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Carta aberta ao irmão Romero

Carta aberta ao irmão Romero

Eu deveria estar aí… e estou: de alma inteira. Esta pequena Igreja de São Félix do Araguaia tem você muito presente, irmão. Você está visível no meu quarto, na capela do quintal, em nossa catedral, em muitas comunidades, no Santuário dos Mártires da Caminhada Latinoamericana. Até quando cai uma manga sobre o telhado eu me lembro do sobressalto que você sentia quando caiam as mangas sobre seu retiro do Hospitalito.

No mês de março de 1983 eu escrevia em meu diário:

«Não consigo entender de jeito nenhum, ou até o entendo demais: A fotografia do mártir Monsenhor Romero com João Paulo II, nos cartazes mais do que normais para a visita do Papa, tem sido proibida pela comissão mista Governo-Igreja de El Salvador. A imagem do mártir dói. Ao Governo, perseguidor assassino; e é natural que lhe doa; que doa à certa Igreja… também é natural, tristemente natural.

De todos modos, nós, aqui, neste recanto do Mato Grosso, e muitos cristãos e não cristãos da América e do Mundo, vamos celebrar outra vez, neste mês de março, o martírio de São Romero, bom pastor da América Latina.

 A tua imagem nos conforta, nos compromete e nos une; como uma versão entranhável do Bom Pastor Jesus.

 

Você ressuscitou em seu povo, que não vai permitir mais que o império e as oligarquias continuem a submetê-lo, nem vai se deixar levar pelos revolucionários arrependidos o pelos eclesiásticos espiritualizados.

 

E agora estamos aí, milhões, de muitas maneiras, celebrando o jubileu do seu testemunho definitivo, aquela homilia de sangue que ninguém fará calar. Você tem poder de convocação, um poder macroecumênico de santo dos católicos e dos evangélicos e até dos ateus. Estamos aí celebrando, reparando, assumindo. Você é muito comprometedor, na linha de Jesus de Nazaré: esse Jesus histórico que tantas vezes se dilui para nós em dogmatizações helenísticas e em espiritualismos sentimentais, o Jesus Pobre solidário com os pobres, o Crucificado com os crucificados da História.

Você tinha razão, e isso queremos celebrar também, com júbilo pascal. Você ressuscitou em seu povo, que não vai permitir mais que o império e as oligarquias continuem a submetê-lo, nem vai se deixar levar pelos revolucionários arrependidos o pelos eclesiásticos espiritualizados. E você ressuscita nesse Povo de milhões de sonhadores e sonhadoras que acreditamos que outro Mundo é possível e que é possível outra Igreja.

Porque do jeito que hoje estão, Romero irmão, nem o Mundo vai e nem vai a Igreja. Continuam as guerras, agora até preventivas; continuam a fome, o desemprego, a violência –do Estado ou da multidão enlouquecida–; continuam as falsas democracias, o falso progresso, os falsos deuses que dominam com o dinheiro e a comunicação, com armas e a política.

 

Passamos da Segurança Nacional à segurança do capital transnacional, e das ditaduras militares à macro ditadura do império neoliberal.

 

E continua havendo muita Igreja muda. Passamos da Segurança Nacional à segurança do capital transnacional, e das ditaduras militares à macro ditadura do império neoliberal.

São também os 25 anos da Conferência de Puebla. Aqueles rostos, Romero, que são o próprio rosto de Jesus ‘destazado’, têm se multiplicado em número e em deformação. Aquelas revoluções utópicas –belas e atordoadas como uma adolescência da História– têm sido traídas por uns, desprezadas olimpicamente por outros e continuam sendo saudosas –de outro modo, mais ‘al suave’, com jeito, em maior profundidade pessoal e comunitária– por muitas e muitos dos que estamos aí, com você, pastor do ‘acompanhamento’, companheiro de pranto e de sangue dos pobres da Terra. Como estamos necessitando hoje que você ensine aos pobres a ‘se encorpar’, a fazerem se corpo, em solidariedade, em organização, em teimosa esperança!

Com você, dizia o mestre mártir Ellacuría, “Deus passou por El Salvador”, por todo o nosso Mundo. E o teólogo de fronteira José María Vigil fez de você três rotundas afirmações que são, mais do que verdades para crer, desafios de urgência para assumir:

• «Romero: símbolo máximo da opção pelos pobres e da teologia da libertação.

Romero: símbolo máximo do conflito da opção pelos pobres com o Estado.

Romero: símbolo máximo do conflito da opção pelos pobres com a Igreja institucional».

Não é que você deixasse de ser ‘institucional’ e comportado. Sempre me admirou em você a aliança da disciplina com a liberdade, da piedade tradicional com a Teologia da Libertação, da profecia mais ousada com o perdão mais generoso.

Você era um santo se fazendo, em constante processo de conversão. De você tem se repetido com edificação que era você um bispo convertido. Com Deus e com o Povo, sem dicotomias.

 

Você nos avisa de que «aquele que se compromete com os pobres terá que percorrer o mesmo destino que os pobres: ser desaparecidos, ser torturados, ser capturados, aparecer cadáveres»

 

Sua homilia do 23 de março de 1980, véspera da oblação total, você a intitulou precisamente assim: «A Igreja a serviço da libertação pessoal, comunitária, transcendente».

Recordamos você tanto porque necessitamos de você, Romero, irmão exemplar.

Você nos anima, você continua a nos pregar a homilia da libertação integral. Você continua gritando «cesse a repressão», a todas as forças repressivas na Sociedade, nas Igrejas, nas Religiões. Você nos avisa de que «aquele que se compromete com os pobres terá que percorrer o mesmo destino que os pobres: ser desaparecidos, ser torturados, ser capturados, aparecer cadáveres», e nos lembra que, comprometendo-nos com as causas dos pobres, não fazemos mais do que «pregar o testemunho subversivo das Bem-aventuranças, que tudo reviram».

 

Sua memória não é simplesmente saudade nem uma veneração sacralizada que fica no ar do incenso. Queremos que seja, vamos fazer que seja, compromisso militante, pastoral de libertação.

 

Você confiava –e não vamos defraudar você– que «em quanto houver injustiça haveria cristãos que a denunciassem e que se poriam da parte das vítimas» dessa injustiça.

Seu sangue, irmão, como você pedia é verdadeiramente «semente de liberdade».

Sua memória não é simplesmente saudade nem uma veneração sacralizada que fica no ar do incenso. Queremos que seja, vamos fazer que seja, compromisso militante, pastoral de libertação.

Nosso teólogo, o teólogo dos mártires, Jon Sobrino, resume assim a tarefa evangelizadora e política que, por fidelidade à memória de você, nos demanda hoje o Reino: Enfrentar a realidade com a verdade; analisar a realidade e suas causas; trabalhar pela  mudança estrutural; levar a bom termo uma evangelização madura, libertadora, crítica e autocrítica; construir a Igreja como Povo de Deus; dar esperança a esse Povo que tanto sofre…

Esta semana do seu jubileu, em San Salvador, acabará sendo um sínodo popular, um encontro de aspirações e compromissos dentro desse processo conciliar que estamos vivendo, uma grande vigília pascal em torno a você e a tantas testemunhas fieis, conhecidas ou anônimas, mas todas luminosas no Livro da Vida, seguidores e seguidoras até o fim da suprema Testemunha Fiel.

 

Seguiremos falando, irmão Romero. Todo dia. Você acompanhando-nos da Paz total, pelo caminho árduo e libertador do Evangelho. Tantas vezes nos sentimos como os discípulos de Emaús, defraudados, sem rumo, porque ‘pensávamos que…’

 

«Estamos outra vez em pé de testemunho», eu dizia a você naquele meu poema. E estamos mesmo. Somos do grande Fórum Social Mundial, com o Evangelho e pelo Reino, indo para outro Mundo possível, para outra Igreja –de Igrejas unidas e libertadoras–, para outra Pátria Grande, Nossa América do Caribe e do Sul e da entranhável América Central; com um Norte outro, irmão também por fim, dês-imperializado.

Estão-nos anunciando a V Conferência Episcopal Latinoamericana, possivelmente para o 2007 e esperamos que seja na América Latina. Você ajude a prepará-la, irmão. Façam celestiais horas extras todos os santos e santas da Nossa América para que essa Conferência seja um Medellín, e atualizado.

Seguiremos falando, irmão Romero. Todo dia. Você acompanhando-nos da Paz total, pelo caminho árduo e libertador do Evangelho. Tantas vezes nos sentimos como os discípulos de Emaús, defraudados, sem rumo, porque ‘pensávamos que…’

A tua carta, Romero, que guardamos em nosso arquivo, timbrada como «relíquia», reza assim:

«… Querido irmão no episcopado:

Com profundo afeto agradeço lhe sua fraternal mensagem pela pena da destruição da nossa emissora.

Sua calorosa adesão alenta consideravelmente a fidelidade à nossa missão de continuarmos sendo expressão das esperanças e angústias dos pobres, alegres por corrermos como Jesus os mesmos riscos, por nos identificarmos com as causas justas dos despossuidos.

Á luz da fé, sinta-me estreitamente unido no afeto, na oração e no triunfo da Ressurreição.

Oscar A. Romero, Arcebispo».

Sua última palavra escrita, e assinada com sangue, não podia ser mais cristã.

Querido São Romero da América, irmão, pastor, testemunha: Você vivia e dava a vida porque acreditava de verdade no «triunfo da Ressurreição». Ajude-nos a crermos de verdade nesse triunfo, para vivermos e darmos a vida como você, com os pobres da Terra, seguindo o Crucificado Ressuscitado Jesus.

Pedro Casaldáliga, 24 março de 2005

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3 razões pelas quais o Brasil é o centro da COVID19 [atualizado]

3 razões pelas quais o Brasil é o centro da COVID19 [atualizado]

Com quase 12 milhões de casos confirmados e mais de 282 mil mortes, o Brasil já é o segundo país do mundo mais afetado pelo Coronavírus. Na Amazônia, são mais de 2,2 milhões de infecções. Quais são as razões desta rápida evolução da COVID-19 no Brasil?

 

O Brasil é o terceiro país do mundo com mais mortes por Coronavírus, atrás apenas dos Estados Unidos. Embora, obviamente, a incidência do vírus se manifeste principalmente nas cidades mais populosas, o elevado número de casos diagnosticados na Amazônia, com áreas muito isoladas e altas temperaturas, é surpreendente.

 

Nos últimos 10 dias, mais de 15.000 pessoas morreram no Brasil devido à COVID19.

 

O mais preocupante, porém, não são apenas os dados absolutos, mas o enorme número de casos que estão sendo registrados diariamente e o fato que as Unidades de Terapia Intensiva estão, em muitos casos, com mais de 90% de ocupação. No Araguaia, o sistema de saúde entrou em colapso e é necessário esperar por uma das 10 vagas da Unidade de Terapia Intensiva que existem no município de Água Boa, responsável de cuidar de uma área do tamanho de toda a Grécia, com 23 municípios.

O que explica essa evolução acima da média mundial?

 

1. A atitude de seu presidente

 

Desde o início da pandemia, e imitando outros líderes de extrema direita, o predisente Bolsonaro lançou uma campanha para minimizar a gravidade da COVID-19 e negar as deficiências de sua política de saúde.

 

Desde que assumiu a presidência do Brasil em 2019, Bolsonaro tem se caracterizado por suas declarações xenófobas e homofóbicas, contra os Povos Indígenas e até a favor da ditadura militar e da tortura.

 

Ao contrário de quaisquer medidas de isolamento ou confinamento, Bolsonaro está mantendo um discurso baseado no fato de que o Coronavirus é uma “gripezinha” e se posicionando contra governadores e prefeitos que tentaram aplicar algumas medidas de proteção.

Desde que assumiu a presidência do Brasil em 2019, Bolsonaro tem se caracterizado por suas declarações xenófobas e homofóbicas, contra os Povos Indígenas e até a favor da ditadura militar e da tortura. Em seu governo existem mais de 3.000 militares em diversos cargos de responsabilidade, que estão substituíndo técnicos, cientistas e acadêmicos, dizimando a capacidade pública de ação, a coerência e o bom senso.

A relação é clara: toda vez que o Bolsonaro aparece na televisão, no rádio ou nos jornais minimizando a gravidade da COVID19, mais pessoas vão às ruas ignorando as medidas de contenção que prefeitos e governadores estão tentando implementar e que uma boa parte da Sociedade Civil reclama.

 

2. Um dos países mais desiguais do mundo

 

A Darlete mora no Assentamento “Dom Pedro”, uma extensa comunidade rural onde vivem 400 famílias, criada graças à luta de Casaldáliga contra um grande latifundiário na década de 1990. Mãe de 7 filhos, sua renda depende exclusivamente do que ele consegue vender na feira quinzenal organizada em São Félix do Araguaia: algumas frutas, verduras e legumes que leva até o mercado em uma viagem de 6 horas na carroceria de um caminhão.

A única ajuda que a família de Darlete recebe são menos de 200 reais por mês do Bolsa Família.

 

La família de la Darlete viu a l'Assentament Dom Pedro

A família de Darlete mora no Assentamento Dom Pedro. Recebem menos de R$200,00 por mês.

 

Na comunidade onde a Darlete mora, para ir ao médico, ao banco ou aos correios, é preciso viajar 3 horas por uma estrada de terra que virá lama na época das chuvas. Assim como ela, as outras 400 famílias que moram no Assentamento Dom Pedro também não têm água encanada ou rede de esgoto. A maioria dessas famílias dedica-se à agricultura ou à pecuária de subsistência.

 

No assentamento onde mora Darlete, o médico aparece uma vez por mês e monta um consultório improvisado, muitas vezes ao ar livre, para cuidar de pacientes da comunidade. Para qualquer intervenção, mesmo que seja ambulatorial, deve-se ir a São Félix do Araguaia, onde há um hospital básico. Se precisar ser internada em Unidade de Terapia Intensiva, a Darlete terá que fazer 10 horas de ônibus.

 

A situação não é muito melhor nas grandes cidades: no Brasil, 6% da população – mais de 12 milhões de pessoas – vive em “favelas”, comunidades que crescem no entorno ou dentro das grandes cidades do país. Nestas grandes comunidades, por vezes de centenas de milhares de pessoas, a densidade populacional é muito elevada e a renda média não chega aos 100 euros por mês. Também, muitas vezes, não há água encanada, esgoto ou coleta de lixo.

Por isso, tanto no campo quanto nas cidades, no Brasil, ficar em casa é sinônimo de passar fome. Para muitas famílias, sair, ir nas feiras e continuar a fazer o seu trabalho diário é a única opção de sobrevivência.

 

3. Um sistema de saúde precário

 

Grande parte do sistema de saúde do Brasil é privado. Além disso, embora seja verdade que nos últimos anos alguns aspectos do setor público de saúde melhoraram, ainda é um sistema muito precário e não atinge grande parte da população. Na prática, no Brasil, a maioria da população não tem aceso a atendimento médico de qualidade.

 

No Araguaia, apenas um hospital, com um único respirador e sem Unidade de Terapia Intensiva, é responsável por atender uma área equivalente a toda a Catalunha.

 

No Araguaia, uma das regiões mais distantes e isoladas, um único hospital, com um único respirador, é responsável por cuidar de uma área equivalente a toda a Catalunha e muitas das comunidades onde vivem centenas de famílias é preciso percorrer 3 ou 4 horas de estradas para ir até o médico mais próximo. Os assentamentos onde trabalhamos: Dom Pedro, Mãe Maria, Vida Nova I e Vida Nova II e a Terra Indígena Xavante têm o hospital mais próximo -com equipamento básico- a 4 horas por estrada de terra.

Mas, além disso, as Unidades de Terapia Intensiva estão quase 100% ocupadas em todo o Brasil e no Estado de Mato Grosso, muitas vezes, 100% da ocupação já foi ultrapassada. Há fila para ser atendido de Coronavirus.

Nesse contexto, é evidente o descontrole da doença, e é plausível pensar que existam muitos mais casos do que os números oficiais nos indicam.

 

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Casaldáliga: Teo-poeta da libertação e da espiritualidade contra-hegemônica.

Casaldáliga: Teo-poeta da libertação e da espiritualidade contra-hegemônica.

Teo-poeta da libertação e intelectual compassivo

Pedro Casaldáliga foi “um poeta de vida e palavra consubstanciada”, como o poeta e professor de Estética da Universidade de Barcelona José María Valverde o definiu, e “teo-poeta da libertação”, como eu o considero, acredito, que junto com Rubem Alves e Ernesto Cardenal. Ele era um esteta da palavra encarnada, um mestre do bom discurso, que nele é “ser”, “viver” e “fazer”. A sua poesia não é evasiva, mas está fundamentada na realidade, está cheia de indignação e dor pela injustiça e fome que a maioria da população do mundo sofreu – e ainda sofre -.

Ele era um revolucionário universalista que acreditava “na Internacional de frentes elevadas, da voz igual e das mãos entrelaçadas” e acompanhava as revoluções na América Latina, até com a sua presença física, como no caso da Revolução Sandinista.

Casaldáliga analisou a realidade com os olhos dos pobres, olhos que, como ele diz, “vêem com uma luz diferente”. Foi essa luz que o levou a criticar o neoliberalismo, que ele chamou “a grande blasfêmia do século XXI”. Em meio à era neoliberal, Pedro era um “trabalhador da utopia” de Outro Mundo Possível, em conexão com a proposta do Fórum Social Mundial, que organizou sete edições no Brasil. Utopia de libertação, que ele não considerava um ideal irrealizável, mas um objetivo que pode ser alcançado através do compromisso com o caminho da “esperança contra toda esperança”.

Casaldáliga também foi um profeta de olhos abertos que despertou as consciências adormecidas de muitos cidadãos conformistas e de muitos cristãos que, nas palavras do escritor francês Georges Bernanos, são “capazes de se sentar confortavelmente sob a cruz de Cristo”. Era um revolucionário universalista que acreditava “na Internacional de frentes elevadas, de vozes entre iguais e das mãos entrelaçadas” e acompanhava as revoluções da América Latina, até com a sua presença física, como no caso da Revolução Sandinista.

Ele confrontou e despiu os grandes sistemas de dominação apenas com a palavra e a exemplaridade da vida.

Casaldáliga agiu como um intelectual crítico, inconformista e compassivo com as vítimas do colonialismo, capitalismo, patriarcado, aporofobia e exploração da Terra. Ele foi sem dúvida um dos intelectuais mais lúcidos da América Latina, que ofereceu narrativas alternativas às narrativas oficiais do sistema, construiu espaços de convivência e diálogo simétrico ao invés de campos de batalha e monólogos, desestabilizou a (des)ordem estabelecida e revolucionou as mentes instaladas. Foi crítico com todos os poderes: político, religioso, econômico, incluindo os poderes ocultos da “Santa Sé”, a ponto de ter a audácia de pedir ao Papa João Paulo II que deixasse o Vaticano e seguisse o caminho do Evangelho. Ele confrontou e despiu os grandes sistemas de dominação apenas com a palavra e a exemplaridade da vida.

Outra de suas opções fundamentais foi a ecologia, seguindo o ecologista Francisco de Assis. Junto com seu colega e amigo próximo Tomás Balduino, bispo de Goiás, criou a Comissão Pastoral da Terra na Conferência Episcopal Brasileira e apoiou as lutas e demandas do Movimento dos Sem Terra (MST). Casaldália reivindicou o direito dos povos originais, os primeiros ambientalistas, ao seu território, que foi roubado pelos latifundiários, que os exploram sem demonstrar qualquer compaixão pela terra ou por seus legítimos habitantes. Reclamou também o reconhecimento dos direitos da Mãe Terra (Pachamama), que os povos nativos consideram sagrados e com os quais formam uma comunidade eco-humana. A melhor representação simbólica de sua consciência ecológica foi a Missa da Terra Sem Males.

Espiritualidade contra-hegemônica

Um missionário a serviço dos setores mais vulneráveis da sociedade, um místico solidário com os processos revolucionários, um contemplativo na libertação, um bispo em rebelião e insurreição evangélica, um pastor a serviço do povo.

Na esfera religiosa destacou-se como missionário a serviço dos setores mais vulneráveis da sociedade, místico solidário com os processos revolucionários, contemplativo na libertação, bispo em rebelião e insurreição evangélica, pastor a serviço do povo. Viveu uma espiritualidade contra-hegemônica e anti-imperial. “Cristianamente – afirma – a consigna é muito clara (e muito exigente) e foi o próprio Jesus de Nazaré quem nos encomendou…: contra a política opressiva de qualquer império, a política libertadora do Reino“. Aquele reino do Deus vivo, que pertence aos pobres e a todos aqueles que têm fome e sede de justiça. Contra a agenda do império, a agenda do Reino”. Casaldáliga pregou o Reino de Deus em luta contra o Império e criticou a Igreja “quando ela não coincide com o Reino”.

Pais e mães da Igreja Latinoamericana

Casaldáliga seguiu o caminho dos bispos que José Comblin chama “Pais da Igreja da América Latina”, que puseram em prática o Pacto das Catacumbas assinado por quarenta bispos na catacumba de São Domitilla em Roma, em novembro de 1965, durante a quarta sessão do Concílio Vaticano II, e ao qual aderiram mais de quinhentos depois. Eles optaram por uma Igreja pobre e dos pobres, denunciaram as ditaduras, foram perseguidos, colocaram suas vidas em risco e alguns foram assassinados e se tornaram mártires, como Monsenhor Romero, José Gerardi, Angelelli… Foram submetidos a processos judiciais, vigilância policial, investigações inquisitoriais pelas Congregações do Vaticano, sofreram condenações e até foram afastados de suas funções episcopais.

No final do livro me pergunto se houve e ainda há “Mães da Igreja Latinoamericana” e respondo afirmativamente, embora não sejam reconhecidas como tais. A falta de reconhecimento é a melhor prova da sobrevivência do patriarcado, mesmo na libertação do cristianismo.

“Minhas causas são mais importantes do que minha vida”

Pedro Casaldáliga afirmou repetidamente: “Minhas causas são mais importantes do que minha vida”. E assim foi. No livro dedico um extenso capítulo a essas causas, entre as quais destaco cinco que considero as mais importantes:

1) A causa das comunidades afrodescendentes, indígenas e camponesas, sujeitas ao colonialismo, ao racismo e ao capitalismo selvagem. Sua Missa da Terra Sem Males é a melhor expressão de sua solidariedade e identificação com os povos indígenas. Sua Missa dos Quilombos é o melhor reconhecimento da dignidade dos povos afro-descendentes submetidos à escravidão durante séculos e ainda hoje, da defesa de sua identidade cultural e religiosa e de seus territórios.

2) A causa das mulheres discriminadas por serem mulheres, por serem pobres, por pertencerem às classes populares, culturas nativas e grupos étnicos, desprezadas e submetidas à violência pelo patriarcado político e religioso até o feminicídio, e por praticarem espiritualidades e religiões que não correspondem às chamadas “grandes religiões”. Pedro assumiu a causa das mulheres camponesas, indígenas, negras e prostitutas, cuja marginalização social denunciou constantemente.

3) A causa da Terra, considerada sagrada pelas comunidades indígenas, sujeita de direitos e não venal.

4) A causa do diálogo interreligioso, intercultural e interétnico. Casaldáliga não impôs nunca a sua fé, nem afirmou que a religião cristã era a única religião verdadeira, mas respeitou e compartilhou as visões de mundo, espiritualidades e sabedoria das comunidades originais, dialogou com elas sem arrogância ou superioridade e sem estabelecer hierarquias, ao mesmo tempo em que reconheceu suas deidades.

5) A causa dos mártires, a começar pelo proto-mártir do cristianismo, Jesus de Nazaré, seguido pelo Padre João Bosco, assassinado em sua presença pela polícia, Monsenhor Romero, arcebispo profético de San Salvador, a quem declarou santo em seu memorável poema “São Romero da América, Nosso Pastor e Mártir”, e pelo martírio coletivo dos “índios crucificados”, sobre o qual escreveu um dramático e denunciante artigo no International Journal of Theology Concilium, em 1983.

Seus textos, apoiados pela autenticidade de sua vida, são, em minha opinião, a melhor resposta a esta guinada política da ultra-direita e constituem a base para a proposta de uma alternativa democrática radical.

Casaldáliga é um dos símbolos mais luminosos do cristianismo libertador em meio à ascensão dos movimentos religiosos fundamentalistas que estão mudando o mapa religioso e político da América Latina. Ele se tornou um farol iluminador na escuridão do presente e em meio à ascensão da extrema direita política em nível local e global, que está mudando o mapa político e é uma ameaça à democracia. Seus textos, apoiados pela autenticidade de sua vida, são, em minha opinião, a melhor resposta a esta guinada política ultra-direita e constituem a base para a proposta de uma alternativa de democracia radical, ou seja, participativa, de base e em todas as áreas: ética, política, econômica, social, trabalhista, cultural, educacional, ecológica, etc.

Ignacio Ellacuría disse: “Com Monsenhor Romero, Deus passou por El Salvador”. Atrevo-me a afirmar: “Com Pedro Casaldáliga, ‘o Deus de todos os nomes’ passou pelo Brasil”.

 

Texto de Juan José Tamayo, teólogo.

Fonte: Revista Ameríndia

Tradução e montagem: Raul Vico

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