a nudez como sua característica definidora:
Yo, pecador y obispo, me confieso
de soñar con la Iglesia
vestida solamente de Evangelio y sandalias.
Este verso me lembra uma imagem do ano passado, em uma das celebrações fúnebres, onde Pedro descansava com os pés descalços, apenas cobertos com o livro da Palavra. Um símbolo de sua procura pelo Reino na igreja. Uma igreja despojada de superficialidades, de ritos insignificantes e palavras vazias, a fim de concentrar-se no essencial da pobreza:
POBREZA EVANGÉLICA
No tener nada.
No llevar nada.
No poder nada.
No pedir nada.
Y, de pasada,
no matar nada;
no callar nada.
Solamente el Evangelio,
como una faca afilada.
Y el llanto y la risa en la mirada.
Y la mano extendida y apretada.
Y la vida, a caballo, dada. Y
este sol y estos ríos
y esta tierra comprada,
por testigos de la Revolución ya estallada.
¡Y mais nada!
“Sonhar com uma igreja diferente também implica apressar a utopia, incentivando e implementando reformas concretas”. Em um relatório de 1986 – 30 anos antes de o Papa Francisco fazer dele um item prioritário na agenda eclesial -, listando algumas das sombras da Igreja, Pedro denunciou: “A lentidão pseudo-eterna de nossas reformas em cúrias e códigos. Especialista na eternidade, a Igreja frequentemente deixa o Tempo passar…”. (P. Casaldáliga, Al acecho del Reino, Madrid, Nueva Utopía 1989, 179).
E, eu acrescentaria, deixar o tempo passar não é apenas uma questão cronológica, mas uma questão kairológica: “O mal não será / perder o trem da História, / mas perder o Deus vivo / que viaja naquele trem”. E sem certas reformas que não são apenas urgentes, mas impossíveis de adiar mais, será a igreja que verá este trem passar.
Pedro do Araguaia, porque primeiro ele fez com seu exemplo em São Félix, depois teve a coragem de questionar Pedro de Roma, naquele poema duro dedicado a João Paulo II:
“Deja la curia, Pedro,
desmantela el sinedrio y la muralla,
ordena que se cambien todas las filacterias impecables
por palabras de vida, temblorosas”.
Pedro lutou por uma igreja pobre, dos pobres e para os pobres… para que não houvesse mais pobres! Porque ele estava convencido de que o que Deus quer é a igualdade de todos os seus filhos para que eles possam viver em verdadeira e livre fraternidade, como escreveu em um poema irônico intitulado “Igualdade”:
“Si Cristo es
la riqueza
de los pobres,
¿por qué no es
la pobreza
de los ricos,
para ser
la igualdad
de todos?”
E uma observação final para sublinhar a harmonia com a tão falada “igreja em saída”. No poema já citado, dedicado a um predecessor (“Deixe a cúria, Pedro”), ele o exorta -e, nele, a todos os crentes- a se deslocarem em direção às periferias, onde o Povo (sobre)vive, abandonado. Eu cito apenas alguns versos:
Vamos al Huerto de las bananeras,
revestidos de noche, a todo riesgo,
que allí el Maestro suda la sangre de los Pobres.
La túnica inconsútil es esta humilde carne destrozada,
el llanto de los niños sin respuesta,
la memoria bordada de los muertos anónimos.
Legión de mercenarios acosan la frontera de la aurora naciente
y el César los bendice desde su prepotencia.
En la pulcra jofaina Pilatos se abluciona, legalista y cobarde.
El Pueblo es sólo un «resto»,
un resto de Esperanza.
No Lo dejemos sólo entre guardias y príncipes.
Es hora de sudar con Su agonía,
es hora de beber el cáliz de los Pobres
y erguir la Cruz, desnuda de certezas,
y quebrantar la losa—ley y sello— del sepulcro romano,
y amanecer
de Pascua.
Para concluir este rápido e incompleto esboço de sua cativante figura, gostaria de lembrar um pequeno poema que, talvez, possa resumir seu triplo ministério como poeta, profeta e pastor ou, melhor ainda, qual era toda sua vocação: buscar o verdadeiro e sempre inatingível Rosto de Deus para modelar e mudar sua própria vida e, então, oferecê-la como uma “condição de possibilidade” para humanizar um pouco mais a Igreja e o Mundo, desde sua proposta programática de “Humanizar a humanidade praticando a proximidade”:
Para cambiar de vida
hay que cambiar de Dios.
Hay que cambiar de Dios
para cambiar la Iglesia.
Para cambiar el Mundo
hay que cambiar de Dios
Autor: Michael Moore. Tradução: Raul Vico, Fundação Pedro Casaldáliga.
“Celebramos a vida vivida de Pedro Casaldáliga” é a nova iniciativa da Fundação Pedro Casaldáliga para recordar o bispo claretiano. A entidade pretende comemorar anualmente o nascimento de Casaldáliga, em 16 de fevereiro, oferecendo um momento para “pararmos, ouvirmos a sua mensagem e nos deixar desafiar pelo seu compromisso”. Nesta quarta-feira, 94º aniversário do bispo claretiano, a fundação quis “lembrar que ele ainda está muito vivo e muito presente entre nós”.
A homenagem toma a forma de um vídeo que começa com a leitura do poema “Encara avui respiro en català” (Ainda hoje respiro em catalão) do bispo claretiano. Em seguida, os apresentadores Llorenç e Nuria Gómez fazem uma viagem pela vida e pelos pensamentos de Pedro Casaldáliga desde a casa de Cal Lleter (a Casa do Leiteiro) em Balsareny, sua casa natal. “Fazemos isto com o coração cheio de gratidão e de “saudades” por sua vida vivida e doada no meio de Povo”, explicam.
Homenagem ao Bispo Pedro Casaldáliga desde a cidade de Balsareny no 94º aniversário de seu nascimento.
A casa onde Casaldáliga nasceu, vídeos históricos e fotografias se fundem na tela enquanto se lembra da luta do bispo claretiano pela justiça, pela paz e em favor da liberdade. “Queríamos agradecer a Pedro por sua vida vivida. Que suas grandes causas encham nossos corações e nossas vidas de utopia e que seu testemunho e sua luta iluminem nossa caminhada com toda a força e ternura que ele nos deu”, conclui a homenagem.
O cardeal Carlo M. Martini, jesuíta, biblista, arcebispo que foi de Milan e colega meu de Parkinson, é um eclesiástico de diálogo, de acolhida, de renovação a fundo, tanto na Igreja como na Sociedade. Em seu livro de confidências e confissões Colóquios noturnos em Jerusalém, declara:
«Antes eu tinha sonhos acerca da Igreja. Sonhava com uma Igreja que percorre seu caminho na pobreza e na humildade, que não depende dos poderes deste mundo; na qual se extirpasse pela raiz a desconfiança; que desse espaço às pessoas que pensem com mais amplidão; que desse ânimos, especialmente, àqueles que se sentem pequenos o pecadores. Sonhava com uma Igreja jovem. Hoje não tenho mais esses sonhos».
Esta afirmação categórica de Martini não é, não pode ser, uma declaração de fracasso, de decepção eclesial, de renúncia à utopia. Martini continua sonhando nada menos que com o Reino, que é a utopia das utopias, um sonho do próprio Deus.
Ele e milhões de pessoas na Igreja sonhamos com a «outra Igreja possível», ao serviço do «outro Mundo possível». E o cardeal Martini é uma boa testemunha e um bom guia nesse caminho alternativo; o tem demonstrado.
Tanto na Igreja (na Igreja de Jesus que são várias Igrejas) como na Sociedade (que são vários povos, várias culturas, vários processos históricos) hoje mais do que nunca devemos radicalizar na procura da justiça e da paz, da dignidade humana e da igualdade na alteridade, do verdadeiro progresso dentro da ecologia profunda. E, como diz Bobbio, «é preciso instalar a liberdade no coração mesmo da igualdade»; hoje com uma visão e uma ação estritamente mundiais. É a outra globalização, a que reivindicam nossos pensadores, nossos militantes, nossos mártires, nossos famintos…
Não há modo de servir simultaneamente ao deus dos bancos e ao Deus da Vida, conjugar a prepotência e a usura com a convivência fraterna.
A grande crise econômica atual é uma crise global de Humanidade que não se resolverá com nenhum tipo de capitalismo, porque não é possível um capitalismo humano; o capitalismo continua a ser homicida, ecocida, suicida. Não há modo de servir simultaneamente ao deus dos bancos e ao Deus da Vida, conjugar a prepotência e a usura com a convivência fraterna. A questão axial é: Trata-se de salvar o Sistema ou se trata de salvar à Humanidade? A grandes crises, grandes oportunidades. No idioma chinês a palavra crise se desdobra em dois sentidos: crise como perigo, crise como oportunidade.
Na campanha eleitoral dos EUA se arvorou repetidamente «o sonho de Luther King», querendo atualizar esse sonho; e, por ocasião dos 50 anos da convocatória do Vaticano II, tem-se recordado, com saudade, o Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre. No dia 16 de novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio, 40 Padres Conciliares celebraram a Eucaristia nas catacumbas romanas de Domitila, e firmaram o Pacto das Catacumbas. Dom Hélder Câmara, cujo centenário de nascimento estamos celebrando neste ano, era um dos principais animadores do grupo profético. O Pacto em seus 13 pontos insiste na pobreza evangélica da Igreja, sem títulos honoríficos, sem privilégios e sem ostentações mundanas; insiste na colegialidade e na corresponsabilidade da Igreja como Povo de Deus e na abertura ao mundo e na acolhida fraterna.
Hoje, nós, na convulsa conjuntura atual, professamos a vigência de muitos sonhos, sociais, políticos, eclesiais, aos quais de jeito nenhum podemos renunciar. Seguimos rechaçando o capitalismo neoliberal, o neoimperialismo do dinheiro e das armas, uma economia de mercado e de consumismo que sepulta na pobreza e na fome a uma grande maioria da Humanidade. E seguiremos rechaçando toda discriminação por motivos de gênero, de cultura, de raça.
Hoje, nós, na convulsa conjuntura atual, professamos a vigência de muitos sonhos, sociais, políticos, eclesiais, aos quais de jeito nenhum podemos renunciar. Seguimos rechaçando o capitalismo neoliberal, o neoimperialismo do dinheiro e das armas, uma economia de mercado e de consumismo que sepulta na pobreza e na fome a uma grande maioria da Humanidade. E seguiremos rechaçando toda discriminação por motivos de gênero, de cultura, de raça. Exigimos a transformação substancial dos organismos mundiais (a ONU, o FMI, o Banco Mundial, a OMC…). Comprometemo-nos a vivermos uma «ecologia profunda e integral», propiciando uma política agrária agrícola alternativa à política depredadora do latifúndio, da monocultura, do agrotóxico. Participaremos nas transformações sociais, políticas e econômicas, para uma democracia de «alta intensidade».
A Igreja se comprometerá, sem medo, sem evasões, com as grandes causas de justiça e da paz, dos direitos humanos e da igualdade reconhecida de todos os povos. Será profecia de anuncio, de denúncia, de consolação. A política vivida por todos os cristãos e cristãs será aquela «expressão mais alta do amor fraterno» (Pio XI).
Como Igreja queremos viver, à luz do Evangelho, a paixão obsessiva de Jesus, o Reino. Queremos ser Igreja da opção pelos pobres, comunidade ecumênica e macroecumênica também. O Deus em quem acreditamos, o Abbá de Jesus, não pode ser de jeito nenhum causa de fundamentalismos, de exclusões, de inclusões absorventes, de orgulho proselitista. Chega de fazermos do nosso Deus o único Deus verdadeiro. «Meu Deus, me deixa ver a Deus?». Com todo respeito pela opinião do Papa Bento XVI, o diálogo interreligioso não somente é possível, é necessário. Faremos da corresponsabilidade eclesial a expressão legítima de uma fé adulta. Exigiremos, corrigindo séculos de discriminação, a plena igualdade da mulher na vida e nos ministérios da Igreja.
Estimularemos a liberdade e o serviço reconhecido de nossos teólogos e teólogas. A Igreja será uma rede de comunidades orantes, servidoras, proféticas, testemunhas da Boa Nova: uma Boa Nova de vida, de liberdade, de comunhão feliz. Uma Boa Nova de misericórdia, de acolhida, de perdão, de ternura, samaritana à beira de todos os caminhos da Humanidade. Seguiremos fazendo que se viva na prática eclesial a advertência de Jesus: «Não será assim entre vocês» (Mt 21,26). Seja a autoridade serviço. O Vaticano deixará de ser Estado e o Papa não será mais chefe de Estado. A Cúria terá de ser profundamente reformada e as Igrejas locais cultivarão a inculturação do Evangelho e a ministerialidade compartilhada. A Igreja se comprometerá, sem medo, sem evasões, com as grandes causas de justiça e da paz, dos direitos humanos e da igualdade reconhecida de todos os povos. Será profecia de anuncio, de denúncia, de consolação. A política vivida por todos os cristãos e cristãs será aquela «expressão mais alta do amor fraterno» (Pio XI).
Nós nos negamos a renunciar a estes sonhos mesmo quando possam parecer quimera. «Ainda cantamos, ainda sonhamos». Nós nos atemos à palavra de Jesus: «Fogo vim trazer à Terra; e que mais posso querer senão que arda» (Lc 12,49). Com humildade e coragem, no seguimento de Jesus, tentaremos viver estes sonhos no dia a dia de nossas vidas. Seguirá havendo crises e a Humanidade, com suas religiões e suas Igrejas, seguirá sendo santa e pecadora. Mas não faltarão as campanhas universais de solidariedade, os Foros Sociais, as Vias Campesinas, os movimentos populares, as conquistas dos Sem Terra, os pactos ecológicos, os caminhos alternativos da Nossa América, as Comunidades Eclesiais de Base, os processos de reconciliação entre o Shalom e o Salam, as vitórias indígenas e afro e, em todo o caso, mais uma vez e sempre, «eu me atenho ao dito: a Esperança».
Cada um e cada uma a quem possa chegar esta circular fraterna, em comunhão de fé religiosa ou de paixão humana, receba um abraço do tamanho destes sonhos. Os velhos ainda temos visões, diz a Bíblia (Jl 3,1). Li nestes dias esta definição: «A velhice é uma espécie de postguerra»; não precisamente de claudicação. O Parkinson é apenas um percalço do caminho e seguimos Reino adentro.
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