por Administrador/a | 24 abr, 2022 | A obra de Pedro Casaldáliga
Em nosso livro “Espiritualidade da libertação”, José María Vigil e eu reconhecemos, já na primeira linha do primeiro capítulo, que “espiritualidade” é uma palavra infeliz, desmoralizada, pelo abuso teórico e prático com que foi usada – ainda é – como uma esfera distante da vida real, como espiritualismo desencarnado e fuga do compromisso. Se a espiritualidade deriva do “espírito”, e se o espírito se opõe à matéria, ao corpo, uma pessoa será espiritual quando viver sem se preocupar com o que é material, nem mesmo com o próprio corpo, instalando-se em realidades espirituais etéreas.
Essa concepção de espírito e espiritualidade como realidades opostas ao material do corpóreo, vem da cultura grega. Nas culturas indígenas não é assim. E nem no mundo cultural semítico da Bíblia. A palavra de Deus é muito mais abrangente.
Nesta última década, depois de algumas decepções, aprendendo com a história e através de um verdadeiro processo de amadurecimento, devemos reconhecer, agradecidos a Deus que nos acompanha e aos irmãos e irmãs que deram seu sangue por nós, aquela “espiritualidade” não é mais uma palavra infeliz. Hoje é um horizonte que precisamos, um grito que vem de dentro, água viva para nossa caminhada. Há uma autêntica e profunda sede de espiritualidade nas comunidades eclesiais, nos agentes pastorais, nos militantes cristãos, nos jovens mais alertas.
Multiplicam-se encontros, publicações, conferências, entidades que estudam, propagam e dinamizam a espiritualidade e, mais especificamente, a nossa espiritualidade. A cada dia há mais pessoas que querem “beber do próprio poço”.
1. O que então é espiritualidade?
O espírito de uma pessoa é a profundidade e a dinâmica de seu próprio ser: suas maiores e últimas motivações, seu ideal, sua utopia, sua paixão, o misticismo pelo qual vive e luta e com o qual se contagia.
“Espírito” é o substantivo concreto, e “espiritualidade” é o substantivo abstrato. Na linguagem comum, essas duas palavras são usadas de forma intercambiável: “Fulano tem muito espírito, tem uma espiritualidade profunda”.
Quando dizemos de alguém que “não tem espírito”, queremos afirmar que não tem paixão, nem ideal, nem vida profunda. É mais que uma pessoa, é um baú, é uma máquina.
Existem diferentes espíritos, sim. E é necessário discernir. Segundo alguns códices, quando os apóstolos sonhavam ou agiam fora do Reino, Jesus os advertia: “Vocês não sabem qual espírito são” (Lc 9,55). Existe um espírito mau e um espírito bom. Não é que se fala e se escreve sobre “o espírito do capitalismo”, sobre o “espírito do mercado neoliberal”?
2. A espiritualidade é herança de todos os seres humanos
Cada pessoa é animada por uma ou outra espiritualidade, porque cada ser humano – cristão ou não, religioso ou não – também é fundamentalmente também um ser espiritual. Cada mulher, cada homem é mais do que apenas biologia. E é essa outra coisa, ou muito mais, que os distingue do simples animal. Religiões e filosofias designam essa realidade misteriosa, mas real, como “espírito”. Perder essa dimensão profunda é deixar de ser humano, é tornar-se brutalizado. Paul Tillich fala disso “dimensão perdida” como da grande tragédia de nossos tempos materialistas e consumistas.
3. Toda espiritualidade também é algo religioso?
Se entendermos a palavra “religião” como uma referência explícita a Deus, devemos reconhecer que existem espiritualidades não religiosas, pessoas com muita espiritualidade, com profundos ideais de luta e serviço, que são ateus ou agnósticos. “Não hesitamos em afirmar que existem não apenas espiritualidades não cristãs, mas também não crentes”, escreve A.M. Benard.
No entanto, para nós, que cremos em Deus como presença felizmente “inevitável” e animadora de nossas vidas, água e luz de todo bom pensamento e de toda ação honesta, espiritualidade sincera, essa profundidade humana radical, é sempre “religiosa”. O grande mestre Orígenes disse que “Deus é isso que a gente coloca acima de tudo”. E o inquieto bispo de Hipona, Santo Agostinho, escreveu em suas “confissões” que “Deus é mais íntimo de mim do que minha própria intimidade”.
No entanto, não é a religiosidade que faz a verdade ou mentira de uma vida humana, mas a autenticidade dessa própria vida. “Em espírito e em verdade o Pai quer ser adorado”, lembrou Jesus à mulher samaritana junto ao poço de Jacó (Jo 4,23).
4. A nossa espiritualidade é cristã
À luz da fé cristã (há uma fé religiosa quíchua, uma fé religiosa islâmica, uma fé religiosa hindu) descobrimos a presença de Deus no cosmos, na vida humana e na história como amor gratuito e salvação precisamente porque Jesus, filho de Deus e filho de Maria de Nazaré, com a sua palavra, ação, morte e ressurreição, faz-nos entrar vitalmente nessa descoberta. A partir desse encontro de fé, nossa espiritualidade só pode ser “religiosa” (como uma volta ao Deus vivo, revelado por Jesus) e até “cristã” (como o próprio seguimento de Jesus).
O Deus de Jesus é o nosso Deus. Ele é a profundidade máxima da nossa vida.
A causa de Jesus é a nossa causa.
O nosso viver é Cristo (Fl 1,21). Ele é nossa paixão e seu espírito é nossa espiritualidade.
5. Nossa espiritualidade
Nossa espiritualidade é nossa em dois sentidos:
- Porque é uma espiritualidade personalizada, porque vivemos consciente e livremente na condição de adultos também na fé, com a totalidade do nosso ser humano, em todas as dimensões da nossa vida. Eu sou minha espiritualidade. Ninguém a vive por mim.
- Porque é uma espiritualidade explicitamente latino-americana; e, de forma clara, espiritualidade de libertação.
Antes de mais nada, é preciso sublinhar esse aspecto, que oportunamente a modernidade (também a pós-modernidade, a seu modo) trouxe à tona e que nos liberta do gregário, da infantilidade e, por fim, de uma possível e justificada deserção.
A espiritualidade ou é personalizada ou não é espiritualidade. Ou abrange todas as dimensões do meu ser (alma e corpo, pensamento e vontade, sexo e fantasia, palavra e ação, interioridade e comunicação, contemplação e luta, gratuidade e compromisso) ou não será minha, não vou me realizar nela, vai acabar me mutilando.
Foi um prazer oferecer aos meus companheiros e companheiros de caminhada um quadro de referências que muito me serviu na vida, depois de ter experimentado, em determinados momentos, sobretudo nas formações, métodos reducionistas ou unilateralidades que nos angustiavam e reprimiam a realização e a amplitude do espírito.
Assim como corrigir uma formação espiritual dispersa ou mutilada, por ser contador ou por ser dicotômica e unilateral, e ser a síntese da própria existência (esse é o desafio!), devemos pensar a vida assim:
Toda a nossa vida é:
- um problema (na fé, um mistério);
- um desafio (na fé, uma missão);
- um espaço (na fé, dom, graça); que devemos assumir com certas atitudes (geradas por certos atos e que, por sua vez, geram práxis);
- através de certas mediações (psicológicas, sociológicas, políticas, pastorais, evangélicas…);
- com vista à opção fundamental, que dará sentido, força, alegria e vitória às nossas vidas.
Ao longo deste texto – e espero, sobretudo, ao longo da vida de cada um – o que quero dizer quando falo da “nossa” espiritualidade cristã aparecerá melhor. O espírito é quem sabe. É ele quem ensina aqueles que quiserem entrar em sua escola gratuita e amorosa. De minha parte, sinto-me cada vez menos legitimado para dar lições de espiritualidade, porque a vida não se ensina. Ninguém pode substituir o Mestre, que é o Espírito de Deus, nem mesmo o discípulo, que é o espírito de cada um de nós.
Posso indicar onde tropecei, sim, e compartilhar alegrias e descobertas; porque também é verdade que, em Cristo, somos um só corpo e que o espírito que nos anima é um só (cf. 1 Cor 12,12, s).
Em nosso livro “Espiritualidade da libertação”, explicamos detalhadamente o que entendemos por Espírito/espírito/espiritualidade; os diferentes significados dessas palavras, a complementaridade com que a espiritualidade “natural” e “latino-americana” deve ser vivida, assim como a espiritualidade “cristã”, por uma pessoa simultaneamente humana, batizada e latino-americana. Para tanto, nosso livro está dividido em três grandes capítulos: I. O Espírito e a Espiritualidade; II. O Espírito libertador em nossa Pátria Grande; III. No espírito de Jesus Cristo libertador.
A esses três capítulos acrescentamos “as 7 características do novo povo”, conscientes de que “de novas mulheres e novos homens nasce o novo povo”:
- lucidez crítica;
- contemplação na caminhada;
- a liberdade dos pobres;
- solidariedade fraterna;
- a cruz e o conflito;
- a insurreição evangélica (a revolução de as Boas Novas);
- a tenaz esperança da Páscoa.
E apresentamos também as “constantes da espiritualidade da libertação”:
- profundidade pessoal;
- reinocentrismo;
- uma espiritualidade do cristão essencial e universal;
- a localização: na realidade, na história, no lugar, nos pobres, na política;
- a crítica;
- a práxis;
- a integralidade, sem dicotomias e sem reducionismos.
Com outras palavras, mais ou menos sinônimas, poderíamos também caracterizar a espiritualidade da libertação como:
- Cristológica, da prática de Jesus, em seu seguimento;
- situada, localizada, política, histórica; um “tropeçar no Deus dos pobres” (Leonardo Boff), encontrar Deus nas práticas mais cotidianas, mais sociais, mais comunitárias;
- na cruz da profecia e do conflito, assumida para a Páscoa;
- “entre livre e exigente” (G. Gutiérrez);
- ser contemplativa na libertação, decodificando o Reino ou o Anti-Reino na realidade, aqui e agora;
- enraizada em nossas culturas e história;
- herdeira comprometida com o sangue de mártir;
- profeticamente alternativa ao sistema de morte e exclusão;
- em uma co-responsabilidade eclesial, adulta, livre e serena;
- em espírito ecumênico e macroecumênico;
6. Hoje, aqui
Toda a América Latina, que faz parte do terceiro mundo, vive uma hora de globalização, de neoliberalismo, de pós-modernidade. Esta hora certamente tem muito “poder das trevas”, mas pode ter muito mais se acreditarmos no espírito, “caídos do Reino”.
Há, sem dúvida, uma crise de estratégias libertadoras “clássicas”, uma confusão entre os militantes, um sentimento de “sem saída”, de depressão psicossocial. Para muitos discípulos e discípulas, nesta noite ao longo do caminho para a segurança, a sensação de baixa hora é a mesma dos discípulos de Emaús desanimados: “Nós esperávamos que …” (Lc 24:21). Acrescente, para maior desorientação, aquela avalanche de fundamentalismos, exotismos e esoterismos que convulsionam o mundo.
A globalização está se impondo como neoliberal, com um sistema único, com um mercado total, mercantilizante da vida humana, idólatra, com uma escatologia imediata em um estúpido “fim da história”, imoladora da maioria nas garras do progresso consumista, privatizadora da sociedade, sem alternativa socializadora possível.
A pós-modernidade nega o radicalismo espiritual, o compromisso, a utopia; substitui a ética pela estética, o utópico pelo fruitivo; ignora os pobres e negligencia a justiça; renuncia às “grandes histórias”; é narcisista: dizem até que fomos de Prometeu a Narciso. Tudo na vida deve ser light, de acordo com o momento e o instinto.
Eu mesmo tenho alertado, ao longo do tempo, diante de três grandes tentações que nos esperam nesta hora neoliberal da “noite escura dos pobres” e de seus aliados: a tentação de renunciar à memória e à história; a tentação de renunciar à cruz e à militância; a tentação de desistir da esperança e da utopia.
De nossa parte, acreditamos que a globalização legítima, a outra globalização, é a vontade do único Deus, o destino da família humana, que é uma, em uma casa na terra e no céu. Intercomunicação, intersolidariedade, autoridade plural na unidade humana, o concerto universal de todos os povos, respeitados igualmente, complementares entre si, todas as pessoas “iguais e diferentes” ao mesmo tempo, na macro-harmonia da criatura que Deus sonhou.
Acreditamos também em uma legítima modernidade/pós-modernidade que potencializa a autonomia, a subjetividade, a liberdade, a igualdade, os sonhos lúcidos e prazerosos, a fricção do cosmos e da vida, cantando diariamente as águas próximas, na interioridade, na família, na amizade , na cidadania; a integração da pessoa humana na festa da criação divina.
Na Igreja deste tempo entramos, há muito tempo, segundo o teólogo Rahner, numa espécie de inverno involucionista, depois da bela primavera inaugurada pelo Concílio Vaticano II. Víctor Codina fala de “medo e insegurança na Igreja”. Muitos medos, muitas perplexidades, muitos cortes, muitas irritações. O mesmo Jubileu do ano 2000 – mais do que legítimo para a celebração penitencial e agradecimento da nossa fé e da história da nossa Igreja – pode tornar-se uma fuga, uma festa católica ou cristã, quando poderia ser o momento forte de renunciar profeticamente ao anti-Reino neoliberal e de anunciar profeticamente o Reino de Deus de vida de justiça e paz: O porquê e para que Deus se tornou em Jesus Cristo o Deus -tão-completamente -conosco-!
Também, falando da igreja, podemos cantar, em troca, muitas realizações esperançosas, na espiritualidade, na liturgia, na teologia, na experiência bíblica; nas comunidades eclesiais, na vida religiosa e inserida, nas pastorais específicas; na diversidade dos mistérios, no profetismo de leigos e leigas, com uma crescente presença conquistadora de mulheres também no altar; no ecumenismo das bases e de alguns dirigentes generosos; no diálogo inter-religioso ou macroecumênico; na presença e participação da Igreja comprometida com a luta pelos direitos humanos, pela cidadania, pela ecologia, pela terra, pela saúde, pela habitação, pela educação, pela comunicação.
O bispo mártir da Argentina, Enrique Angelelli, pastor do “interior”, durante o período de ditadura militar em seu país, proclamou uma esperança inabalável com estas palavras evangélicas: “Estou feliz por viver nos tempos em que vivo. Tudo o que estamos vivenciando é certamente cheio de vida. A Igreja torna-se mais evangélica, mais simples, mais missionária, comprometida com o seu povo. Quando nós cristãos limpamos nossa cara suja e transformamos nosso coração de carne em coração pascal, é a Igreja que vive; nossa Igreja rejuvenesce, caminha e se torna mais servidora, louvando o Pai dos Céus. É ali que nossa Igreja se fortalece com o poder do Espírito Santo. Torna-se mais livre e não se prende a interesses que o tornam infiel à sua missão. Brilha melhor como o grande sacramento de Jesus Cristo entre nós”.
Nós também, como Angelelli, podemos nos sentir felizes – ele em meio a uma ditadura militar, nós em meio ao neoliberalismo – desde que, como ele, nos despojemos e nos comprometamos, desde que troquemos nosso coração de pedra por um “coração de Páscoa”.
Pedro Casaldáliga
Nossa espiritualidade
[Pode baixar e/ou ler livremente esta obra de Casaldáliga, no original em espanhol]
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por Administrador/a | 16 mar, 2022 | A obra de Pedro Casaldáliga, A vida de Pedro Casaldáliga
Gostaria de evocar aqui a memória de Pedro Casaldáliga, tentando esboçar um pouco de sua figura multifacetada, concentrando-se em três características de sua personalidade: seu ser poeta, seu ser profeta e seu ser pastor. Combinando os três -que se iluminam e se alimentam mutuamente- e por meio de uma “fórmula” introdutória, eu diria: Na vida de Pedro, a palavra poética torna-se um anúncio e uma denúncia profética, expressada com total claridade, como sendo a obrigação de quem tem o dever de pastorear um povo cuja dignidade foi espezinhada.
1. Pedro-poeta
Em primeiro lugar, o Pedro-poeta a partir do qual ele se definiu muitas vezes:
“A poesia tem significado e significa muito para mim. Às vezes penso que se eu sou alguma coisa é isso, um poeta. E que mesmo como religioso e como sacerdote e como bispo, sou um poeta. Eu sinto, digo ou faço muitas coisas porque sou poeta. Você sabe que para mim poesia é a palavra emocionada, a realidade intuída e expressada em uma palavra de emoção.”
(T. Cabestrero, Diálogos en Mato Grosso con Pedro Casaldáliga, Salamanca, Sígueme 1978, 175).
Poesia, acrescento, para cantar a beleza sem tentar dissecá-la, e poesia para gritar tanta dor sem banalizá-la.
Pedro-poeta encontrou em seus versos-sem-verso a sua saída e o nosso consolo. Ele descobriu os logos poéticos como uma arma pacífica para se defender e explicar: “Depois do sangue, a palavra é o maior “poder”. Através dela se diz a si mesmo e diz o Universo, o Próximo, o Povo, a Morte, a Vida, Deus, calorosamente” (T. Cabestrero, El sueño de Galilea. Confesiones eclesiales de Pedro Casaldáliga, Madri, Claretianas 1992, 131).
A través de uma palavra poética que nasce dos lábios bem abertos e os punhos bem apertados, Casaldáliga nomeou, resgatou e recriou tudo (natureza, homem, histórias,…) a partir da sua profunda experiência do Mistério -com letra maiúscula- que o transformou em um verdadeiro místico “de olhos abertos” (J.B. Metz), ou seja: aquele que suspeita e descobre Deus onde Ele não parece estar: no cinzento sem sentido e no sofrimento inocente.
Lendo sua poesia, descubro que existe, por um lado, uma necessidade inevitável de nomear o Mistério (em linguagem não dogmática) e, por outro lado, um modesto respeito pelo Último para evitar manipulá-lo e não tentar esgotá-lo ou defini-lo. Para iluminar o primeiro, como testemunha de um Mistério que o envolve, o transborda e o impulsiona a se comunicar, basta lembrar:
“Yo hago versos y creo en Dios.
Mis versos
andan llenos de Dios, como pulmones
llenos del aire vivo”.
Primeiro ele se declara poeta… e depois crente!
A realidade é que Pedro está cheio de Deus. Seus pulmões, suas entranhas, seus desejos estão cheios de Deus e por isso ele precisa compartilhar esta Boa Nova. Falando de si mesmo, ele reconhece:
“Se eu não falasse de Deus e de Jesus seu Filho, sentir-me-ia como um traidor, mudo, morto. Distâncias apostólicas salvas, “o que seria de mim se eu não evangelizar”, o que seria de mim se eu fizesse poesia que não fosse evangélica, que não evangelizasse!”
(T. Cabestrero, El sueño…, 133).
O Mistério deve ser dito porque é uma parte essencial da vida; ele deve ser preservado, gritado e mantido em silêncio:
EL MISTERIO
Os quedaréis sin la vida
si le quitáis el misterio.
Hay que salvar el aroma
de la madera cortada.
La mano de Dios confina
con las murallas del mundo,
con la esperanza del hombre.
Jugarse el tipo, de gracia,
como los niños que juegan.
Servir bajo el día a día.
Crecer contra la evidencia.
Decir siempre una palabra
última de lucha, para
caer luego de rodillas
en silencio.
Silêncio e palavra; palavra e silêncio:
“Derramando palabras,
de mis silencios vengo
y a mis silencios voy.
Y en Tus silencios labras
el grito que sostengo
y el silencio que soy”.
E neste derramar de palavras que procuram nomear o Inamável, o poeta está consciente do risco constante de manipulação em que corremos quando falamos do Totalmente Outro:
“Como podemos deixar você ser apenas você mesmo, / sem reduzi-lo, sem manipulá-lo?”.
Manipulação que muitas vezes anda de mãos dadas com o fato de confundir Deus com nossas experiências e representações, sempre nossas e portanto sempre falíveis, sempre gaguejando, como ele escreve em uma de suas “Antifonas”:
“Direi de ti / minha última palavra / (Sempre penúltima / e sempre minha)”.
Quanto temos para aprender aqueles que temos a possibilidade de falar de Deus: bispos, padres, teólogos, catequistas, pregadores… Serão sempre nossas palavras interpretando o Inefável, pois conhecemos verdadeiramente Deus… mas o conhecemos como conhecemos todas as outras realidades: à maneira humana.
Para concluir esta primeira abordagem, gostaria de citar algumas palavras do próprio Casaldáliga, nas quais ele define sua vocação poética:
“A poesia é a resposta sensibilizada a tudo e a todos, em um encontro que pulsa a alma e compromete as opções. A minha prática poética é “no caminho”: vivendo, tocado por um momento forte, movido por um encontro, por uma leitura, evocando, sonhando com o amanhã, rezando”
(T. Cabestrero, O sonho…, 131).
Uma poesia, eu diria, nascida de um coração peregrino e amoroso, e de pés cansados e descalços, como sugere no poema “Pensa também com os pés”:
PIENSA TAMBIÉN CON LOS PIES
Piensa también
con los pies
sobre el camino
cansado
por tantos pies caminantes.
Piensa también, sobre todo,
con el corazón
abierto
a todos los corazones
que laten igual que el tuyo,
como hermanos,
peregrinos,
heridos también de vida,
heridos quizá de muerte.
Piensa vital, conviviente
conflictivamente hermano,
tiernamente compañero.
2. Pedro-profeta
Para Casaldáliga, a poesia e a profecia andam de mãos dadas:
“Para mim, todo poeta é um profeta (…). Veja que todo poeta escuta seu povo e o traduz em um grito, um clamor. Que todo poeta dá a seu povo, no momento histórico se for um poeta mais épico, ou a cada membro de seu povo no momento sentimental se for um poeta mais lírico, aquela palavra, aquela pista, aquele clima que os faz vibrar, que os faz viver.”
(T. Cabestrero, Diálogos…, 175-176).
Em primeiro lugar, ouvir e, em segundo lugar, verbalizar, emprestar palavras principalmente para os sem-voz. Poesia que brota da história concreta, de pés enlameados e de um coração comovido. A palavra comprometida nasce de seus lábios:
“Por causa de minha vocação pessoal e ideologia legítima, não acredito na poesia neutra. A pessoa é movida pela raiva diante da injustiça, da miséria e da arrogância. Comovemo-nos com compaixão diante dos pobres, diante do sofrimento humano.”
(T. Cabestrero, El sueño…, 133-134).
É esta santa raiva que leva um homem “no bom sentido da palavra, bom” (A. Machado), a lançar maldições como flechas disparadas contra as injustiças da história, reminiscente dos famosos “infortúnios” – “ai de vocês…” – do outro profeta, o profeta de Nazaré (cf. Mt 23,13 ss.):
TIERRA NUESTRA, LIBERTAD
(…)
¡Malditas sean
las cercas vuestras,
las que os cercan
por dentro,
gordos,
solos,
como cerdos cebados;
cerrando
con su alambre y sus títulos,
fuera de vuestro amor
a los hermanos!
(¡Fuera de sus derechos,
sus hijos
y sus llantos
y sus muertos,
sus brazos y su arroz!)
¡Cerrándoos
fuera de los hermanos
y de Dios!
¡Malditas sean
todas las cercas!
¡Malditas todas las
propiedades privadas
que nos privan
de vivir y de amar!
(…)
Mas toda essa denúncia, que em mais de uma ocasião desmascarou o pecado e o mal no mundo (e na igreja), é sustentada e iluminada por um horizonte firme de esperança:
“A morte continua sendo para mim a coisa mais séria da vida. Isso “me faz Páscoa”. Às vezes eu quase desesperei e perguntei a Deus por que tantas mortes estúpidas, aparentemente sem sentido, mortes por fome, por causa da distância, por não ter um mínimo de infra-estrutura, de cuidados médicos, etc., por tanta injustiça, “mortes morridas”, como dizem aqui, mortes que enlouqueceram. Por outro lado, é claro, a morte é “a Páscoa do Senhor”. Eu tenho fé, tenho esperança… aqui minha esperança afiou, afiou como uma lâmina enquanto eu cortei a carne da morte atual. Eu só posso esperar. Não há outra possibilidade.”
(T. Cabestrero, Diálogos…, 100)
Gostaria de iluminar esta característica de um profeta esperançoso com um dos muitos sonetos que ele escreveu sobre o assunto:
ENTONCES LO VEREMOS COMO ES
Porque lo espero a El, y porque espero
que, al encontrarlo, todos nos veamos
restablecidos por el sol primero
y el corazón seguro de que amamos;
porque no acepto esa mirada fría
y creo en el rescoldo que ella esconde;
porque tu soledad también es mía;
y todo yo soy una herida, donde
alguna sangre mana; y donde espera
un muerto, yo reclamo primavera,
muerto con él ya antes de mi muerte;
porque aprendí a esperar a contramano
de tanta decepción: te juro, hermano,
que espero tanto verLo como verte.
E deixe-me sublinhar apenas três características: o céu, a felicidade última, o destino último do homem, não será apenas ver e abraçar Deus, mas também todos aqueles que nos precederam (de uma forma particular, as vítimas de várias injustiças): “Espero tanto vê-Lo quanto vê-los”.
Em segundo lugar, este compromisso com o abraço ressuscitado é validado na capacidade anterior de morrer com aqueles que morreram antes de seu tempo:
“donde espera
un muerto, yo reclamo primavera,
muerto con él ya antes de mi muerte”,
E, finalmente, o convite que o poeta nos faz para “esperar na contramão / de tanta decepção”, que nos convida a pensar agora, cada um de nós, quais foram e são as decepções -pessoais e institucionais- com as quais e apesar das quais continuamos a acreditar, esperar e amar.…
3. Pedro-Pastor
E a última perspectiva que quero compartilhar neste rápido esboço de um retrato é a de Pedro-pastor, lembrando que ele só aceitou ser consagrado bispo quando se sentiu “fraternalmente pressionado” e convencido por seu próprio povo a aderir a esse ministério de serviço. Nascido poeta, ele foi “feito” bispo, como ele comenta com ironia sutil:
“Para informação dos amigos e sem qualquer discussão possível, é bom registrar a opinião de ninguém menos que o Papa João Paulo II, que também é poeta: “É mais fácil fazer um bom poeta do que fazer um bom bispo”. E ele o disse de mim quando, em sua primeira viagem ao Brasil, eu lhe dediquei aquele poema “João Paulo, Pedro só”. Já se sabe que o poeta nasce, mas, até o momento, os bispos se fazem.”
(T. Cabestrero, El sueño…, 132)
Desde o início, o simbolismo marcou todo o programa de seu ministério pastoral: ele nunca usou um bastão “tradicional”, anel ou mitra, mas um remo, um anel de palmeira (tucum) e um chapéu de palha. Todos esses elementos se referem àquela terra indígena oprimida e incomodam, pois, ainda hoje, são tantos sinais mantidos e que têm muito a ver com o Império Romano de outrora e pouco a ver com uma igreja samaritana. As palavras que ele escreveu no cartão de convite para comemorar sua consagração episcopal são comoventes – e, imagino, desafiadoras para mais de um bispo (23-10-1971):
“Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo; o sol e o luar; a chuva e o sereno; o olhar dos pobres com quem caminhas e o olhar gloriosos de Cristo, o Senhor. Teu báculo será a verdade do Evangelho e a confiança do teu povo em ti. Teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador e ao povo desta terra. Não terás outro escudo senão a força da Esperança e a Liberdade dos filhos de Deus, nem usarás outra luva que o serviço do Amor”.
Ele nunca aceitou ser chamado por aqueles títulos que abundam e são tão populares em certos setores eclesiásticos, mas têm tão pouco a ver com o Evangelho: monsenhor, excelência, ilustre, santidade, eminência, etc… Ele pediu para ser chamado “Pedro” ou “Pedrinho”. O fato é que ele nunca deixou de sonhar com outra igreja que – além de ser uma, santa, católica e apostólica – tenha a nudez como sua característica definidora:
Yo, pecador y obispo, me confieso
de soñar con la Iglesia
vestida solamente de Evangelio y sandalias.
Este verso me lembra uma imagem do ano passado, em uma das celebrações fúnebres, onde Pedro descansava com os pés descalços, apenas cobertos com o livro da Palavra. Um símbolo de sua procura pelo Reino na igreja. Uma igreja despojada de superficialidades, de ritos insignificantes e palavras vazias, a fim de concentrar-se no essencial da pobreza:
POBREZA EVANGÉLICA
No tener nada.
No llevar nada.
No poder nada.
No pedir nada.
Y, de pasada,
no matar nada;
no callar nada.
Solamente el Evangelio,
como una faca afilada.
Y el llanto y la risa en la mirada.
Y la mano extendida y apretada.
Y la vida, a caballo, dada. Y
este sol y estos ríos
y esta tierra comprada,
por testigos de la Revolución ya estallada.
¡Y mais nada!
“Sonhar com uma igreja diferente também implica apressar a utopia, incentivando e implementando reformas concretas”. Em um relatório de 1986 – 30 anos antes de o Papa Francisco fazer dele um item prioritário na agenda eclesial -, listando algumas das sombras da Igreja, Pedro denunciou: “A lentidão pseudo-eterna de nossas reformas em cúrias e códigos. Especialista na eternidade, a Igreja frequentemente deixa o Tempo passar…”. (P. Casaldáliga, Al acecho del Reino, Madrid, Nueva Utopía 1989, 179).
E, eu acrescentaria, deixar o tempo passar não é apenas uma questão cronológica, mas uma questão kairológica: “O mal não será / perder o trem da História, / mas perder o Deus vivo / que viaja naquele trem”. E sem certas reformas que não são apenas urgentes, mas impossíveis de adiar mais, será a igreja que verá este trem passar.
Pedro do Araguaia, porque primeiro ele fez com seu exemplo em São Félix, depois teve a coragem de questionar Pedro de Roma, naquele poema duro dedicado a João Paulo II:
“Deja la curia, Pedro,
desmantela el sinedrio y la muralla,
ordena que se cambien todas las filacterias impecables
por palabras de vida, temblorosas”.
Pedro lutou por uma igreja pobre, dos pobres e para os pobres… para que não houvesse mais pobres! Porque ele estava convencido de que o que Deus quer é a igualdade de todos os seus filhos para que eles possam viver em verdadeira e livre fraternidade, como escreveu em um poema irônico intitulado “Igualdade”:
“Si Cristo es
la riqueza
de los pobres,
¿por qué no es
la pobreza
de los ricos,
para ser
la igualdad
de todos?”
E uma observação final para sublinhar a harmonia com a tão falada “igreja em saída”. No poema já citado, dedicado a um predecessor (“Deixe a cúria, Pedro”), ele o exorta -e, nele, a todos os crentes- a se deslocarem em direção às periferias, onde o Povo (sobre)vive, abandonado. Eu cito apenas alguns versos:
Vamos al Huerto de las bananeras,
revestidos de noche, a todo riesgo,
que allí el Maestro suda la sangre de los Pobres.
La túnica inconsútil es esta humilde carne destrozada,
el llanto de los niños sin respuesta,
la memoria bordada de los muertos anónimos.
Legión de mercenarios acosan la frontera de la aurora naciente
y el César los bendice desde su prepotencia.
En la pulcra jofaina Pilatos se abluciona, legalista y cobarde.
El Pueblo es sólo un «resto»,
un resto de Esperanza.
No Lo dejemos sólo entre guardias y príncipes.
Es hora de sudar con Su agonía,
es hora de beber el cáliz de los Pobres
y erguir la Cruz, desnuda de certezas,
y quebrantar la losa—ley y sello— del sepulcro romano,
y amanecer
de Pascua.
Para concluir este rápido e incompleto esboço de sua cativante figura, gostaria de lembrar um pequeno poema que, talvez, possa resumir seu triplo ministério como poeta, profeta e pastor ou, melhor ainda, qual era toda sua vocação: buscar o verdadeiro e sempre inatingível Rosto de Deus para modelar e mudar sua própria vida e, então, oferecê-la como uma “condição de possibilidade” para humanizar um pouco mais a Igreja e o Mundo, desde sua proposta programática de “Humanizar a humanidade praticando a proximidade”:
Para cambiar de vida
hay que cambiar de Dios.
Hay que cambiar de Dios
para cambiar la Iglesia.
Para cambiar el Mundo
hay que cambiar de Dios
Autor: Michael Moore.
Tradução: Raul Vico, Fundação Pedro Casaldáliga.
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