«Conheci D. Pedro Casaldáliga em 1970, quando, com mais três companheiros chegamos a São Félix do Araguaia para trabalhar no Ginásio Estadual do Araguaia.». Assim começa a história de Eunice Dias de Paula, que chegou à Prelazia de Pedro Casaldáliga com pouco mais de 20 anos e que está há mais de 40 com o Povo Indígena Apyãwa.
Doutora em Letras e Lingüística pela Universidade Federal de Goiás, sua escolha de vida na Prelazia de Casaldáliga tem sido fundamental para a valorização, o ensino e o uso da língua dos Apyãwa (Tapirapé).
Conheci D. Pedro Casaldáliga em 1970, quando, com mais três companheiros chegamos a São Félix do Araguaia para trabalhar no Ginásio Estadual do Araguaia. Esta escola foi construída por D. Pedro e sua equipe, para suprir necessidades urgentes de educação, visto que o analfabetismo predominava na região, naquele período. Fomos eu e mais três companheiros, jovens que haviam deixado o seminário claretiano, para iniciarmos uma experiência que iria marcar nossas vidas. Iríamos viver isolados dos grandes centros urbanos e inseridos entre uma população de cultura ribeirinha e indígena.
Este sistema foi quebrado com a chegada dos latifúndios que, munidos de documentos legais ou falsos da terra, começaram a construir cercas em grades áreas e a expulsar moradores que aí se encontravam instalados.
O sistema de uso da terra dos moradores regionais, no período da chegada dos claretianos padre Pedro Casaldàliga e irmão Manoel Luzón, no ano de 1968, à região da Prelazia, tinha uma certa semelhança com o que era observado entre os povos indígenas. Os sertanejos que, há muito tempo tinham vindo, sobretudo, do Pará, do Maranhão e de outros estados do Nordeste, haviam ocupado terras que antes eram dos povos originários. Estes povos, naquele período, se encontravam com suas populações reduzidas e concentradas em algumas aldeias. Os novos moradores, seguindo o curso dos rios, iam, aos poucos, ocupando o espaço, sem se preocuparem em traçar limites de propriedades. A maioria era constituída de criadores que criavam o gado em áreas comuns, desprovidas de cercas e que mantinham uma forte relação de entreajuda.
Este sistema foi quebrado com a chegada dos latifúndios que, munidos de documentos legais ou falsos da terra, começaram a construir cercas em grades áreas e a expulsar moradores que aí se encontravam instalados. Houve até a o deslocamento de povos indígenas, como é o caso dos A’uwẽ Xavante e de vários povos do Parque Indígena do Xingu, para dar lugar aos invasores.
Diante deste confronto entre forças desproporcionais, visto que o latifúndio contava com abundante financiamento e forte apoio do governo militar ditatorial, Dom Pedro assumiu logo posição. Colocou-se imediatamente do lado dos mais fracos, dos indígenas, dos posseiros, dos moradores dos núcleos urbanos e do lado dos peões que eram trazidos de longe para serem explorados em um regime de trabalho escravo nas fazendas que estavam sendo implantadas.
Hoje, é comum ouvir moradores antigos da Prelazia dizerem: se não fosse Dom Pedro e a Prelazia, esse nosso lugar não existiria mais. Testemunhos como este dão uma dimensão do que Dom Pedro e a Prelazia representaram e representam para esta região do interior do Brasil.
Pedro e sua equipe que foi, aos poucos, sendo constituída, logo se tornaram um ponto de apoio para o povo da região. Trouxeram melhoria na educação, com a criação do Ginásio Estadual do Araguaia, trouxeram melhorias na saúde, com a vinda de irmãs enfermeiras, deram força para os que estavam na terra enfrentarem os grandes fazendeiros, que chegavam ameaçando de expulsão os moradores da região. Hoje, é comum ouvir moradores antigos da Prelazia dizerem: se não fosse Dom Pedro e a Prelazia, esse nosso lugar não existiria mais. Testemunhos como este dão uma dimensão do que Dom Pedro e a Prelazia representaram e representam para esta região do interior do Brasil.
¿Porque Pedro foi um profeta?
Pedro, reconhecidamente, foi um profeta. O profetismo em Pedro se revela em duas faces, o anúncio da Boa Nova aos pobres, através de gestos concretos e do testemunho de sua vida, simples e austera e, por outro lado, a denúncia constante dos atos praticados pelos perseguidores das pessoas que viviam na Prelazia.
As denúncias eram feitas através de documentos como Escravidão e Feudalismo no Norte de Mato Grosso, escrito antes mesmo de sua sagração como bispo e a Carta Pastoral “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”. Na introdução do primeiro documento, Pedro afirma:
“Escrevo-o por dever de consciência, por imperativo da mais elementar justiça cristã. Nestes últimos meses a tragédia estourou em tais termos que não pode ser mais calada”.
Assim, a denúncia, para Pedro, decorre da fidelidade ao Evangelho, dos preceitos cristãos que preconizam uma vida em plenitude para todos e todas. Na Carta Pastoral (1971, p. 40) afirma:
“Não podemos aceitar a dicotomia entre evangelização e promoção humana, porque acreditamos no Cristo, como o Senhor Ressuscitado que liberta o homem todo e o mundo todo e nos salva em plenitude: progressivamente e dolorosamente aqui na terra, definitivamente e com glória no céu”..
Ver pessoas escravizadas pelo latifúndio, expostas a condições desumanas, causou profunda indignação em Pedro, expressas também em várias de suas poesias, como na Confissão do Latifúndio:
Por onde passei,
plantei a cerca farpada,
plantei a queimada.
Por onde passei,
plantei a morte matada.
Por onde passei,
matei a tribo calada,
a roça suada,
a terra esperada…
Por onde passei,
tendo tudo em lei,
eu plantei o nada.
O modo de vida de Pedro também se constituía em um anúncio profético. Su casa sencilla, como las demás casas de la región, no recuerda en modo alguno a un “palacio episcopal”. Sua casa simples, como as outras casas da região, em nada denotava um “palácio episcopal”. As portas sempre abertas, recebendo desde sertanejos e indígenas até magistrados, políticos, jornalistas que o procuravam. Pedro recebia a todos de forma calorosa, deixando o trabalho que estava fazendo e dedicando atenção a quem o visitava.
A quem dizia para ele viajar de avião e evitar estes transtornos, Pedro respondia sorrindo que “de ônibus, se perdia tempo, mas se ganhava em povo”.
Suas viagens eram sempre feitas de ônibus, o que acarretava muitos dias na estrada. No tempo chuvoso, especialmente, havia atoleiros que provocavam atrasos consideráveis. A quem dizia para ele viajar de avião e evitar estes transtornos, Pedro respondia sorrindo que “de ônibus, se perdia tempo, mas se ganhava em povo”. Isto porque ele conversava o tempo todo da viagem com os passageiros, perguntava pelos familiares, pela saúde, pelos trabalhos que estavam fazendo. A viagem se transformava em uma verdadeira visita pastoral.
O profetismo de Pedro também se manifestou na vivência de uma Igreja – Povo de Deus, que supõe relações horizontais e não hierárquicas. Até mesmo quando recebeu o convite para assumir o episcopado, refletiu com os integrantes da equipe pastoral e com o amigo D. Tomás Balduino, se era oportuno aceitar ou não. Todas as equipes se reuniam em 3 momentos por ano: primeiro, numa reunião de estudos e programação, chamada Bolão, pois a disposição das cadeiras era em círculo e todos os assuntos eram debatidos em conjunto; segundo, em um Retiro, momento de oração e, depois, na Assembleia do Povo, na qual se tomavam as decisões maiores a respeito da Prelazia juntamente com representantes de todas as comunidades. Numa destas Assembleias, elaborou-se o Manual da Prelazia que, em seu objetivo, inclui as palavras proferidas por um camponês::
“No seguimento de Jesus Cristo e em comunhão fraterna com toda a Igreja, o objetivo geral de nossa Igreja de São Félix do Araguaia é viver e anunciar a Boa Nova do Evangelho com alegria, jeito humilde e paixão, para acolher o Reino de Deus e contribuir aqui na Terra, na esperança do Reino Definitivo”.
As equipes mistas, compostas por padres, leigos e leigas e religiosas, são outro exemplo de horizontalidade na vivência do serviço ao Reino. As mulheres exerciam a diaconia sempre que necessário.
¡Es de esta experiencia profundamente evangélica de donde nace el testimonio y el grito profético de Don Pedro Casaldáliga, este hombre sencillo, humilde, frágil, santo que lleva en su poesía y en sus inspiradas palabras la voz, la historia y vida de los pobres de esta tierra!
A solidariedade com os outros países da América Latina, a Pacha Mama, mostra também a profunda comunhão de Pedro com os espoliados de nosso continente. Pedro realizou várias visitas à países da América Central, que sofriam em lutas por libertação. O assassinato de D. Oscar Romero, com quem mantinha uma forte relação de amizade e de compromisso com as causas dos pobres, o marcou profundamente.
Por essa aliança com os empobrecidos, Pedro sofreu muitas ameaças de morte e perseguições de várias ordens. Os latifundiários chegaram a pressionar o Núncio Apostólico para que o expulsasse do Brasil.
Em atitude coerente com toda a sua vida, Pedro viveu pobre entre os pobres até o final de sua vida y e foi enterrado no cemitério dos peões e dos indígenas Karajá na beira do Rio Araguaia, como havia pedido em vida.
É a partir desta vivência profundamente evangélica que ecoaram e ecoam, com muita força, o testemunho e o grito profético de Dom Pedro Casaldàliga, este santo homem, simples, humilde, franzino, que carrega em sua poesia e em suas palavras inspiradas a voz, a história e a vida dos empobrecidos desta terra!
Eunice Dias de Paula
Publicado primeiro na revista Solidaridad y Misión