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Ainda tem os pobres e Deus

Ainda tem os pobres e Deus

Ainda tem os pobres e Deus

Em uma de suas últimas manifestações, Pedro Casaldáliga nos convocava a optarmos verdadeiramente pelos pobres”. Mas, sabemos o que isso realmente significa? Ele mesmo explicava.

5 de dezembro de 2021

As causas de Pedro Casaldáliga

A Opção pelos Pobres continua sendo a opção pelos pobres, literalmente.

Quero dizer: os pobres são a escolha definitiva de Deus, do Deus de Jesus. A Bíblia inteira e, acima de tudo, a palavra, a vida, a morte e a ressurreição de Jesus, confirmam-nos nesta consciência teológica de que Deus escolheu, escolhe e continuará a escolher os pobres seus filhos – a maioria – proibidos de serem totalmente humanos, por sistemas de arrogância e marginalização.

A opção pelos pobres é “para os pobres”: fundamentalmente, para aqueles quem não tem, que não podem, que vivem as “deficiências” da vida normal, economicamente: falta de terra, moradia, saúde, educação, participação. Os proibidos de viver plenamente sua dignidade como pessoas, filhos e filhas de Deus, irmãos e irmãs.

Optar sempre significa “virar-se para”, entregar-se, comprometer-se.

Quando se escolhe os pobres, escolhe-se também ser contra as causas, as estruturas e os sistemas que fazem os pobres e os impedem de viver com dignidade a condição humana, histórica, de filhos e filhas de Deus, irmãos e irmãs.

Hoje, essa opção pelos pobres é mais actual ainda. Há duas razões para isto. Os pobres são cada vez mais, na América Latina, em todo o Mundo. E eles são mais pobres; o empobrecimento é maior […].

A “opção pelos pobres” também é mais atual hoje, porque há muitos interesses que querem desatualizá-la. Entre os poderosos, é claro, mas também na consciência de muitos cristãos que estão cansados ou adormecidos ou sendo egoístas.

Muitos estão cansados, dizem eles, de ouvir falar da opção pelos pobres…aí, eu gosto de lhes responder que os pobres estão provavelmente muito mais cansados de ser pobres.

Simultâneamente, esta opção tornou-se mais actual do que nunca, porque também se tornou mais dialéctica. Este cansaço, este desejo de marginalizar a opção pelos pobres, de considerá-la como já passada, se encontra com um movimento ascendente de consciência popular, na América Latina de uma forma muito especial, mas também em todo o Terceiro Mundo e nos sectores de solidariedade da sociedade do Primeiro Mundo, nos meios de comunicação social, na mídia alternativa, etc.

Podemos dizer de forma global que as maiorias oprimidas, proibidas, marginalizadas (como são os pobres, economicamente; mas também algumas culturas, até agora consideradas subculturas, culturas menores, culturas marginais) estão adquirindo uma consciência clara não só dos seus direitos, iguais aos direitos de qualquer outro povo ou cultura, ou de qualquer outra pessoa humana; estão adquirindo consciência do seu protagonismo na história.

Os teólogos e sociólogos da libertação frequentemente nos falam da “lógica da maioria”. Poderíamos, deveríamos falar hoje sobre a crescente conscientização das maiorias e do protagonismo das maiorias. De uma maneira meio difusa, às vezes; de uma maneira mais consciente, outras vezes, percebe-se, sente-se na vida social a reivindicação pela igualdade entre os vários setores de cada país e entre os países ou nações entre si.

As estruturas (a própria ONU, o FMI, o Banco Mundial) ainda estão aí marginalizando, excluindo, e essa própria exclusão cria uma maior conscientização da iniquidade do sistema sócio-político-econômico que nos foi imposto, como exasperação, como “o máximo” do capitalismo transnacionalizado, que considera a sociedade humana apenas como um mercado, que proclama o direito exclusivo de uma minoria insignificante e justifica a exclusão da imensa maioria.

Ao contrário do que a própria Bíblia – palavra de Deus – diz a respeito do “restante de Israel” – símbolo sacramental de toda a humanidade, progressivamente liberado e salvo- o neoliberalismo proclama o direito e o futuro de uma minoria que exclui à grande maioria da humanidade.

O triunfo do neoliberalismo coincide -é causa e efeito, em parte- com a queda do socialismo real, com o recuo -ou pelo menos a transição- de certas revoluções sociais e políticas mais radicais.

O pragmatismo do neoliberalismo se sustenta feliz na destruição de muitas utopias. E esse pragmatismo, que tem a economia e a mídia em suas mãos, é facilmente justificado no posicionamento imaturo, cansado ou fatalista de muitos que pensam que as coisas são “desse jeito mesmo”.

A virada para a direita da economia é também, muitas vezes, a virada das Igrejas, das religiões. Aquele “isto é o máximo” proclamado pelo neoliberalismo, de um jeito conformista ou de um jeito fatalista, também acaba sendo muitas vezes “o máximo” da aceitação, do conformismo, do próprio povo.

Na Igreja, nas últimas décadas, sobretudo desde o pontificado de João Paulo II, estamos experimentando uma involução, um verdadeiro conservadorismo eclesial e eclesiástico.

Além disso, o Concílio Vaticano II foi uma verdadeira revolução eclesial e abriu o horizonte para muitas utopias, dentro e até fora da Igreja.

Há alguns anos, muitos estão tentando cortar as asas dessa utopia que o Concílio Vaticano II abriu.

Na América Latina, como em nenhuma outra região do mundo, o Conselho levantou o eco e a prática de Medellín até Puebla. Em nossa Igreja latino-americana, o Concílio foi encarnado, localizado em uma nova teologia própria, a teologia da libertação; em um ministério pastoral explícito de múltiplas pastorais que chamamos de “específicas” que significavam fundamentalmente a acolhida, o clamor das maiorias marginalizadas e dos vários setores dessa marginalização: indígenas, negros, camponeses, mulheres, menores, migrantes.

A utopia se fez a carne e o sangue da nossa igreja, e muito particularmente das bases majoritárias da nossa Igreja; especificamente nas próprias comunidades de base.

É curioso lembrar como estão obcecado em suavizar, perfilar, condicionar, a opção pelos pobres, acrescentando aquela “nem exclusiva, nem excludente”, enquanto esquecem que a economia, a política, a sociedade em suas estruturas e poderes, são cada vez mais exclusivas e excludentes.

Hoje, como nunca antes, a opção pelos pobres deve ser radical. Deveria estar ao serviço da maioria, incluindo – é claro, e com muita lucidez, e até as últimas conseqüências – a opção pelos pobres “outros”, a opção pelas culturas “empobrecidas” por estarem proibidas, marginalizadas ou mal consideradas.

Não é que tudo esteja escuro, nem aceitamos o pessimismo como horizonte. De uma maneira informal e difusa -como a economia informal ocorre na sociedade- na própria sociedade e na Igreja, muito especificamente, dentro do movimento popular, seja ele social ou eclesial, há uma conscientização, uma organização e uma praxis alternativa, que provêm dos pobres.

Da opção pelos pobres, então, ainda tem os pobres e ainda tem o Deus libertador dos pobres.

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7 de abril de 2020

A obra de Pedro Casaldáliga

Opção para os pobres:

a mesma espiritualidade cristã

A Opção pelos Pobres, para os cristãos, é a mesma opção para o Reino de Deus neste mundo estruturalmente subjugado pelo anti-reino, neste mundo de Deus maltratado.

A OP não é apenas uma característica da espiritualidade cristã. É a mesma espiritualidade cristã, se entendemos que o Reino é a opção de Jesus, porque é a vontade do Pai. O Reino, visto do lado de cá, é um desafio, uma conquista, uma prática, uma resposta nossa… Visto do lado de lá – onde já não haverá nem ricos nem pobres – o Reino será pura gratuidade, puro presente: o Pai acolherá a todos. O Filho de Deus, a Palavra, para responder ao anti-reino que o pecado do mundo estava a estabelecer na terra dos filhos de Deus, não só “se tornou homem”, não só se tornou humano, mas também se tornou pobre, se fez colonizado, incompreendido, perseguido, proibido, excluído, excomungado, condenado, executado, amaldiçoado… A Opção pelos Pobres de Jesus é a kenosis de Cristo. E a OP é a atitude kenótica de todo cristão.

Repito: desde que concordemos em que a espiritualidade cristã é a opção pelo Reino: a vontade do Pai que Jesus anuncia, assume, realiza e sofre, e pela qual e da qual Ele ressuscita.

O povo Xavante, que vive no Araguaia, foi expulso das suas terras em 1964 pelos grandes latifundiários. Hoje, luta para recuperar plenamente a sua cultura, tradições e modo de vida ancestral. Para saber mais, publicamos esta entrada há algum tempo. Foto: nossa

Fundamento teológico

Esta é a base teológica da Opção pelos Pobres. Mas ainda podemos explicar de outra forma.

A teologia cristã é baseada na palavra, na atitude, na vida, na morte e na ressurreição de Jesus. É por isso que se trata de teologia “cristã”. Quando falamos de Jesus, falamos, ou devemos falar, automaticamente, do Deus de Jesus. Assim, se este Deus de Jesus enviou o seu próprio Filho para reparar o Reino maltratado, para o retomar, para que a humanidade possa esperá-lo novamente e para que a humanidade colabore, como deveria, na sua construção, é evidente que a vontade de Deus sobre a humanidade é o propósito da humanidade. Não pode ser outra.

Para nós cristãos, na situação actual, na atual conjuntura da humanidade, Deus não opta pela humanidade, Deus opta pelos pobres da humanidade.

Em resposta a aqueles que no seu privilégio, no seu luxo, no seu consumismo, na sua capacidade de escravizar, de dominar… negaram a condição de irmãos e irmãs – e portanto a condição de filhos de Deus – aos outros. Respondendo a aqueles que construíram neste mundo um anti-Reino, neste mundo que já deveria ser uma realização do seu Reino, antecipando na esperança a futura plenitude.

É por isso que a Boa Nova é anunciada aos pobres. A bem-aventurança realiza-se nos pobres. E esta é a base da Opção pelos Pobres.

Opção pelos pobres: kénose e encarnação

Recordemos a palavra de Paulo: ele, Cristo Jesus, sendo rico, se tornou pobre por nós (Fil 2, 6ss). “Ele se tornou”: tiramos totalmente o significado dessa palavra se fingimos entendê-la num sentido exclusivamente espiritual. O que significa “ele se tornou”? É uma palavra incarnacional, evidentemente. Pressupõe todo um processo histórico: o seu modo de vida, os seus conflitos, a sua localização geopolítica, cultural… tudo o que ele realmente viveu.

As implicações dessa escolha, as exigências dessa espiritualidade também partem do próprio seguimento de Jesus. Se eu optar pela maioria dos filhos de Deus, sujeitos a uma vida anti-Reino, proibidos na sua condição de seres humanos – na sua condição de irmãos e irmãs e de filhos – devo automaticamente, em primeiro lugar, aproximar-me deles, conhecê-los, sentir com eles, simpatizar com a sua situação, ser movido pela sua realidade, participar no seu próprio sofrimento, no seu grito, na sua pobreza, na sua luta, no seu processo. A kénose, antes de mais nada, é a descida, a entrada, a encarnação. Assim, uma espiritualidade que opte pelos pobres é uma espiritualidade encarnacionalista no sentido mais puro da palavra.

Alguns têm tido medo da palavra “encarnação”, como se encarnar significasse prescindir do histórico, do político… O Filho de Deus não está encarnado nas nuvens: ele está encarnado em um ser humano, em um povo, em uma cultura, em uma estrutura, em uma conjuntura…

Na pequena cidade de Novo Santo Antônio, a maioria das famílias sobrevive com menos de 1 euro por dia e por pessoa. Entretanto, as grandes empresas compram terras, desmatam o Cerrado e plantam soja para exportação. Foto: Casaldáliga-Causas.

Opção pelos pobres:

espiritualidade profética, revolucionária e utópica

Supõe também, por outro lado, desde a opção pelo Reino de Deus, desde o seguimento de Jesus, a resposta profética, a revolta profética, a indignação profética diante dessa situação que nega o Reino, que impede que os irmãos sejam irmãos, que impede que os filhos sejam filhos.

Todos os profetas de Israel, o grande profeta Jesus, as palavras categóricas e indignadas do Evangelho… iluminam-nos, no seguimento de Jesus, essa atitude de profecia, de revolta, na medida em que nos comprometemos com a pobreza dos pobres, amaldiçoamos a maldita pobreza dos pobres. A Cruz de Cristo nega a cruz. Ele amaldiçoa a Cruz precisamente para acabar de uma vez por todas com as cruzes amaldiçoadas. Pelo menos na sua própria pessoa e em esperança para todos nós.

Essa encarnação, essa compaixão, essa empatia, essa assunção da miséria, do sofrimento, da indignação, da revolta, do processo de libertação dos pobres, da vontade de abandonar o estado em que vivem, nos coloca automaticamente em uma posição política – revolucionária mesmo – de transformação radical de uma sociedade que não responde à vontade de Deus, ao projeto do Reino. E confrontar-nos-á automaticamente com todas as forças e poderes que condenam a maioria dos nossos irmãos e irmãs à miséria, à dependência, à não vida, àquele mundo que está em pecado, colocado no Maligno, como diz Paulo.

Não estamos negando, de forma alguma, o pecado pessoal; pelo contrário, estamos dizendo que reconhecemos os pecados pessoais acumulados em uma estrutura de pecado, que é o anti-Reino visível, diário. As implicações políticas de uma posicionamento como esse devem ser tão conjunturais como estruturais, tão diárias quanto utópicas.

Uma verdadeira espiritualidade da Opção pelos Pobres é uma espiritualidade revolucionária, dizemos nós. É por isso que se trata de uma espiritualidade utópica. Este mundo que existe não serve os filhos de Deus, não serve os irmãos e irmãs, contradiz o Reino de Deus: queremos outro!

Entramos necessariamente no processo de transformação da sociedade, no processo de revolução.

Opção pelos pobres e solidariedade

Os teólogos da libertação recordaram muitas vezes que a mesma contemplação, a oração de libertação espiritual é expressa, traduzida – é vista acima de tudo – em práticas não só sociais mas também explicitamente políticas.

Para que a caridade não seja apenas “compaixão“ distante, ou “benevolência” intermitente ou transitória, deve ser solidariedade política. Só desta forma será verdadeira caridade. Só assim amará o irmão na realidade em que o irmão vive. Só assim ajudará o irmão de uma forma eficiente. Talvez o sacerdote e o levita da parábola, passando do lado do homem gravemente ferido, tivessem um certo sentimento de compaixão. Não sabemos se lhe deixaram alguma esmola. O que é importante, o que é dramático, aquilo que lhes foi condenado, é que não tomaram a ação concreta de transformar a realidade em que ele vivia, a ação concreta de levarem a sua solidariedade até às últimas consequências.

A solidariedade só é levada às últimas consequências quando se faz tudo o que é possível para que o irmão deixe a situação em que se encontra. O próprio Deus não nos teria mostrado que nos amava se tivesse ficado na sua infinita compaixão lá… Precisávamos que ele saísse da sua compaixão e fizesse o gesto extremo… É por isso que eu digo que Jesus é a própria solidariedade de Deus em pessoa, a solidariedade que vai até ao fim.

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Asceticismo e Misticismo na Opção pelos Pobres

A ascética e a mística desta espiritualidade da Opção pelos Pobres será, evidentemente, em primeiro lugar, uma atitude de discernimento, de sensibilidade, de percepção, de crítica, de autocrítica, de descodificação da realidade, de análise até da própria realidade política. Será uma espiritualidade que caminha no mundo dos pobres, no meio das maiorias proibidas e oprimidas de olhos abertos. Há bispos, sacerdotes cristãos, pessoas muito boas, que vêm do primeiro mundo: visitam as nossas cidades, visitam as nossas Igrejas e não descobrem essas imensas “maiorias” da América Latina, do Terceiro Mundo, do mundo inteiro, que vivem realmente proibidas. Portanto: olhos abertos à realidade, atenção ao “clamor” dos oprimidos (Medellín e Puebla lembraram-nos que o clamor está aí, e é lamentável que até recentemente a Igreja não tenha descoberto que é um clamor coletivo, e que é um clamor estrutural, e que é cada vez mais barulhento).

Em segundo lugar, a compaixão, a comoção, a relação que deve levar à convivência: estar-em, estar-com, seguir, acompanhar os pobres, assumir as suas mesmas privações, os seus riscos…

Tem se esquecido muito o próprio texto de Puebla (1134), que fala de uma opção “clara” e “solidária” pelos pobres. «Clara»: diríamos que com a consciência clara, até politicamente, para ser integralmente clara. E «solidária». A palavra vem de “in solidum”, que significa em-bloco-com, em-conjunto-com. Portanto, uma opção pelos pobres “solidária” exige estar com os pobres, viver com os pobres, passar um mau bocado com os pobres, correr riscos com os pobres… e, em todo caso, mudar de lugar social e até de lugar geográfico – na medida do possível – para estar no meio dos pobres.

Em terceiro lugar, significa assumir os processos dos pobres, as decisões dos pobres, percorrendo o seu próprio caminho, respeitando o seu ritmo, entrando nas suas próprias reivindicações. Podemos optar pelos pobres com todo o espírito crítico necessário, com toda a lucidez da fé, mas nunca “à distância”. Só quem se aproxima deles e caminha com eles é que escolhe os pobres.

Isto exigirá necessariamente uma grande capacidade para carregar a cruz, a cruz da privação da pobreza, da renúncia, do risco, do silêncio por vezes, do conflito.

E, ao mesmo tempo, exigirá uma grande capacidade de resistência, de esperança, no sentido pleno da palavra, essa esperança de que falava Paulo. Se quisermos evitar o desespero, a indignação sem sentido, sem saída – a blasfémia diríamos, temos de carregar dentro de nós uma grande força de esperança.

Penso que quanto mais perto vivemos da miséria, do sofrimento, da morte, mais a esperança deve ser uma expressão diária quase espontânea da nossa vida. Aqui os profetas nos ensinam tanto a proclamação do Deus vivo e verdadeiro e seus planos e projetos, como a denúncia de ídolos e anti-projetos que contradizem o plano de Deus, e também a atitude de consolo: “Confortai o meu povo” (Is 40:1).

É evidente que esta espiritualidade exigirá muita oração e contemplação. Só caminhando muito abertamente com o Deus vivo, o Deus e Pai de Jesus, o consolador dos pobres, o «Pater pauperum», o Pai dos pobres, será possível viver a espiritualidade da OP com equanimidade, dando o testemunho que deve ser dado de uma forma construtiva.

Penso que é muito importante que a OP saiba também ler, celebrar e assumir as expressões culturais dos pobres. Este seria um traço muito característico: a sua alegria, a sua celebração, a capacidade de hospitalidade, de partilha, a resistência passiva em muitas circunstâncias, aqueles longos silêncios dos pobres nas suas lutas, nas boas “tácticas”, no seu processo de libertação, nas mesmas revoluções populares, a capacidade que os pobres têm de agradecer aos seus próprios irmãos e a Deus.

Penso que toda a Igreja (seria um verdadeiro erro falar apenas da Igreja do Terceiro Mundo) não pode ter outra missão que não seja a missão de Jesus – e essa é a Opção pelos Pobres: «O Espírito do Senhor está sobre mim para…». Ou seja, na medida em que o Espírito do Senhor está sobre nós, dentro de nós, esse “para” se tornará realidade: anunciaremos a boa nova aos pobres, ajudaremos a libertar os cativos, proclamaremos o ano de graça, que é a versão até temporal, histórica e até política e económica do Reino… na expectativa, é claro, da plenitude do Reino. 

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Igreja e Opção pelos Pobres

– O que seria uma Igreja popular?

Quero lamentar mais uma vez que se tenha perdido a liberdade e mesmo a alegria de usar esta expressão. Já o “reclamei” várias vezes aos nossos teólogos, que, devido a uma docilidade que pode ser comprendida no meio de certas perseguições que estes bons teólogos da América Latina têm sofrido, foram obrigados a renunciar a uma expressão plena de sentido e legitimidade.

Se dizemos “Igreja hierárquica”, é ainda mais verdadeiro dizer “Igreja popular”. Por duas razões: a Igreja “tem” uma hierarquia, mas “é” o povo, o povo de Deus. A hierarquia é uma minoria na Igreja; é um serviço à Igreja e, a partir da Igreja, ao mundo. Enquanto o povo, esse povo de Deus, é a imensa maioria.

Por outro lado, falar da Igreja do povo significa falar de uma “Igreja na base”, onde estão os pobres. Uma Igreja no lugar onde Jesus se colocou. Uma Igreja entre o povo que se reconhece, que recupera a sua identidade, que assume o seu processo.

Para nós, nesta América Latina, falar do povo é, na prática, falar do povo em um processo histórico. Mais ainda, um povo em processo de libertação histórica.

Biblicamente falando, o povo de Deus, «o povo que não era um povo e agora é um povo»… «Eles serão o meu povo e eu serei o seu Deus»…

Em suma, esta é uma expressão tão bela que espero que seja recuperada, sem nos envergonhar, sem ceder a mal-entendidos, que até podem vir da melhor boa vontade, mas que certamente não vem de uma lucidez teológica nem de uma visão pastoral empenhada, e que possivelmente, sem querer, estão fazendo o jogo daqueles que não querem que o povo seja o povo, daqueles que não querem que a Igreja seja o povo, daqueles que não querem que o povo se torne a Igreja.

Eu diria alguns sinónimos da Igreja popular: a Igreja comunitária, a Igreja participativa, a Igreja verdadeiramente inculturada, a Igreja autóctona. Creio que estes são valores indispensáveis na verdadeira Igreja de Jesus.

 – Igreja do Povo e Igreja dos Pobres seria termos semelhantes?

 A Igreja popular seria a Igreja dos pobres conscientes, que estão organizados, em processo, no fermento da libertação…

– Leonardo Boff diz que a Igreja popular não se opõe à Igreja hierárquica, mas sim à Igreja burguesa…

É óbvio. E também se opõe à Igreja clerical, no sentido pejorativo da palavra (uma Igreja clericalizada). A Igreja popular acaba por ser a Igreja do povo de Deus, que opta verdadeiramente pelos pobres, que se coloca no seu lugar, que toma partido por eles, que assume a sua causa e os seus processos. Uma Igreja que também puxa a hierarquia e o clero, puxa a teologia, puxa a liturgia, puxa a própria lei canónica e fá-los descer numa kenosis histórico-pastoral ao lugar onde Jesus realmente se colocou, que é o mesmo povo.

– Seria a “Igreja burguesa” uma contradição?

 Obviamente, obviamente.

– Não pode haver uma Igreja burguesa?

Eu pergunto: qual seria o verdadeiro código canónico evangélico da Igreja? E eu respondo: o novo mandamento, as bem-aventuranças. Em uma Igreja burguesa, uma Igreja de privilégios, uma Igreja de exploração da maioria, uma Igreja de expulsão da maioria as bem-aventuranças encaixam. Uma Igreja burguesa deixaria de ser a Igreja de Jesus.

– O baptismo e a conversão exigiriam uma mudança de classe?

Pergunto: o baptismo não é um mergulho na Páscoa, na morte, na ressurreição? Esta imersão na morte de Jesus deve ser obviamente a morte do egoísmo, a morte do privilégio cumulativo e exclusivo. E, nesse sentido, a morte de uma vida burguesa. Uma vida burguesa é uma vida pecaminosa, estruturalmente pecaminosa.

– Como responderia à crítica de que a Igreja é para todos, que está acima das opções políticas?

Eu responderia que Cristo também veio por todos, e optou pelos pobres. E condenou os ricos. E ele rejeitou o privilégio. E ele foi condenado, torturado, executado e colocado na cruz pelos poderes do latifúndio, da lei, do império.

Não é possível pensar que o Evangelho seja para todos por igual. O pior que se poderia dizer sobre o Evangelho é que o Evangelho é neutro. Costumo dizer: o Evangelho é para todos, mas é a favor dos pobres e contra os ricos. E explico.

A favor dos pobres no que eles têm de pobreza evangélica, e contra a marginalização e talvez o desespero em que têm de viver. E contra os ricos: contra a possibilidade, a capacidade que têm de viver num privilégio que saqueia a imensa maioria dos irmãos, contra a capacidade de explorar esses irmãos, contra a insensibilidade em que vivem, contra a idolatria em que estão imersos.

O rico, normalmente falando, está excluído do Reino dos céus. Só pode entrar nele, deixando de ser rico.

 

Do livro “Sobre a Opção pelos Pobres”. Vários autores. Coordenador: José María Vigil

 

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