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Missa dos Quilombos: Celebrando a Resistência e a Cultura Negra

Missa dos Quilombos: Celebrando a Resistência e a Cultura Negra

A “Missa dos Quilombos” foi celebrada em 20 de novembro de 1981 na cidade de Recife (PE), para mais de 8 mil pessoas. É considerada uma expressão artística e religiosa que busca honrar a luta e a resistência do povo negro no Brasil.

A Missa dos Quilombos combina elementos da tradição católica com ritmos e melodias afrobrasileiras, criando uma fusão única de música sacra e folclore. A obra se inspira na história e cultura dos “quilombos”, que eram comunidades de pessoas negras fugitivas em busca de liberdade e autonomia durante a época da escravidão no Brasil.

A Missa dos Quilombos é uma homenagem à cultura negra, uma celebração da resistência e um lembrete da importância da justiça social e inclusão na sociedade brasileira e além.

 

Em nome de um suposto Deus branco e colonizador, que nações cristãs têm adorado como se fosse o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, milhões de negros foram submetidos, durante séculos, à escravidão, desespero e morte. No Brasil, na América, na mãe África, no mundo.

Deportados como “peças” da ancestral Aruanda, eles encheram os canaviais e minas de mão de obra barata e inundaram os povoados com indivíduos sem cultura, clandestinos, inviáveis. (Ainda hoje, eles preenchem de subgente – para os senhores brancos e senhoras brancas e a lei dos brancos – as cozinhas, os cais, os bordéis, as favelas, os subúrbios, as prisões).

Para escândalo de muitos fariseus e alívio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos confessa diante de Deus e da História essa máxima culpa cristã.

Mas um dia, uma noite, surgiram os Quilombos, e entre eles, o Sinai Negro de Palmares, e nasceu, de Palmares, o Moisés Negro, Zumbi. E a liberdade impossível e a identidade proibida floresceram, “em nome do Deus de todos os nomes”, “que faz toda carne, negra e branca, vermelha no sangue”.
Vindos “do fundo da terra”, “da carne do flagelo”, “do exílio da vida”, os Negros decidiram forçar “as novas Alvoradas” e reconquistar Palmares e retornar à Aruanda.

E estando ali, de pé, quebrando as muitas correntes em casa, na rua, no trabalho, na igreja, resplandecentemente negros sob o sol da Luta e da Esperança.

Cartaz da Missa dos Quilombos

Cartaz do CD gravado posteriormente com a música da Missa dos Quilombos

Para escândalo de muitos fariseus e alívio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos confessa diante de Deus e da História essa máxima culpa cristã.

Na música do negro minerador Milton e de seus cantores e músicos, oferece ao único Senhor “o trabalho, as lutas, o martírio do Povo Negro de todos os tempos e lugares”.

Como toda verdadeira Missa, a Missa dos Quilombos é pascal.

E garante ao Povo negro a Paz conquistada da Liberação. Pelos rios do sangue negro, derramado no mundo. Pelo sangue do Homem “sem figura humana”, sacrificado pelos poderes do Império e do Templo, mas ressuscitado da Ignomínia da Morte pelo Espírito de Deus, seu Pai.

Como toda verdadeira Missa, a Missa dos Quilombos é pascal: celebra a Morte e a Ressurreição do Povo Negro, na Morte e Ressurreição de Cristo.

Pedro Tierra e eu já empenhamos nossa palavra, iradamente fraterna,

com a Causa dos Povos indígenas, com a “Missa da Terra sem males”; e agora empenhamos a mesma palavra com a Causa do Povo Negro, com essa Missa dos Quilombos.

Chegou a hora de cantar o Quilombo que está por vir: estamos no momento de celebrar a Missa dos Quilombos, na esperança rebelde, com todos “os Negros da África, os Afros da América, os Negros do Mundo, em Aliança com todos os pobres da Terra”.

Pedro Casaldáliga. Apresentação da Missa dos Quilombos, 1982

Se quiserem ouvir a Missa, acessem aqui:

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A minha espiritualidade

A minha espiritualidade

Em nosso livro “Espiritualidade da libertação”, José María Vigil e eu reconhecemos, já na primeira linha do primeiro capítulo, que “espiritualidade” é uma palavra infeliz, desmoralizada, pelo abuso teórico e prático com que foi usada – ainda é – como uma esfera distante da vida real, como espiritualismo desencarnado e fuga do compromisso. Se a espiritualidade deriva do “espírito”, e se o espírito se opõe à matéria, ao corpo, uma pessoa será espiritual quando viver sem se preocupar com o que é material, nem mesmo com o próprio corpo, instalando-se em realidades espirituais etéreas.

Essa concepção de espírito e espiritualidade como realidades opostas ao material do corpóreo, vem da cultura grega. Nas culturas indígenas não é assim. E nem no mundo cultural semítico da Bíblia. A palavra de Deus é muito mais abrangente.

Nesta última década, depois de algumas decepções, aprendendo com a história e através de um verdadeiro processo de amadurecimento, devemos reconhecer, agradecidos a Deus que nos acompanha e aos irmãos e irmãs que deram seu sangue por nós, aquela “espiritualidade” não é mais uma palavra infeliz. Hoje é um horizonte que precisamos, um grito que vem de dentro, água viva para nossa caminhada. Há uma autêntica e profunda sede de espiritualidade nas comunidades eclesiais, nos agentes pastorais, nos militantes cristãos, nos jovens mais alertas.

Multiplicam-se encontros, publicações, conferências, entidades que estudam, propagam e dinamizam a espiritualidade e, mais especificamente, a nossa espiritualidade. A cada dia há mais pessoas que querem “beber do próprio poço”.

1. O que então é espiritualidade?

O espírito de uma pessoa é a profundidade e a dinâmica de seu próprio ser: suas maiores e últimas motivações, seu ideal, sua utopia, sua paixão, o misticismo pelo qual vive e luta e com o qual se contagia.

“Espírito” é o substantivo concreto, e “espiritualidade” é o substantivo abstrato. Na linguagem comum, essas duas palavras são usadas de forma intercambiável: “Fulano tem muito espírito, tem uma espiritualidade profunda”.

Quando dizemos de alguém que “não tem espírito”, queremos afirmar que não tem paixão, nem ideal, nem vida profunda. É mais que uma pessoa, é um baú, é uma máquina.

Existem diferentes espíritos, sim. E é necessário discernir. Segundo alguns códices, quando os apóstolos sonhavam ou agiam fora do Reino, Jesus os advertia: “Vocês não sabem qual espírito são” (Lc 9,55). Existe um espírito mau e um espírito bom. Não é que se fala e se escreve sobre “o espírito do capitalismo”, sobre o “espírito do mercado neoliberal”?

2. A espiritualidade é herança de todos os seres humanos

Cada pessoa é animada por uma ou outra espiritualidade, porque cada ser humano – cristão ou não, religioso ou não – também é fundamentalmente também um ser espiritual. Cada mulher, cada homem é mais do que apenas biologia. E é essa outra coisa, ou muito mais, que os distingue do simples animal. Religiões e filosofias designam essa realidade misteriosa, mas real, como “espírito”. Perder essa dimensão profunda é deixar de ser humano, é tornar-se brutalizado. Paul Tillich fala disso “dimensão perdida” como da grande tragédia de nossos tempos materialistas e consumistas.

3. Toda espiritualidade também é algo religioso?

Se entendermos a palavra “religião” como uma referência explícita a Deus, devemos reconhecer que existem espiritualidades não religiosas, pessoas com muita espiritualidade, com profundos ideais de luta e serviço, que são ateus ou agnósticos. “Não hesitamos em afirmar que existem não apenas espiritualidades não cristãs, mas também não crentes”, escreve A.M. Benard.

No entanto, para nós, que cremos em Deus como presença felizmente “inevitável” e animadora de nossas vidas, água e luz de todo bom pensamento e de toda ação honesta, espiritualidade sincera, essa profundidade humana radical, é sempre “religiosa”. O grande mestre Orígenes disse que “Deus é isso que a gente coloca acima de tudo”. E o inquieto bispo de Hipona, Santo Agostinho, escreveu em suas “confissões” que “Deus é mais íntimo de mim do que minha própria intimidade”.

No entanto, não é a religiosidade que faz a verdade ou mentira de uma vida humana, mas a autenticidade dessa própria vida. “Em espírito e em verdade o Pai quer ser adorado”, lembrou Jesus à mulher samaritana junto ao poço de Jacó (Jo 4,23).

4. A nossa espiritualidade é cristã

À luz da fé cristã (há uma fé religiosa quíchua, uma fé religiosa islâmica, uma fé religiosa hindu) descobrimos a presença de Deus no cosmos, na vida humana e na história como amor gratuito e salvação precisamente porque Jesus, filho de Deus e filho de Maria de Nazaré, com a sua palavra, ação, morte e ressurreição, faz-nos entrar vitalmente nessa descoberta. A partir desse encontro de fé, nossa espiritualidade só pode ser “religiosa” (como uma volta ao Deus vivo, revelado por Jesus) e até “cristã” (como o próprio seguimento de Jesus).

O Deus de Jesus é o nosso Deus. Ele é a profundidade máxima da nossa vida.

A causa de Jesus é a nossa causa.

O nosso viver é Cristo (Fl 1,21). Ele é nossa paixão e seu espírito é nossa espiritualidade.

5. Nossa espiritualidade

Nossa espiritualidade é nossa em dois sentidos:

  1. Porque é uma espiritualidade personalizada, porque vivemos consciente e livremente na condição de adultos também na fé, com a totalidade do nosso ser humano, em todas as dimensões da nossa vida. Eu sou minha espiritualidade. Ninguém a vive por mim.
  2. Porque é uma espiritualidade explicitamente latino-americana; e, de forma clara, espiritualidade de libertação.

Antes de mais nada, é preciso sublinhar esse aspecto, que oportunamente a modernidade (também a pós-modernidade, a seu modo) trouxe à tona e que nos liberta do gregário, da infantilidade e, por fim, de uma possível e justificada deserção.

A espiritualidade ou é personalizada ou não é espiritualidade. Ou abrange todas as dimensões do meu ser (alma e corpo, pensamento e vontade, sexo e fantasia, palavra e ação, interioridade e comunicação, contemplação e luta, gratuidade e compromisso) ou não será minha, não vou me realizar nela, vai acabar me mutilando.

Foi um prazer oferecer aos meus companheiros e companheiros de caminhada um quadro de referências que muito me serviu na vida, depois de ter experimentado, em determinados momentos, sobretudo nas formações, métodos reducionistas ou unilateralidades que nos angustiavam e reprimiam a realização e a amplitude do espírito.

Assim como corrigir uma formação espiritual dispersa ou mutilada, por ser contador ou por ser dicotômica e unilateral, e ser a síntese da própria existência (esse é o desafio!), devemos pensar a vida assim:

Toda a nossa vida é:

  • um problema (na fé, um mistério);
  • um desafio (na fé, uma missão);
  • um espaço (na fé, dom, graça); que devemos assumir com certas atitudes (geradas por certos atos e que, por sua vez, geram práxis);
  • através de certas mediações (psicológicas, sociológicas, políticas, pastorais, evangélicas…);
  • com vista à opção fundamental, que dará sentido, força, alegria e vitória às nossas vidas.

Ao longo deste texto – e espero, sobretudo, ao longo da vida de cada um – o que quero dizer quando falo da “nossa” espiritualidade cristã aparecerá melhor. O espírito é quem sabe. É ele quem ensina aqueles que quiserem entrar em sua escola gratuita e amorosa. De minha parte, sinto-me cada vez menos legitimado para dar lições de espiritualidade, porque a vida não se ensina. Ninguém pode substituir o Mestre, que é o Espírito de Deus, nem mesmo o discípulo, que é o espírito de cada um de nós.

Posso indicar onde tropecei, sim, e compartilhar alegrias e descobertas; porque também é verdade que, em Cristo, somos um só corpo e que o espírito que nos anima é um só (cf. 1 Cor 12,12, s).

Em nosso livro “Espiritualidade da libertação”, explicamos detalhadamente o que entendemos por Espírito/espírito/espiritualidade; os diferentes significados dessas palavras, a complementaridade com que a espiritualidade “natural” e “latino-americana” deve ser vivida, assim como a espiritualidade “cristã”, por uma pessoa simultaneamente humana, batizada e latino-americana. Para tanto, nosso livro está dividido em três grandes capítulos: I. O Espírito e a Espiritualidade; II. O Espírito libertador em nossa Pátria Grande; III. No espírito de Jesus Cristo libertador.

A esses três capítulos acrescentamos “as 7 características do novo povo”, conscientes de que “de novas mulheres e novos homens nasce o novo povo”:

  1. lucidez crítica;
  2. contemplação na caminhada;
  3. a liberdade dos pobres;
  4. solidariedade fraterna;
  5. a cruz e o conflito;
  6. a insurreição evangélica (a revolução de as Boas Novas);
  7. a tenaz esperança da Páscoa.

E apresentamos também as “constantes da espiritualidade da libertação”:

  • profundidade pessoal;
  • reinocentrismo;
  • uma espiritualidade do cristão essencial e universal;
  • a localização: na realidade, na história, no lugar, nos pobres, na política;
  • a crítica;
  • a práxis;
  • a integralidade, sem dicotomias e sem reducionismos.

Com outras palavras, mais ou menos sinônimas, poderíamos também caracterizar a espiritualidade da libertação como:

  • Cristológica, da prática de Jesus, em seu seguimento;
  • situada, localizada, política, histórica; um “tropeçar no Deus dos pobres” (Leonardo Boff), encontrar Deus nas práticas mais cotidianas, mais sociais, mais comunitárias;
  • na cruz da profecia e do conflito, assumida para a Páscoa;
  • “entre livre e exigente” (G. Gutiérrez);
  • ser contemplativa na libertação, decodificando o Reino ou o Anti-Reino na realidade, aqui e agora;
  • enraizada em nossas culturas e história;
  • herdeira comprometida com o sangue de mártir;
  • profeticamente alternativa ao sistema de morte e exclusão;
  • em uma co-responsabilidade eclesial, adulta, livre e serena;
  • em espírito ecumênico e macroecumênico;

6. Hoje, aqui

Toda a América Latina, que faz parte do terceiro mundo, vive uma hora de globalização, de neoliberalismo, de pós-modernidade. Esta hora certamente tem muito “poder das trevas”, mas pode ter muito mais se acreditarmos no espírito, “caídos do Reino”.

Há, sem dúvida, uma crise de estratégias libertadoras “clássicas”, uma confusão entre os militantes, um sentimento de “sem saída”, de depressão psicossocial. Para muitos discípulos e discípulas, nesta noite ao longo do caminho para a segurança, a sensação de baixa hora é a mesma dos discípulos de Emaús desanimados: “Nós esperávamos que …” (Lc 24:21). Acrescente, para maior desorientação, aquela avalanche de fundamentalismos, exotismos e esoterismos que convulsionam o mundo.

A globalização está se impondo como neoliberal, com um sistema único, com um mercado total, mercantilizante da vida humana, idólatra, com uma escatologia imediata em um estúpido “fim da história”, imoladora da maioria nas garras do progresso consumista, privatizadora da sociedade, sem alternativa socializadora possível.

A pós-modernidade nega o radicalismo espiritual, o compromisso, a utopia; substitui a ética pela estética, o utópico pelo fruitivo; ignora os pobres e negligencia a justiça; renuncia às “grandes histórias”; é narcisista: dizem até que fomos de Prometeu a Narciso. Tudo na vida deve ser light, de acordo com o momento e o instinto.

Eu mesmo tenho alertado, ao longo do tempo, diante de três grandes tentações que nos esperam nesta hora neoliberal da “noite escura dos pobres” e de seus aliados: a tentação de renunciar à memória e à história; a tentação de renunciar à cruz e à militância; a tentação de desistir da esperança e da utopia.

De nossa parte, acreditamos que a globalização legítima, a outra globalização, é a vontade do único Deus, o destino da família humana, que é uma, em uma casa na terra e no céu. Intercomunicação, intersolidariedade, autoridade plural na unidade humana, o concerto universal de todos os povos, respeitados igualmente, complementares entre si, todas as pessoas “iguais e diferentes” ao mesmo tempo, na macro-harmonia da criatura que Deus sonhou.

Acreditamos também em uma legítima modernidade/pós-modernidade que potencializa a autonomia, a subjetividade, a liberdade, a igualdade, os sonhos lúcidos e prazerosos, a fricção do cosmos e da vida, cantando diariamente as águas próximas, na interioridade, na família, na amizade , na cidadania; a integração da pessoa humana na festa da criação divina.

Na Igreja deste tempo entramos, há muito tempo, segundo o teólogo Rahner, numa espécie de inverno involucionista, depois da bela primavera inaugurada pelo Concílio Vaticano II. Víctor Codina fala de “medo e insegurança na Igreja”. Muitos medos, muitas perplexidades, muitos cortes, muitas irritações. O mesmo Jubileu do ano 2000 – mais do que legítimo para a celebração penitencial e agradecimento da nossa fé e da história da nossa Igreja – pode tornar-se uma fuga, uma festa católica ou cristã, quando poderia ser o momento forte de renunciar profeticamente ao anti-Reino neoliberal e de anunciar profeticamente o Reino de Deus de vida de justiça e paz: O porquê e para que Deus se tornou em Jesus Cristo o Deus -tão-completamente -conosco-!

Também, falando da igreja, podemos cantar, em troca,  muitas realizações esperançosas, na espiritualidade, na liturgia, na teologia, na experiência bíblica; nas comunidades eclesiais, na vida religiosa e inserida, nas pastorais específicas; na diversidade dos mistérios, no profetismo de leigos e leigas, com uma crescente presença conquistadora de mulheres também no altar; no ecumenismo das bases e de alguns dirigentes generosos; no diálogo inter-religioso ou macroecumênico; na presença e participação da Igreja comprometida com a luta pelos direitos humanos, pela cidadania, pela ecologia, pela terra, pela saúde, pela habitação, pela educação, pela comunicação.

O bispo mártir da Argentina, Enrique Angelelli, pastor do “interior”, durante o período de ditadura militar em seu país, proclamou uma esperança inabalável com estas palavras evangélicas: “Estou feliz por viver nos tempos em que vivo. Tudo o que estamos vivenciando é certamente cheio de vida. A Igreja torna-se mais evangélica, mais simples, mais missionária, comprometida com o seu povo. Quando nós cristãos limpamos nossa cara suja e transformamos nosso coração de carne em coração pascal, é a Igreja que vive; nossa Igreja rejuvenesce, caminha e se torna mais servidora, louvando o Pai dos Céus. É ali que nossa Igreja se fortalece com o poder do Espírito Santo. Torna-se mais livre e não se prende a interesses que o tornam infiel à sua missão. Brilha melhor como o grande sacramento de Jesus Cristo entre nós”.

Nós também, como Angelelli, podemos nos sentir felizes – ele em meio a uma ditadura militar, nós em meio ao neoliberalismo – desde que, como ele, nos despojemos e nos comprometamos, desde que troquemos nosso coração de pedra por um “coração de Páscoa”.

 

Pedro Casaldáliga
Nossa espiritualidade
[Pode baixar e/ou ler livremente esta obra de Casaldáliga, no original em espanhol]

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Pedro Casaldáliga: poeta

Pedro Casaldáliga: poeta

Gostaria de evocar aqui a memória de Pedro Casaldáliga, tentando esboçar um pouco de sua figura multifacetada, concentrando-se em três características de sua personalidade: seu ser poeta, seu ser profeta e seu ser pastor. Combinando os três -que se iluminam e se alimentam mutuamente- e por meio de uma “fórmula” introdutória, eu diria: Na vida de Pedro, a palavra poética torna-se um anúncio e uma denúncia profética, expressada com total claridade, como sendo a obrigação de quem tem o dever de pastorear um povo cuja dignidade foi espezinhada.

1. Pedro-poeta

Em primeiro lugar, o Pedro-poeta a partir do qual ele se definiu muitas vezes:

“A poesia tem significado e significa muito para mim. Às vezes penso que se eu sou alguma coisa é isso, um poeta. E que mesmo como religioso e como sacerdote e como bispo, sou um poeta. Eu sinto, digo ou faço muitas coisas porque sou poeta. Você sabe que para mim poesia é a palavra emocionada, a realidade intuída e expressada em uma palavra de emoção.”

(T. Cabestrero, Diálogos en Mato Grosso con Pedro Casaldáliga, Salamanca, Sígueme 1978, 175).

Poesia, acrescento, para cantar a beleza sem tentar dissecá-la, e poesia para gritar tanta dor sem banalizá-la.

Pedro-poeta encontrou em seus versos-sem-verso a sua saída e o nosso consolo. Ele descobriu os logos poéticos como uma arma pacífica para se defender e explicar: “Depois do sangue, a palavra é o maior “poder”. Através dela se diz a si mesmo e diz o Universo, o Próximo, o Povo, a Morte, a Vida, Deus, calorosamente” (T. Cabestrero, El sueño de Galilea. Confesiones eclesiales de Pedro Casaldáliga, Madri, Claretianas 1992, 131).

A través de uma palavra poética que nasce dos lábios bem abertos e os punhos bem apertados, Casaldáliga nomeou, resgatou e recriou tudo (natureza, homem, histórias,…) a partir da sua profunda experiência do Mistério -com letra maiúscula- que o transformou em um verdadeiro místico “de olhos abertos” (J.B. Metz), ou seja: aquele que suspeita e descobre Deus onde Ele não parece estar: no cinzento sem sentido e no sofrimento inocente.

Lendo sua poesia, descubro que existe, por um lado, uma necessidade inevitável de nomear o Mistério (em linguagem não dogmática) e, por outro lado, um modesto respeito pelo Último para evitar manipulá-lo e não tentar esgotá-lo ou defini-lo. Para iluminar o primeiro, como testemunha de um Mistério que o envolve, o transborda e o impulsiona a se comunicar, basta lembrar:

“Yo hago versos y creo en Dios.
Mis versos
andan llenos de Dios, como pulmones
llenos del aire vivo”.

Primeiro ele se declara poeta… e depois crente!

A realidade é que Pedro está cheio de Deus. Seus pulmões, suas entranhas, seus desejos estão cheios de Deus e por isso ele precisa compartilhar esta Boa Nova. Falando de si mesmo, ele reconhece:

“Se eu não falasse de Deus e de Jesus seu Filho, sentir-me-ia como um traidor, mudo, morto. Distâncias apostólicas salvas, “o que seria de mim se eu não evangelizar”, o que seria de mim se eu fizesse poesia que não fosse evangélica, que não evangelizasse!”

(T. Cabestrero, El sueño…, 133).

O Mistério deve ser dito porque é uma parte essencial da vida; ele deve ser preservado, gritado e mantido em silêncio:

EL MISTERIO

Os quedaréis sin la vida
si le quitáis el misterio.

Hay que salvar el aroma
de la madera cortada.

La mano de Dios confina
con las murallas del mundo,
con la esperanza del hombre.

Jugarse el tipo, de gracia,
como los niños que juegan.
Servir bajo el día a día.
Crecer contra la evidencia.
Decir siempre una palabra
última de lucha, para
caer luego de rodillas
en silencio.

Silêncio e palavra; palavra e silêncio:

“Derramando palabras,
de mis silencios vengo
y a mis silencios voy.
Y en Tus silencios labras
el grito que sostengo
y el silencio que soy”.

E neste derramar de palavras que procuram nomear o Inamável, o poeta está consciente do risco constante de manipulação em que corremos quando falamos do Totalmente Outro:

“Como podemos deixar você ser apenas você mesmo, / sem reduzi-lo, sem manipulá-lo?”.

Manipulação que muitas vezes anda de mãos dadas com o fato de confundir Deus com nossas experiências e representações, sempre nossas e portanto sempre falíveis, sempre gaguejando, como ele escreve em uma de suas “Antifonas”:

“Direi de ti / minha última palavra / (Sempre penúltima / e sempre minha)”.

Quanto temos para aprender aqueles que temos a possibilidade de falar de Deus: bispos, padres, teólogos, catequistas, pregadores… Serão sempre nossas palavras interpretando o Inefável, pois conhecemos verdadeiramente Deus… mas o conhecemos como conhecemos todas as outras realidades: à maneira humana.

Para concluir esta primeira abordagem, gostaria de citar algumas palavras do próprio Casaldáliga, nas quais ele define sua vocação poética:

“A poesia é a resposta sensibilizada a tudo e a todos, em um encontro que pulsa a alma e compromete as opções. A minha prática poética é “no caminho”: vivendo, tocado por um momento forte, movido por um encontro, por uma leitura, evocando, sonhando com o amanhã, rezando”

(T. Cabestrero, O sonho…, 131).

Uma poesia, eu diria, nascida de um coração peregrino e amoroso, e de pés cansados e descalços, como sugere no poema “Pensa também com os pés”:

PIENSA TAMBIÉN CON LOS PIES

Piensa también
con los pies
sobre el camino
cansado
por tantos pies caminantes.

Piensa también, sobre todo,
con el corazón
abierto
a todos los corazones
que laten igual que el tuyo,
como hermanos,
peregrinos,
heridos también de vida,
heridos quizá de muerte.

Piensa vital, conviviente
conflictivamente hermano,
tiernamente compañero.

2. Pedro-profeta

Para Casaldáliga, a poesia e a profecia andam de mãos dadas:

“Para mim, todo poeta é um profeta (…). Veja que todo poeta escuta seu povo e o traduz em um grito, um clamor. Que todo poeta dá a seu povo, no momento histórico se for um poeta mais épico, ou a cada membro de seu povo no momento sentimental se for um poeta mais lírico, aquela palavra, aquela pista, aquele clima que os faz vibrar, que os faz viver.”

(T. Cabestrero, Diálogos…, 175-176).

Em primeiro lugar, ouvir e, em segundo lugar, verbalizar, emprestar palavras principalmente para os sem-voz. Poesia que brota da história concreta, de pés enlameados e de um coração comovido. A palavra comprometida nasce de seus lábios:

“Por causa de minha vocação pessoal e ideologia legítima, não acredito na poesia neutra. A pessoa é movida pela raiva diante da injustiça, da miséria e da arrogância. Comovemo-nos com compaixão diante dos pobres, diante do sofrimento humano.”

(T. Cabestrero, El sueño…, 133-134).

É esta santa raiva que leva um homem “no bom sentido da palavra, bom” (A. Machado), a lançar maldições como flechas disparadas contra as injustiças da história, reminiscente dos famosos “infortúnios” – “ai de vocês…” – do outro profeta, o profeta de Nazaré (cf. Mt 23,13 ss.):

TIERRA NUESTRA, LIBERTAD

(…)

¡Malditas sean
las cercas vuestras,
las que os cercan
por dentro,
gordos,
solos,
como cerdos cebados;
cerrando
con su alambre y sus títulos,
fuera de vuestro amor
a los hermanos!
(¡Fuera de sus derechos,
sus hijos
y sus llantos
y sus muertos,
sus brazos y su arroz!)
¡Cerrándoos
fuera de los hermanos
y de Dios!

¡Malditas sean
todas las cercas!
¡Malditas todas las
propiedades privadas
que nos privan
de vivir y de amar!

(…)

Mas toda essa denúncia, que em mais de uma ocasião desmascarou o pecado e o mal no mundo (e na igreja), é sustentada e iluminada por um horizonte firme de esperança:

“A morte continua sendo para mim a coisa mais séria da vida. Isso “me faz Páscoa”. Às vezes eu quase desesperei e perguntei a Deus por que tantas mortes estúpidas, aparentemente sem sentido, mortes por fome, por causa da distância, por não ter um mínimo de infra-estrutura, de cuidados médicos, etc., por tanta injustiça, “mortes morridas”, como dizem aqui, mortes que enlouqueceram. Por outro lado, é claro, a morte é “a Páscoa do Senhor”. Eu tenho fé, tenho esperança… aqui minha esperança afiou, afiou como uma lâmina enquanto eu cortei a carne da morte atual. Eu só posso esperar. Não há outra possibilidade.”

(T. Cabestrero, Diálogos…, 100)

Gostaria de iluminar esta característica de um profeta esperançoso com um dos muitos sonetos que ele escreveu sobre o assunto:

ENTONCES LO VEREMOS COMO ES

Porque lo espero a El, y porque espero
que, al encontrarlo, todos nos veamos
restablecidos por el sol primero
y el corazón seguro de que amamos;

porque no acepto esa mirada fría
y creo en el rescoldo que ella esconde;
porque tu soledad también es mía;
y todo yo soy una herida, donde

alguna sangre mana; y donde espera
un muerto, yo reclamo primavera,
muerto con él ya antes de mi muerte;

porque aprendí a esperar a contramano
de tanta decepción: te juro, hermano,
que espero tanto verLo como verte.

E deixe-me sublinhar apenas três características: o céu, a felicidade última, o destino último do homem, não será apenas ver e abraçar Deus, mas também todos aqueles que nos precederam (de uma forma particular, as vítimas de várias injustiças): “Espero tanto vê-Lo quanto vê-los”.

Em segundo lugar, este compromisso com o abraço ressuscitado é validado na capacidade anterior de morrer com aqueles que morreram antes de seu tempo:

“donde espera
un muerto, yo reclamo primavera,
muerto con él ya antes de mi muerte”,

E, finalmente, o convite que o poeta nos faz para “esperar na contramão / de tanta decepção”, que nos convida a pensar agora, cada um de nós, quais foram e são as decepções -pessoais e institucionais- com as quais e apesar das quais continuamos a acreditar, esperar e amar.…

3. Pedro-Pastor

E a última perspectiva que quero compartilhar neste rápido esboço de um retrato é a de Pedro-pastor, lembrando que ele só aceitou ser consagrado bispo quando se sentiu “fraternalmente pressionado” e convencido por seu próprio povo a aderir a esse ministério de serviço. Nascido poeta, ele foi “feito” bispo, como ele comenta com ironia sutil:

“Para informação dos amigos e sem qualquer discussão possível, é bom registrar a opinião de ninguém menos que o Papa João Paulo II, que também é poeta: “É mais fácil fazer um bom poeta do que fazer um bom bispo”. E ele o disse de mim quando, em sua primeira viagem ao Brasil, eu lhe dediquei aquele poema “João Paulo, Pedro só”. Já se sabe que o poeta nasce, mas, até o momento, os bispos se fazem.”

(T. Cabestrero, El sueño…, 132)

Desde o início, o simbolismo marcou todo o programa de seu ministério pastoral: ele nunca usou um bastão “tradicional”, anel ou mitra, mas um remo, um anel de palmeira (tucum) e um chapéu de palha. Todos esses elementos se referem àquela terra indígena oprimida e incomodam, pois, ainda hoje, são tantos sinais mantidos e que têm muito a ver com o Império Romano de outrora e pouco a ver com uma igreja samaritana. As palavras que ele escreveu no cartão de convite para comemorar sua consagração episcopal são comoventes – e, imagino, desafiadoras para mais de um bispo (23-10-1971):

“Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo; o sol e o luar; a chuva e o sereno; o olhar dos pobres com quem caminhas e o olhar gloriosos de Cristo, o Senhor. Teu báculo será a verdade do Evangelho e a confiança do teu povo em ti. Teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador e ao povo desta terra. Não terás outro escudo senão a força da Esperança e a Liberdade dos filhos de Deus, nem usarás outra luva que o serviço do Amor”.

Ele nunca aceitou ser chamado por aqueles títulos que abundam e são tão populares em certos setores eclesiásticos, mas têm tão pouco a ver com o Evangelho: monsenhor, excelência, ilustre, santidade, eminência, etc… Ele pediu para ser chamado “Pedro” ou “Pedrinho”. O fato é que ele nunca deixou de sonhar com outra igreja que – além de ser uma, santa, católica e apostólica – tenha a nudez como sua característica definidora:

Yo, pecador y obispo, me confieso
de soñar con la Iglesia
vestida solamente de Evangelio y sandalias.

Este verso me lembra uma imagem do ano passado, em uma das celebrações fúnebres, onde Pedro descansava com os pés descalços, apenas cobertos com o livro da Palavra. Um símbolo de sua procura pelo Reino na igreja. Uma igreja despojada de superficialidades, de ritos insignificantes e palavras vazias, a fim de concentrar-se no essencial da pobreza:

POBREZA EVANGÉLICA

No tener nada.
No llevar nada.
No poder nada.
No pedir nada.
Y, de pasada,
no matar nada;
no callar nada.
Solamente el Evangelio,
como una faca afilada.
Y el llanto y la risa en la mirada.
Y la mano extendida y apretada.
Y la vida, a caballo, dada. Y
este sol y estos ríos
y esta tierra comprada,
por testigos de la Revolución ya estallada.
¡Y mais nada!

“Sonhar com uma igreja diferente também implica apressar a utopia, incentivando e implementando reformas concretas”. Em um relatório de 1986 – 30 anos antes de o Papa Francisco fazer dele um item prioritário na agenda eclesial -, listando algumas das sombras da Igreja, Pedro denunciou: “A lentidão pseudo-eterna de nossas reformas em cúrias e códigos. Especialista na eternidade, a Igreja frequentemente deixa o Tempo passar…”. (P. Casaldáliga, Al acecho del Reino, Madrid, Nueva Utopía 1989, 179).

E, eu acrescentaria, deixar o tempo passar não é apenas uma questão cronológica, mas uma questão kairológica: “O mal não será / perder o trem da História, / mas perder o Deus vivo / que viaja naquele trem”. E sem certas reformas que não são apenas urgentes, mas impossíveis de adiar mais, será a igreja que verá este trem passar.

Pedro do Araguaia, porque primeiro ele fez com seu exemplo em São Félix, depois teve a coragem de questionar Pedro de Roma, naquele poema duro dedicado a João Paulo II:

“Deja la curia, Pedro,
desmantela el sinedrio y la muralla,
ordena que se cambien todas las filacterias impecables
por palabras de vida, temblorosas”.

Pedro lutou por uma igreja pobre, dos pobres e para os pobres… para que não houvesse mais pobres! Porque ele estava convencido de que o que Deus quer é a igualdade de todos os seus filhos para que eles possam viver em verdadeira e livre fraternidade, como escreveu em um poema irônico intitulado “Igualdade”:

“Si Cristo es
la riqueza
de los pobres,
¿por qué no es
la pobreza
de los ricos,
para ser
la igualdad
de todos?”

E uma observação final para sublinhar a harmonia com a tão falada “igreja em saída”. No poema já citado, dedicado a um predecessor (“Deixe a cúria, Pedro”), ele o exorta -e, nele, a todos os crentes- a se deslocarem em direção às periferias, onde o Povo (sobre)vive, abandonado. Eu cito apenas alguns versos:

Vamos al Huerto de las bananeras,
revestidos de noche, a todo riesgo,
que allí el Maestro suda la sangre de los Pobres.

La túnica inconsútil es esta humilde carne destrozada,
el llanto de los niños sin respuesta,
la memoria bordada de los muertos anónimos.

Legión de mercenarios acosan la frontera de la aurora naciente
y el César los bendice desde su prepotencia.
En la pulcra jofaina Pilatos se abluciona, legalista y cobarde.

El Pueblo es sólo un «resto»,
un resto de Esperanza.
No Lo dejemos sólo entre guardias y príncipes.
Es hora de sudar con Su agonía,
es hora de beber el cáliz de los Pobres
y erguir la Cruz, desnuda de certezas,
y quebrantar la losa—ley y sello— del sepulcro romano,
y amanecer
de Pascua.

Para concluir este rápido e incompleto esboço de sua cativante figura, gostaria de lembrar um pequeno poema que, talvez, possa resumir seu triplo ministério como poeta, profeta e pastor ou, melhor ainda, qual era toda sua vocação: buscar o verdadeiro e sempre inatingível Rosto de Deus para modelar e mudar sua própria vida e, então, oferecê-la como uma “condição de possibilidade” para humanizar um pouco mais a Igreja e o Mundo, desde sua proposta programática de “Humanizar a humanidade praticando a proximidade”:

Para cambiar de vida
hay que cambiar de Dios.

Hay que cambiar de Dios
para cambiar la Iglesia.

Para cambiar el Mundo
hay que cambiar de Dios

 

Autor: Michael Moore.
Tradução: Raul Vico, Fundação Pedro Casaldáliga.

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Ainda tem os pobres e Deus

Ainda tem os pobres e Deus

Ainda tem os pobres e Deus

Em uma de suas últimas manifestações, Pedro Casaldáliga nos convocava a optarmos verdadeiramente pelos pobres”. Mas, sabemos o que isso realmente significa? Ele mesmo explicava.

5 de dezembro de 2021

As causas de Pedro Casaldáliga

A Opção pelos Pobres continua sendo a opção pelos pobres, literalmente.

Quero dizer: os pobres são a escolha definitiva de Deus, do Deus de Jesus. A Bíblia inteira e, acima de tudo, a palavra, a vida, a morte e a ressurreição de Jesus, confirmam-nos nesta consciência teológica de que Deus escolheu, escolhe e continuará a escolher os pobres seus filhos – a maioria – proibidos de serem totalmente humanos, por sistemas de arrogância e marginalização.

A opção pelos pobres é “para os pobres”: fundamentalmente, para aqueles quem não tem, que não podem, que vivem as “deficiências” da vida normal, economicamente: falta de terra, moradia, saúde, educação, participação. Os proibidos de viver plenamente sua dignidade como pessoas, filhos e filhas de Deus, irmãos e irmãs.

Optar sempre significa “virar-se para”, entregar-se, comprometer-se.

Quando se escolhe os pobres, escolhe-se também ser contra as causas, as estruturas e os sistemas que fazem os pobres e os impedem de viver com dignidade a condição humana, histórica, de filhos e filhas de Deus, irmãos e irmãs.

Hoje, essa opção pelos pobres é mais actual ainda. Há duas razões para isto. Os pobres são cada vez mais, na América Latina, em todo o Mundo. E eles são mais pobres; o empobrecimento é maior […].

A “opção pelos pobres” também é mais atual hoje, porque há muitos interesses que querem desatualizá-la. Entre os poderosos, é claro, mas também na consciência de muitos cristãos que estão cansados ou adormecidos ou sendo egoístas.

Muitos estão cansados, dizem eles, de ouvir falar da opção pelos pobres…aí, eu gosto de lhes responder que os pobres estão provavelmente muito mais cansados de ser pobres.

Simultâneamente, esta opção tornou-se mais actual do que nunca, porque também se tornou mais dialéctica. Este cansaço, este desejo de marginalizar a opção pelos pobres, de considerá-la como já passada, se encontra com um movimento ascendente de consciência popular, na América Latina de uma forma muito especial, mas também em todo o Terceiro Mundo e nos sectores de solidariedade da sociedade do Primeiro Mundo, nos meios de comunicação social, na mídia alternativa, etc.

Podemos dizer de forma global que as maiorias oprimidas, proibidas, marginalizadas (como são os pobres, economicamente; mas também algumas culturas, até agora consideradas subculturas, culturas menores, culturas marginais) estão adquirindo uma consciência clara não só dos seus direitos, iguais aos direitos de qualquer outro povo ou cultura, ou de qualquer outra pessoa humana; estão adquirindo consciência do seu protagonismo na história.

Os teólogos e sociólogos da libertação frequentemente nos falam da “lógica da maioria”. Poderíamos, deveríamos falar hoje sobre a crescente conscientização das maiorias e do protagonismo das maiorias. De uma maneira meio difusa, às vezes; de uma maneira mais consciente, outras vezes, percebe-se, sente-se na vida social a reivindicação pela igualdade entre os vários setores de cada país e entre os países ou nações entre si.

As estruturas (a própria ONU, o FMI, o Banco Mundial) ainda estão aí marginalizando, excluindo, e essa própria exclusão cria uma maior conscientização da iniquidade do sistema sócio-político-econômico que nos foi imposto, como exasperação, como “o máximo” do capitalismo transnacionalizado, que considera a sociedade humana apenas como um mercado, que proclama o direito exclusivo de uma minoria insignificante e justifica a exclusão da imensa maioria.

Ao contrário do que a própria Bíblia – palavra de Deus – diz a respeito do “restante de Israel” – símbolo sacramental de toda a humanidade, progressivamente liberado e salvo- o neoliberalismo proclama o direito e o futuro de uma minoria que exclui à grande maioria da humanidade.

O triunfo do neoliberalismo coincide -é causa e efeito, em parte- com a queda do socialismo real, com o recuo -ou pelo menos a transição- de certas revoluções sociais e políticas mais radicais.

O pragmatismo do neoliberalismo se sustenta feliz na destruição de muitas utopias. E esse pragmatismo, que tem a economia e a mídia em suas mãos, é facilmente justificado no posicionamento imaturo, cansado ou fatalista de muitos que pensam que as coisas são “desse jeito mesmo”.

A virada para a direita da economia é também, muitas vezes, a virada das Igrejas, das religiões. Aquele “isto é o máximo” proclamado pelo neoliberalismo, de um jeito conformista ou de um jeito fatalista, também acaba sendo muitas vezes “o máximo” da aceitação, do conformismo, do próprio povo.

Na Igreja, nas últimas décadas, sobretudo desde o pontificado de João Paulo II, estamos experimentando uma involução, um verdadeiro conservadorismo eclesial e eclesiástico.

Além disso, o Concílio Vaticano II foi uma verdadeira revolução eclesial e abriu o horizonte para muitas utopias, dentro e até fora da Igreja.

Há alguns anos, muitos estão tentando cortar as asas dessa utopia que o Concílio Vaticano II abriu.

Na América Latina, como em nenhuma outra região do mundo, o Conselho levantou o eco e a prática de Medellín até Puebla. Em nossa Igreja latino-americana, o Concílio foi encarnado, localizado em uma nova teologia própria, a teologia da libertação; em um ministério pastoral explícito de múltiplas pastorais que chamamos de “específicas” que significavam fundamentalmente a acolhida, o clamor das maiorias marginalizadas e dos vários setores dessa marginalização: indígenas, negros, camponeses, mulheres, menores, migrantes.

A utopia se fez a carne e o sangue da nossa igreja, e muito particularmente das bases majoritárias da nossa Igreja; especificamente nas próprias comunidades de base.

É curioso lembrar como estão obcecado em suavizar, perfilar, condicionar, a opção pelos pobres, acrescentando aquela “nem exclusiva, nem excludente”, enquanto esquecem que a economia, a política, a sociedade em suas estruturas e poderes, são cada vez mais exclusivas e excludentes.

Hoje, como nunca antes, a opção pelos pobres deve ser radical. Deveria estar ao serviço da maioria, incluindo – é claro, e com muita lucidez, e até as últimas conseqüências – a opção pelos pobres “outros”, a opção pelas culturas “empobrecidas” por estarem proibidas, marginalizadas ou mal consideradas.

Não é que tudo esteja escuro, nem aceitamos o pessimismo como horizonte. De uma maneira informal e difusa -como a economia informal ocorre na sociedade- na própria sociedade e na Igreja, muito especificamente, dentro do movimento popular, seja ele social ou eclesial, há uma conscientização, uma organização e uma praxis alternativa, que provêm dos pobres.

Da opção pelos pobres, então, ainda tem os pobres e ainda tem o Deus libertador dos pobres.

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Esse é “o mais antigo jornal alternativo no Brasil ainda em circulação”

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Como afirma o Bispo Casaldáliga, o Jornal Alvorada é “o mais antigo jornal alternativo no Brasil ainda em circulação”. Neste ano completa 50 anos, renovado, atualizado e com boa saúde. Sempre fiel a seus princípios comuncativos e de transformação.

17 de maio de 2020

A obra de Pedro Casaldáliga

No mês de janeiro nosso jornalzinho “ALVORADA” completou 50 anos.

Foi o primeiro ‘jornal’ do nosso Araguaia.

São 50 anos de registros de como andou nossa Prelazia, mas, sobretudo, de registros da vida e das lutas do povo desta região.

Para comemorar este jubileu de ouro, nada melhor do que resgatar um pouco de como começou esta publicação.

Correio da amizade

O primeiro número de “ALVORADA” – Folha da Prelazia de São Félix, assim se chamou, apareceu em janeiro de 1970. Uma folha única, mimeografada.

Procurava-se um nome para esta folha, quando chegou de Santa Terezinha, de voadeira, o Pe. Francisco Jentel. A voadeira tinha o nome de “Alvorada”.

Foi a inspiração para o nome deste primeiro veículo de comunicação que surgia na região.

Capa de última edição do Jornal Alvorada, 1º trimestre de 2020

A abertura do primeiro número identifica a região a ser abrangida pela publicação e seu objetivo. Assim dizia:

Nesta hora de desenvolvimento, a folha “Alvorada” visa ser:

– correio de amizade

-programa de renovação

– mensagem de Evangelho.

Uma “folha” de sol e sereno, nas alegrias de todos, nas comuns necessidades, para o trabalho de melhoramento a que nós estamos chamados”.

O restante do primeiro número apresentava o PROGRAMA PASTORAL com as normas e indicações para receber o Batismo, o Matrimônio e a Primeira Comunhão e anunciando a realização das Campanhas Missionárias.

O segundo número tem data – 29/3/70. “Páscoa”. Trouxe um pequeno editorial sobre a Páscoa e notícias as mais diversas como a ida do Pe. Pedro Casaldáliga a Goiânia para tratamento, a visita do Secretário de Educação do Município a São Félix, (São Félix era um distrito de Barra do Garças), a inauguração do Cine Samira, o anúncio de que Luciara teria motor de luz, alguns casamentos, o funcionamento do Ginásio Estadual do Araguaia, entre outros.

Trouxe também um pequeno comentário sobre o Batismo e começou a divulgar as partes principais da Encíclica de Paulo VI “Desenvolvimento dos Povos (Populorum Progressio)” que continuou nos seguintes números.

Uma voz que incomodava

Nos 50 anos de existência “ALVORADA” foi a voz, quase isolada, que denunciou a violência e as arbitrariedades das autoridades e do latifúndio em nossa região e que estimulou a união entre os trabalhadores.

“ALVORADA”, amado por muitos, odiado por outros, ganhou notoriedade nacional, quando um número forjado apareceu na tela da Globo, tentando incriminar o trabalho de nossa Igreja.

“ALVORADA” tem sido matéria de estudo para alguns que se interessam pela imprensa alternativa a serviço dos marginalizados.

Em seus 50 anos, ALVORADA continua sendo fiel aos seus objetivos, publicando notícias das comunidades, divulgando o Evangelho e a caminhada da Igreja no Brasil e no mundo.

Capa do Jornal Alvorada, de 1974.

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Opção pelos pobres e espiritualidade

Opção pelos pobres e espiritualidade

Opção pelos pobres e espiritualidade

A Opção pelos Pobres (OP) é sem dúvida o fato mais importante que tem ocorrido nas Igrejas Cristãs desde a Reforma Protestante do século XVI. Mas, o que significa para o nosso posicionamento diário, além do obvio?

7 de abril de 2020

A obra de Pedro Casaldáliga

Opção para os pobres:

a mesma espiritualidade cristã

A Opção pelos Pobres, para os cristãos, é a mesma opção para o Reino de Deus neste mundo estruturalmente subjugado pelo anti-reino, neste mundo de Deus maltratado.

A OP não é apenas uma característica da espiritualidade cristã. É a mesma espiritualidade cristã, se entendemos que o Reino é a opção de Jesus, porque é a vontade do Pai. O Reino, visto do lado de cá, é um desafio, uma conquista, uma prática, uma resposta nossa… Visto do lado de lá – onde já não haverá nem ricos nem pobres – o Reino será pura gratuidade, puro presente: o Pai acolherá a todos. O Filho de Deus, a Palavra, para responder ao anti-reino que o pecado do mundo estava a estabelecer na terra dos filhos de Deus, não só “se tornou homem”, não só se tornou humano, mas também se tornou pobre, se fez colonizado, incompreendido, perseguido, proibido, excluído, excomungado, condenado, executado, amaldiçoado… A Opção pelos Pobres de Jesus é a kenosis de Cristo. E a OP é a atitude kenótica de todo cristão.

Repito: desde que concordemos em que a espiritualidade cristã é a opção pelo Reino: a vontade do Pai que Jesus anuncia, assume, realiza e sofre, e pela qual e da qual Ele ressuscita.

O povo Xavante, que vive no Araguaia, foi expulso das suas terras em 1964 pelos grandes latifundiários. Hoje, luta para recuperar plenamente a sua cultura, tradições e modo de vida ancestral. Para saber mais, publicamos esta entrada há algum tempo. Foto: nossa

Fundamento teológico

Esta é a base teológica da Opção pelos Pobres. Mas ainda podemos explicar de outra forma.

A teologia cristã é baseada na palavra, na atitude, na vida, na morte e na ressurreição de Jesus. É por isso que se trata de teologia “cristã”. Quando falamos de Jesus, falamos, ou devemos falar, automaticamente, do Deus de Jesus. Assim, se este Deus de Jesus enviou o seu próprio Filho para reparar o Reino maltratado, para o retomar, para que a humanidade possa esperá-lo novamente e para que a humanidade colabore, como deveria, na sua construção, é evidente que a vontade de Deus sobre a humanidade é o propósito da humanidade. Não pode ser outra.

Para nós cristãos, na situação actual, na atual conjuntura da humanidade, Deus não opta pela humanidade, Deus opta pelos pobres da humanidade.

Em resposta a aqueles que no seu privilégio, no seu luxo, no seu consumismo, na sua capacidade de escravizar, de dominar… negaram a condição de irmãos e irmãs – e portanto a condição de filhos de Deus – aos outros. Respondendo a aqueles que construíram neste mundo um anti-Reino, neste mundo que já deveria ser uma realização do seu Reino, antecipando na esperança a futura plenitude.

É por isso que a Boa Nova é anunciada aos pobres. A bem-aventurança realiza-se nos pobres. E esta é a base da Opção pelos Pobres.

Opção pelos pobres: kénose e encarnação

Recordemos a palavra de Paulo: ele, Cristo Jesus, sendo rico, se tornou pobre por nós (Fil 2, 6ss). “Ele se tornou”: tiramos totalmente o significado dessa palavra se fingimos entendê-la num sentido exclusivamente espiritual. O que significa “ele se tornou”? É uma palavra incarnacional, evidentemente. Pressupõe todo um processo histórico: o seu modo de vida, os seus conflitos, a sua localização geopolítica, cultural… tudo o que ele realmente viveu.

As implicações dessa escolha, as exigências dessa espiritualidade também partem do próprio seguimento de Jesus. Se eu optar pela maioria dos filhos de Deus, sujeitos a uma vida anti-Reino, proibidos na sua condição de seres humanos – na sua condição de irmãos e irmãs e de filhos – devo automaticamente, em primeiro lugar, aproximar-me deles, conhecê-los, sentir com eles, simpatizar com a sua situação, ser movido pela sua realidade, participar no seu próprio sofrimento, no seu grito, na sua pobreza, na sua luta, no seu processo. A kénose, antes de mais nada, é a descida, a entrada, a encarnação. Assim, uma espiritualidade que opte pelos pobres é uma espiritualidade encarnacionalista no sentido mais puro da palavra.

Alguns têm tido medo da palavra “encarnação”, como se encarnar significasse prescindir do histórico, do político… O Filho de Deus não está encarnado nas nuvens: ele está encarnado em um ser humano, em um povo, em uma cultura, em uma estrutura, em uma conjuntura…

Na pequena cidade de Novo Santo Antônio, a maioria das famílias sobrevive com menos de 1 euro por dia e por pessoa. Entretanto, as grandes empresas compram terras, desmatam o Cerrado e plantam soja para exportação. Foto: Casaldáliga-Causas.

Opção pelos pobres:

espiritualidade profética, revolucionária e utópica

Supõe também, por outro lado, desde a opção pelo Reino de Deus, desde o seguimento de Jesus, a resposta profética, a revolta profética, a indignação profética diante dessa situação que nega o Reino, que impede que os irmãos sejam irmãos, que impede que os filhos sejam filhos.

Todos os profetas de Israel, o grande profeta Jesus, as palavras categóricas e indignadas do Evangelho… iluminam-nos, no seguimento de Jesus, essa atitude de profecia, de revolta, na medida em que nos comprometemos com a pobreza dos pobres, amaldiçoamos a maldita pobreza dos pobres. A Cruz de Cristo nega a cruz. Ele amaldiçoa a Cruz precisamente para acabar de uma vez por todas com as cruzes amaldiçoadas. Pelo menos na sua própria pessoa e em esperança para todos nós.

Essa encarnação, essa compaixão, essa empatia, essa assunção da miséria, do sofrimento, da indignação, da revolta, do processo de libertação dos pobres, da vontade de abandonar o estado em que vivem, nos coloca automaticamente em uma posição política – revolucionária mesmo – de transformação radical de uma sociedade que não responde à vontade de Deus, ao projeto do Reino. E confrontar-nos-á automaticamente com todas as forças e poderes que condenam a maioria dos nossos irmãos e irmãs à miséria, à dependência, à não vida, àquele mundo que está em pecado, colocado no Maligno, como diz Paulo.

Não estamos negando, de forma alguma, o pecado pessoal; pelo contrário, estamos dizendo que reconhecemos os pecados pessoais acumulados em uma estrutura de pecado, que é o anti-Reino visível, diário. As implicações políticas de uma posicionamento como esse devem ser tão conjunturais como estruturais, tão diárias quanto utópicas.

Uma verdadeira espiritualidade da Opção pelos Pobres é uma espiritualidade revolucionária, dizemos nós. É por isso que se trata de uma espiritualidade utópica. Este mundo que existe não serve os filhos de Deus, não serve os irmãos e irmãs, contradiz o Reino de Deus: queremos outro!

Entramos necessariamente no processo de transformação da sociedade, no processo de revolução.

Opção pelos pobres e solidariedade

Os teólogos da libertação recordaram muitas vezes que a mesma contemplação, a oração de libertação espiritual é expressa, traduzida – é vista acima de tudo – em práticas não só sociais mas também explicitamente políticas.

Para que a caridade não seja apenas “compaixão“ distante, ou “benevolência” intermitente ou transitória, deve ser solidariedade política. Só desta forma será verdadeira caridade. Só assim amará o irmão na realidade em que o irmão vive. Só assim ajudará o irmão de uma forma eficiente. Talvez o sacerdote e o levita da parábola, passando do lado do homem gravemente ferido, tivessem um certo sentimento de compaixão. Não sabemos se lhe deixaram alguma esmola. O que é importante, o que é dramático, aquilo que lhes foi condenado, é que não tomaram a ação concreta de transformar a realidade em que ele vivia, a ação concreta de levarem a sua solidariedade até às últimas consequências.

A solidariedade só é levada às últimas consequências quando se faz tudo o que é possível para que o irmão deixe a situação em que se encontra. O próprio Deus não nos teria mostrado que nos amava se tivesse ficado na sua infinita compaixão lá… Precisávamos que ele saísse da sua compaixão e fizesse o gesto extremo… É por isso que eu digo que Jesus é a própria solidariedade de Deus em pessoa, a solidariedade que vai até ao fim.

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Feito desde o Araguaia e desde Barcelona!

No assentamento Dom Pedro, a 100Km de São Félix do Araguaia, trabalhamos junto a 60 famílias que moram no campo. A Dona Alenira e o seu marido, “Seu” Xéxeu, são um dos casais com mais força e esperança. Foto: nossa

Asceticismo e Misticismo na Opção pelos Pobres

A ascética e a mística desta espiritualidade da Opção pelos Pobres será, evidentemente, em primeiro lugar, uma atitude de discernimento, de sensibilidade, de percepção, de crítica, de autocrítica, de descodificação da realidade, de análise até da própria realidade política. Será uma espiritualidade que caminha no mundo dos pobres, no meio das maiorias proibidas e oprimidas de olhos abertos. Há bispos, sacerdotes cristãos, pessoas muito boas, que vêm do primeiro mundo: visitam as nossas cidades, visitam as nossas Igrejas e não descobrem essas imensas “maiorias” da América Latina, do Terceiro Mundo, do mundo inteiro, que vivem realmente proibidas. Portanto: olhos abertos à realidade, atenção ao “clamor” dos oprimidos (Medellín e Puebla lembraram-nos que o clamor está aí, e é lamentável que até recentemente a Igreja não tenha descoberto que é um clamor coletivo, e que é um clamor estrutural, e que é cada vez mais barulhento).

Em segundo lugar, a compaixão, a comoção, a relação que deve levar à convivência: estar-em, estar-com, seguir, acompanhar os pobres, assumir as suas mesmas privações, os seus riscos…

Tem se esquecido muito o próprio texto de Puebla (1134), que fala de uma opção “clara” e “solidária” pelos pobres. «Clara»: diríamos que com a consciência clara, até politicamente, para ser integralmente clara. E «solidária». A palavra vem de “in solidum”, que significa em-bloco-com, em-conjunto-com. Portanto, uma opção pelos pobres “solidária” exige estar com os pobres, viver com os pobres, passar um mau bocado com os pobres, correr riscos com os pobres… e, em todo caso, mudar de lugar social e até de lugar geográfico – na medida do possível – para estar no meio dos pobres.

Em terceiro lugar, significa assumir os processos dos pobres, as decisões dos pobres, percorrendo o seu próprio caminho, respeitando o seu ritmo, entrando nas suas próprias reivindicações. Podemos optar pelos pobres com todo o espírito crítico necessário, com toda a lucidez da fé, mas nunca “à distância”. Só quem se aproxima deles e caminha com eles é que escolhe os pobres.

Isto exigirá necessariamente uma grande capacidade para carregar a cruz, a cruz da privação da pobreza, da renúncia, do risco, do silêncio por vezes, do conflito.

E, ao mesmo tempo, exigirá uma grande capacidade de resistência, de esperança, no sentido pleno da palavra, essa esperança de que falava Paulo. Se quisermos evitar o desespero, a indignação sem sentido, sem saída – a blasfémia diríamos, temos de carregar dentro de nós uma grande força de esperança.

Penso que quanto mais perto vivemos da miséria, do sofrimento, da morte, mais a esperança deve ser uma expressão diária quase espontânea da nossa vida. Aqui os profetas nos ensinam tanto a proclamação do Deus vivo e verdadeiro e seus planos e projetos, como a denúncia de ídolos e anti-projetos que contradizem o plano de Deus, e também a atitude de consolo: “Confortai o meu povo” (Is 40:1).

É evidente que esta espiritualidade exigirá muita oração e contemplação. Só caminhando muito abertamente com o Deus vivo, o Deus e Pai de Jesus, o consolador dos pobres, o «Pater pauperum», o Pai dos pobres, será possível viver a espiritualidade da OP com equanimidade, dando o testemunho que deve ser dado de uma forma construtiva.

Penso que é muito importante que a OP saiba também ler, celebrar e assumir as expressões culturais dos pobres. Este seria um traço muito característico: a sua alegria, a sua celebração, a capacidade de hospitalidade, de partilha, a resistência passiva em muitas circunstâncias, aqueles longos silêncios dos pobres nas suas lutas, nas boas “tácticas”, no seu processo de libertação, nas mesmas revoluções populares, a capacidade que os pobres têm de agradecer aos seus próprios irmãos e a Deus.

Penso que toda a Igreja (seria um verdadeiro erro falar apenas da Igreja do Terceiro Mundo) não pode ter outra missão que não seja a missão de Jesus – e essa é a Opção pelos Pobres: «O Espírito do Senhor está sobre mim para…». Ou seja, na medida em que o Espírito do Senhor está sobre nós, dentro de nós, esse “para” se tornará realidade: anunciaremos a boa nova aos pobres, ajudaremos a libertar os cativos, proclamaremos o ano de graça, que é a versão até temporal, histórica e até política e económica do Reino… na expectativa, é claro, da plenitude do Reino. 

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Igreja e Opção pelos Pobres

– O que seria uma Igreja popular?

Quero lamentar mais uma vez que se tenha perdido a liberdade e mesmo a alegria de usar esta expressão. Já o “reclamei” várias vezes aos nossos teólogos, que, devido a uma docilidade que pode ser comprendida no meio de certas perseguições que estes bons teólogos da América Latina têm sofrido, foram obrigados a renunciar a uma expressão plena de sentido e legitimidade.

Se dizemos “Igreja hierárquica”, é ainda mais verdadeiro dizer “Igreja popular”. Por duas razões: a Igreja “tem” uma hierarquia, mas “é” o povo, o povo de Deus. A hierarquia é uma minoria na Igreja; é um serviço à Igreja e, a partir da Igreja, ao mundo. Enquanto o povo, esse povo de Deus, é a imensa maioria.

Por outro lado, falar da Igreja do povo significa falar de uma “Igreja na base”, onde estão os pobres. Uma Igreja no lugar onde Jesus se colocou. Uma Igreja entre o povo que se reconhece, que recupera a sua identidade, que assume o seu processo.

Para nós, nesta América Latina, falar do povo é, na prática, falar do povo em um processo histórico. Mais ainda, um povo em processo de libertação histórica.

Biblicamente falando, o povo de Deus, «o povo que não era um povo e agora é um povo»… «Eles serão o meu povo e eu serei o seu Deus»…

Em suma, esta é uma expressão tão bela que espero que seja recuperada, sem nos envergonhar, sem ceder a mal-entendidos, que até podem vir da melhor boa vontade, mas que certamente não vem de uma lucidez teológica nem de uma visão pastoral empenhada, e que possivelmente, sem querer, estão fazendo o jogo daqueles que não querem que o povo seja o povo, daqueles que não querem que a Igreja seja o povo, daqueles que não querem que o povo se torne a Igreja.

Eu diria alguns sinónimos da Igreja popular: a Igreja comunitária, a Igreja participativa, a Igreja verdadeiramente inculturada, a Igreja autóctona. Creio que estes são valores indispensáveis na verdadeira Igreja de Jesus.

 – Igreja do Povo e Igreja dos Pobres seria termos semelhantes?

 A Igreja popular seria a Igreja dos pobres conscientes, que estão organizados, em processo, no fermento da libertação…

– Leonardo Boff diz que a Igreja popular não se opõe à Igreja hierárquica, mas sim à Igreja burguesa…

É óbvio. E também se opõe à Igreja clerical, no sentido pejorativo da palavra (uma Igreja clericalizada). A Igreja popular acaba por ser a Igreja do povo de Deus, que opta verdadeiramente pelos pobres, que se coloca no seu lugar, que toma partido por eles, que assume a sua causa e os seus processos. Uma Igreja que também puxa a hierarquia e o clero, puxa a teologia, puxa a liturgia, puxa a própria lei canónica e fá-los descer numa kenosis histórico-pastoral ao lugar onde Jesus realmente se colocou, que é o mesmo povo.

– Seria a “Igreja burguesa” uma contradição?

 Obviamente, obviamente.

– Não pode haver uma Igreja burguesa?

Eu pergunto: qual seria o verdadeiro código canónico evangélico da Igreja? E eu respondo: o novo mandamento, as bem-aventuranças. Em uma Igreja burguesa, uma Igreja de privilégios, uma Igreja de exploração da maioria, uma Igreja de expulsão da maioria as bem-aventuranças encaixam. Uma Igreja burguesa deixaria de ser a Igreja de Jesus.

– O baptismo e a conversão exigiriam uma mudança de classe?

Pergunto: o baptismo não é um mergulho na Páscoa, na morte, na ressurreição? Esta imersão na morte de Jesus deve ser obviamente a morte do egoísmo, a morte do privilégio cumulativo e exclusivo. E, nesse sentido, a morte de uma vida burguesa. Uma vida burguesa é uma vida pecaminosa, estruturalmente pecaminosa.

– Como responderia à crítica de que a Igreja é para todos, que está acima das opções políticas?

Eu responderia que Cristo também veio por todos, e optou pelos pobres. E condenou os ricos. E ele rejeitou o privilégio. E ele foi condenado, torturado, executado e colocado na cruz pelos poderes do latifúndio, da lei, do império.

Não é possível pensar que o Evangelho seja para todos por igual. O pior que se poderia dizer sobre o Evangelho é que o Evangelho é neutro. Costumo dizer: o Evangelho é para todos, mas é a favor dos pobres e contra os ricos. E explico.

A favor dos pobres no que eles têm de pobreza evangélica, e contra a marginalização e talvez o desespero em que têm de viver. E contra os ricos: contra a possibilidade, a capacidade que têm de viver num privilégio que saqueia a imensa maioria dos irmãos, contra a capacidade de explorar esses irmãos, contra a insensibilidade em que vivem, contra a idolatria em que estão imersos.

O rico, normalmente falando, está excluído do Reino dos céus. Só pode entrar nele, deixando de ser rico.

 

Do livro “Sobre a Opção pelos Pobres”. Vários autores. Coordenador: José María Vigil

 

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