por Administrador/a | 13 mar, 2021 | A vida de Pedro Casaldáliga
Teo-poeta da libertação e intelectual compassivo
Pedro Casaldáliga foi “um poeta de vida e palavra consubstanciada”, como o poeta e professor de Estética da Universidade de Barcelona José María Valverde o definiu, e “teo-poeta da libertação”, como eu o considero, acredito, que junto com Rubem Alves e Ernesto Cardenal. Ele era um esteta da palavra encarnada, um mestre do bom discurso, que nele é “ser”, “viver” e “fazer”. A sua poesia não é evasiva, mas está fundamentada na realidade, está cheia de indignação e dor pela injustiça e fome que a maioria da população do mundo sofreu – e ainda sofre -.
Ele era um revolucionário universalista que acreditava “na Internacional de frentes elevadas, da voz igual e das mãos entrelaçadas” e acompanhava as revoluções na América Latina, até com a sua presença física, como no caso da Revolução Sandinista.
Casaldáliga analisou a realidade com os olhos dos pobres, olhos que, como ele diz, “vêem com uma luz diferente”. Foi essa luz que o levou a criticar o neoliberalismo, que ele chamou “a grande blasfêmia do século XXI”. Em meio à era neoliberal, Pedro era um “trabalhador da utopia” de Outro Mundo Possível, em conexão com a proposta do Fórum Social Mundial, que organizou sete edições no Brasil. Utopia de libertação, que ele não considerava um ideal irrealizável, mas um objetivo que pode ser alcançado através do compromisso com o caminho da “esperança contra toda esperança”.
Casaldáliga também foi um profeta de olhos abertos que despertou as consciências adormecidas de muitos cidadãos conformistas e de muitos cristãos que, nas palavras do escritor francês Georges Bernanos, são “capazes de se sentar confortavelmente sob a cruz de Cristo”. Era um revolucionário universalista que acreditava “na Internacional de frentes elevadas, de vozes entre iguais e das mãos entrelaçadas” e acompanhava as revoluções da América Latina, até com a sua presença física, como no caso da Revolução Sandinista.
Ele confrontou e despiu os grandes sistemas de dominação apenas com a palavra e a exemplaridade da vida.
Casaldáliga agiu como um intelectual crítico, inconformista e compassivo com as vítimas do colonialismo, capitalismo, patriarcado, aporofobia e exploração da Terra. Ele foi sem dúvida um dos intelectuais mais lúcidos da América Latina, que ofereceu narrativas alternativas às narrativas oficiais do sistema, construiu espaços de convivência e diálogo simétrico ao invés de campos de batalha e monólogos, desestabilizou a (des)ordem estabelecida e revolucionou as mentes instaladas. Foi crítico com todos os poderes: político, religioso, econômico, incluindo os poderes ocultos da “Santa Sé”, a ponto de ter a audácia de pedir ao Papa João Paulo II que deixasse o Vaticano e seguisse o caminho do Evangelho. Ele confrontou e despiu os grandes sistemas de dominação apenas com a palavra e a exemplaridade da vida.
Outra de suas opções fundamentais foi a ecologia, seguindo o ecologista Francisco de Assis. Junto com seu colega e amigo próximo Tomás Balduino, bispo de Goiás, criou a Comissão Pastoral da Terra na Conferência Episcopal Brasileira e apoiou as lutas e demandas do Movimento dos Sem Terra (MST). Casaldália reivindicou o direito dos povos originais, os primeiros ambientalistas, ao seu território, que foi roubado pelos latifundiários, que os exploram sem demonstrar qualquer compaixão pela terra ou por seus legítimos habitantes. Reclamou também o reconhecimento dos direitos da Mãe Terra (Pachamama), que os povos nativos consideram sagrados e com os quais formam uma comunidade eco-humana. A melhor representação simbólica de sua consciência ecológica foi a Missa da Terra Sem Males.
Espiritualidade contra-hegemônica
Um missionário a serviço dos setores mais vulneráveis da sociedade, um místico solidário com os processos revolucionários, um contemplativo na libertação, um bispo em rebelião e insurreição evangélica, um pastor a serviço do povo.
Na esfera religiosa destacou-se como missionário a serviço dos setores mais vulneráveis da sociedade, místico solidário com os processos revolucionários, contemplativo na libertação, bispo em rebelião e insurreição evangélica, pastor a serviço do povo. Viveu uma espiritualidade contra-hegemônica e anti-imperial. “Cristianamente – afirma – a consigna é muito clara (e muito exigente) e foi o próprio Jesus de Nazaré quem nos encomendou…: contra a política opressiva de qualquer império, a política libertadora do Reino“. Aquele reino do Deus vivo, que pertence aos pobres e a todos aqueles que têm fome e sede de justiça. Contra a agenda do império, a agenda do Reino”. Casaldáliga pregou o Reino de Deus em luta contra o Império e criticou a Igreja “quando ela não coincide com o Reino”.
Pais e mães da Igreja Latinoamericana
Casaldáliga seguiu o caminho dos bispos que José Comblin chama “Pais da Igreja da América Latina”, que puseram em prática o Pacto das Catacumbas assinado por quarenta bispos na catacumba de São Domitilla em Roma, em novembro de 1965, durante a quarta sessão do Concílio Vaticano II, e ao qual aderiram mais de quinhentos depois. Eles optaram por uma Igreja pobre e dos pobres, denunciaram as ditaduras, foram perseguidos, colocaram suas vidas em risco e alguns foram assassinados e se tornaram mártires, como Monsenhor Romero, José Gerardi, Angelelli… Foram submetidos a processos judiciais, vigilância policial, investigações inquisitoriais pelas Congregações do Vaticano, sofreram condenações e até foram afastados de suas funções episcopais.
No final do livro me pergunto se houve e ainda há “Mães da Igreja Latinoamericana” e respondo afirmativamente, embora não sejam reconhecidas como tais. A falta de reconhecimento é a melhor prova da sobrevivência do patriarcado, mesmo na libertação do cristianismo.
“Minhas causas são mais importantes do que minha vida”
Pedro Casaldáliga afirmou repetidamente: “Minhas causas são mais importantes do que minha vida”. E assim foi. No livro dedico um extenso capítulo a essas causas, entre as quais destaco cinco que considero as mais importantes:
1) A causa das comunidades afrodescendentes, indígenas e camponesas, sujeitas ao colonialismo, ao racismo e ao capitalismo selvagem. Sua Missa da Terra Sem Males é a melhor expressão de sua solidariedade e identificação com os povos indígenas. Sua Missa dos Quilombos é o melhor reconhecimento da dignidade dos povos afro-descendentes submetidos à escravidão durante séculos e ainda hoje, da defesa de sua identidade cultural e religiosa e de seus territórios.
2) A causa das mulheres discriminadas por serem mulheres, por serem pobres, por pertencerem às classes populares, culturas nativas e grupos étnicos, desprezadas e submetidas à violência pelo patriarcado político e religioso até o feminicídio, e por praticarem espiritualidades e religiões que não correspondem às chamadas “grandes religiões”. Pedro assumiu a causa das mulheres camponesas, indígenas, negras e prostitutas, cuja marginalização social denunciou constantemente.
3) A causa da Terra, considerada sagrada pelas comunidades indígenas, sujeita de direitos e não venal.
4) A causa do diálogo interreligioso, intercultural e interétnico. Casaldáliga não impôs nunca a sua fé, nem afirmou que a religião cristã era a única religião verdadeira, mas respeitou e compartilhou as visões de mundo, espiritualidades e sabedoria das comunidades originais, dialogou com elas sem arrogância ou superioridade e sem estabelecer hierarquias, ao mesmo tempo em que reconheceu suas deidades.
5) A causa dos mártires, a começar pelo proto-mártir do cristianismo, Jesus de Nazaré, seguido pelo Padre João Bosco, assassinado em sua presença pela polícia, Monsenhor Romero, arcebispo profético de San Salvador, a quem declarou santo em seu memorável poema “São Romero da América, Nosso Pastor e Mártir”, e pelo martírio coletivo dos “índios crucificados”, sobre o qual escreveu um dramático e denunciante artigo no International Journal of Theology Concilium, em 1983.
Seus textos, apoiados pela autenticidade de sua vida, são, em minha opinião, a melhor resposta a esta guinada política da ultra-direita e constituem a base para a proposta de uma alternativa democrática radical.
Casaldáliga é um dos símbolos mais luminosos do cristianismo libertador em meio à ascensão dos movimentos religiosos fundamentalistas que estão mudando o mapa religioso e político da América Latina. Ele se tornou um farol iluminador na escuridão do presente e em meio à ascensão da extrema direita política em nível local e global, que está mudando o mapa político e é uma ameaça à democracia. Seus textos, apoiados pela autenticidade de sua vida, são, em minha opinião, a melhor resposta a esta guinada política ultra-direita e constituem a base para a proposta de uma alternativa de democracia radical, ou seja, participativa, de base e em todas as áreas: ética, política, econômica, social, trabalhista, cultural, educacional, ecológica, etc.
Ignacio Ellacuría disse: “Com Monsenhor Romero, Deus passou por El Salvador”. Atrevo-me a afirmar: “Com Pedro Casaldáliga, ‘o Deus de todos os nomes’ passou pelo Brasil”.
Texto de Juan José Tamayo, teólogo.
Fonte: Revista Ameríndia
Tradução e montagem: Raul Vico
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por Administrador/a | 24 fev, 2021 | A vida de Pedro Casaldáliga
Prelazia de São Félix do Araguaia
Caixa Postal 05
78370 – São Félix do Araguaia, MT
Brasil
São Félix do Araguaia
22 de fevereiro de 1986
Festa da Cátedra de Pedro.
Caro Papa João Paulo II,
irmão em Jesus Cristo e pastor da nossa Igreja:
Há muito tempo queria lhe escrever esta carta e há muito tempo venho pensando e refletindo sobre a mesma em oração.
Desejo que seja uma conversa fraterna –em sinceridade humana e com a liberdade do Espírito-, e também um gesto de serviço de um bispo para o bispo de Roma, que é Pedro pela minha fé, pela minha corresponsabilidade eclesial e pela minha colegialidade apostólica.
Estou no Brasil há dezoito anos, onde vim voluntariamente como missionário. Nunca voltei ao meu país natal, à Espanha, nem mesmo na morte de minha mãe. Nunca tirei férias em todo esse tempo. Não saí do Brasil em dezessete anos. Ao longo destes dezoito anos morei e trabalhei no Nordeste do Estado de Mato Grosso, sendo o primeiro padre a se instalar de forma permanente nesta região. Há quinze anos sou bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia.
É uma área de latifúndios, nacionais e multinacionais, com propriedades agrícolas de centenas de milhares de hectares, com trabalhadores que vivem frequentemente em regime de violência e semiescravidão
A região da Prelazia está localizada na Amazônia Legal brasileira e cobre uma área de 150.000 km2. Ainda hoje não possui sequer um palmo de estrada asfaltada. Apenas recentemente o serviço telefônico foi instalado. Freqüentemente a região fica isolada ou muito mal comunicada devido às chuvas e inundações que interditam as estradas.
É uma área de latifúndios, nacionais e multinacionais, com propriedades agrícolas de centenas de milhares de hectares, com trabalhadores que vivem frequentemente em regime de violência e semiescravidão. Há muito que acompanho a dramática vida dos índios, dos posseiros e dos peones (trabalhadores braçais das fazendas). Toda a população em geral, dentro da Prelazia, tem sido obrigada a viver precariamente, sem educação adequada, saúde, transporte, moradia, segurança jurídica e, principalmente, sem terra garantida para trabalhar.
Ainda neste momento três agentes pastorais estão sendo processados sob falsas acusações. Tive de presenciar pessoalmente mortes violentas.
Sob a ditadura militar, o governo tentou, cinco vezes, me expulsar do país. Quatro vezes toda a Prelazia foi cercada por operações militares de controle e pressão. A minha vida foi ameaçada publicamente e colocado um preço por ela, assim como a vida de vários padres e agentes pastorais da Prelazia.
Em várias ocasiões, esses padres, agentes pastorais e eu mesmo fomos presos; torturados vários deles também. Padre Francisco Jentel foi preso, maltratado, condenado a dez anos de prisão, depois expulso do Brasil, morrendo finalmente no exílio, longe de seu país de missão.
O arquivo da Prelazia foi violentado e saqueado pelo Exército e pela Polícia. O boletim da Prelazia foi falsificado pelos órgãos repressivos do regime e, então, divulgado pela grande imprensa, para servir de acusação contra a própria Prelazia.
Ainda neste momento três agentes pastorais estão sendo processados sob falsas acusações. Tive de presenciar pessoalmente mortes violentas, como a do padre jesuíta João Bosco Penido Burnier, assassinado ao meu lado pela polícia, quando nós dois fomos à Delegacia-Cadeia de Riberão Bonito para protestar oficialmente contra as torturas a que estavam sendo submetidas duas mulheres, trabalhadoras rurais, mães de família, detidas injustamente.
Também no seio da Igreja surgiram alguns mal-entendidos de irmãos que desconhecem a realidade do povo e da pastoral nestas regiões remotas e violentas, onde muitas vezes o povo só tem a voz da Igreja que tenta colocar-se a seu serviço.
Ao longo de todos esses anos, se multiplicaram as incomprensões e as calúnias dos grandes proprietários de terras -nenhum dos quais mora na região- e de outros poderosos do país e do exterior. Também no seio da Igreja surgiram alguns mal-entendidos de irmãos que desconhecem a realidade do povo e da pastoral nestas regiões remotas e violentas, onde muitas vezes o povo só tem a voz da Igreja que tenta colocar-se a seu serviço.
Além desses sofrimentos vividos no âmbito da Prelazia, sendo responsável nacional da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e membro do CIMI (Conselho Indígena Missionário), tive que acompanhar de perto as tribulações e até a morte de tantos indígenas, camponeses, agentes pastorais e pessoas comprometidas com a causa desses irmãos, aos quais a ganância do capital não lhes permite sequer sobreviver. Entre eles, o índio Marçal, um Guarani, que saudou você pessoalmente em Manaus, em nome dos povos indígenas do Brasil.
O Deus vivo, o Pai de Jesus, é quem vai nos julgar. No entanto, deixe-me abrir meu coração ao seu coração como irmão e como pastor. Viver nessas circunstâncias extremas, ser poeta e escrever, manter contato com as pessoas e ambientes de comunicação ou de fronteira (pela idade, ideologia, alteridade cultural, situação social ou pelos serviços de emergência que prestam) pode levar a gestos e posições menos comuns e às vezes desconfortáveis para a sociedade estabelecida.
Como irmão e como Papa que é para mim, peço-lhe que aceite a intenção sincera e a vontade apaixonadamente cristã e eclesial desta carta e das minhas atitudes.
Sinto-me um pouco pequeno e distante nesta Amazônia brasileira tão diferente, e nesta América Latina, tão convulsionada e freqüentemente incompreendida.
O Pai concedeu-me a graça de nunca abandonar a oração, ao longo desta vida mais ou menos agitada. Preservou-me das grandes tentações contra a fé e a vida consagrada e permitiu-me contar sempre com a força dos irmãos através de uma comunhão eclesial rica de encontros, estudos e ajuda. Certamente por isso, creio que não me desviei do caminho de Jesus, e espero, também por isso, continuar até ao fim neste Caminho que é Verdade e Vida.
Lamento incomodá-lo com a leitura desta longa carta, quando tantos serviços e preocupações já pesam sobre você.
Duas cartas do Cardeal Gantin, Prefeito da Congregação para os Bispos e uma comunicação da Nunciatura que recebi recentemente, levaram-me finalmente a escrever-lhe esta carta. Essas três comunicações insistiam na minha visita ad límina, questionaram aspectos da pastoral da Prelazia e condenaram minha ida à América Central.
Sinto-me um pouco pequeno e distante nesta Amazônia brasileira tão diferente, e nesta América Latina, tão convulsionada e freqüentemente incompreendida.
Achei necessário preceder-me com esta carta. Pareceu-me que apenas um contato pessoal silencioso entre nós dois, por meio de uma escrita cuidadosa e clara, me daria a possibilidade de realmente me aproximar de você.
A outra maneira maior de nos encontrar já está garantida: rezo por você todos os dias, querido irmão João Paulo.
Como bispo da Igreja Católica, posso e devo dar à nossa Igreja esta contribuição: pensar em voz alta a minha fé e exercer, com liberdade de família, o serviço da colegialidade corresponsável.
Não tome como impertinência a opinião que lhe expressarei sobre questões, situações e práticas que são secularmente polêmicas na Igreja ou mesmo contestadas especialmente hoje, quando o espírito crítico e o pluralismo também influenciam fortemente a vida eclesiástica. Tratar novamente estas questões incómodas, falar com o Papa, significa para mim expressar corresponsabilidade em relação à voz de milhões de irmãos católicos – também de muitos bispos – e de irmãos não católicos, evangélicos, de outras religiões, humanos.
Como bispo da Igreja Católica, posso e devo dar à nossa Igreja esta contribuição: pensar em voz alta a minha fé e exercer, com liberdade de família, o serviço da colegialidade corresponsável. Ficar calado, deixar passar, com certo fatalismo, a força das estruturas seculares, seria muito mais facil. Não acho, porém, que fosse a atitude mais cristã, ou até mais humana.
Do mesmo jeito que falar, exigir reformas, assumir novas posições, pode causar “escândalo” aos irmãos que vivem em situações mais calmas ou menos críticas, também podemos acusar “escândalo” a muitos irmãos, de outros contextos sociais ou culturais, mais abertos à crítica e ávidos pela renovação da Igreja – sempre uma e “semper renovanda” – quando nos calamos ou aceitamos a rotina ou tomamos medidas unívocas indiscriminadamente.
Sem se “conformar com este mundo”, a Igreja de Jesus, para ser fiel ao Evangelho do Reino, deve estar atenta “aos sinais dos Tempos” e dos lugares e anunciar a Palavra, em um tom cultural ou histórico e com um testemunho de vida e prática, que homens e mulheres de todos os tempos e lugares possam entender essa Palavra e sejam encorajados a aceitá-la.
No que diz respeito ao campo social especificamente, não podemos dizer com muita verdade que já fizemos a opção pelos pobres. Em primeiro lugar, porque não partilhamos nas nossas vidas e nas nossas instituições a pobreza real que eles vivem. E, em segundo lugar, porque não agimos, perante a “riqueza da iniquidade”, com aquela liberdade e firmeza adotada pelo Senhor.
A opção pelos pobres, que nunca excluirá a pessoa do rico – visto que a salvação é oferecida a todos e o ministério da Igreja é devido a todos -, exclui o modo de vida dos ricos, “insulto à miséria dos pobres”, e seu sistema de acumulação e privilégio, que necessariamente saqueiam e marginalizam a grande maioria da família humana, povos e continentes inteiros.
A opção pelos pobres, que nunca excluirá a pessoa do rico – visto que a salvação é oferecida a todos e o ministério da Igreja é devido a todos -, exclui o modo de vida dos ricos, “insulto à miséria dos pobres”.
Não fiz a visita ad limina, mesmo depois de receber, como outros, um convite da Congregação para os Bispos que nos lembrava esta prática. Queria e desejo ajudar a Sé Apostólica a rever a forma dessa visita. Ouço críticas de muitos bispos, porque mesmo reconhecendo que promove um contato com os Dicastérios Romanos e um encontro cordial com o Papa, revela-se incapaz de produzir um verdadeiro intercâmbio de colegialidade apostólica dos Pastores das Igrejas Privadas com o pastor da Igreja universal.
Faz-se um grande gasto, se estabelecem contatos, se cumpre uma tradição. No entanto, a tradição de “videre Petrum” e de ajudar Pedro a ver toda a Igreja, está se cumprindo? Não teria a Igreja hoje outras formas mais eficazes de intercambiar, estabelecer contatos, avaliar e expressar a comunhão dos Pastores e suas Igrejas com a Igreja Universal e mais especificamente com o Bispo de Roma?
Jamais pretenderia supor no Papa um conhecimento detalhado das Igrejas particulares ou pedir-lhe soluções concretas para sua pastoral. Para isso estamos os respectivos Pastores, Ministros e Conselhos Pastorais de cada Igreja. Para isso existem também as Conferências Episcopais que, a meu ver e de muitos outros, não estão sendo devidamente valorizadas e até mesmo sendo ignoradas ou injustamente indicadas por certas atitudes de algumas instâncias da Cúria Romana. Se as Conferências Episcopais não são “teológicas” ou “apostólicas”, como tais – poderiam não existir, sem elas a Igreja caminhou – também não são, em si mesmas, “apostólicas” ou “teológicas”, a cúria, nem mesmo a Cúria Romana: Pedro presidiu e governou a Igreja, de maneira diferente, em épocas diferentes.
O Papa precisa de auxiliares, como todos os bispos da Igreja, embora deveria ser sempre mais simples e participativo. Porém, Irmão João Paulo, para muitos de nós, certas estruturas da Cúria não respondem ao testemunho de simplicidade evangélica e de comunhão fraterna que o Senhor e o mundo exigem de nós; nem traduzem em suas atitudes, por vezes centralizadoras e impositivas, uma catolicidade verdadeiramente universal, nem sempre respeitam as exigências da corresponsabilidade adulta; nem mesmo, às vezes, os direitos básicos da pessoa humana ou de diferentes povos. Tampouco faltam em setores da Cúria Romana preconceitos, atenção unilateral à informação, ou mesmo posições, mais ou menos inconscientes, de etnocentrismo cultural europeu em relação à América Latina, África e Ásia.
João Paulo, irmão, permita-me outra palavra de crítica fraterna ao próprio Papa. Por mais tradicionais que sejam os títulos de ‘Santíssimo Padre’, ‘Sua Santidade’ … – bem como outros títulos eclesiásticos como ‘Muito Eminente’, ‘Muito Excelente’ – são evidentemente não muito evangélicos e até mesmo extravagantes em termos humanos.
Com um espírito objetivo e sereno, não se pode negar que as mulheres continuam fortemente marginalizadas na Igreja: na legislação canônica, na liturgia, nos ministérios, na estrutura eclesiástica. Para uma fé e uma comunidade daquela Boa Nova que já não discrimina entre “judeu e grego, livre e escravo, homem e mulher”, esta discriminação das mulheres na Igreja nunca poderá ser justificada. Tradições culturais masculinizantes que não podem anular a novidade do Evangelho talvez expliquem o passado; mas não podem justificar o presente, e muito menos o futuro imediato.
Outro ponto delicado e muito sensível ao seu coração, Irmão Jão Paulo, é o celibato. Eu, pessoalmente, nunca duvidei do seu valor evangélico e da sua necessidade para a plenitude da vida eclesial, como carisma de serviço ao Reino e como testemunho da gloriosa condição futura. Penso, porém, que não estamos sendo compreensivos ou justos com esses milhares de padres, muitos deles em situação dramática, que aceitaram compulsivamente o celibato, como requisito, atualmente obrigatório, para o ministério sacerdotal na Igreja latina. Posteriormente, por causa dessa demanda não assumida vitalmente, tiveram que deixar o ministério, não podendo mais regularizar sua vida, seja dentro da Igreja ou, às vezes, perante a sociedade.
O Colégio Cardinalício é privilegiado, por vezes, com poderes e funções dificilmente associados aos direitos anteriores e às funções mais eclesialmente inatas do Colégio Apostólico Episcopal enquanto tal.
Pessoalmente, tenho uma experiência triste com as Nunciaturas. Vós conheceis melhor do que eu a reivindicação persistente das Conferências Espiscopais de bispos, presbitérios, grandes setores da Igreja, em face de uma instituição tão marcadamente diplomática na sociedade e freqüentemente, com uma atuação paralela à atuação dos episcopados.
João Paulo, irmão, permita-me outra palavra de crítica fraterna ao próprio Papa. Por mais tradicionais que sejam os títulos de ‘Santíssimo Padre’, ‘Sua Santidade’ … – bem como outros títulos eclesiásticos como ‘Muito Eminente’, ‘Muito Excelente’ – são evidentemente não muito evangélicos e até mesmo extravagantes em termos humanos. “Não se façam chamar pais ou mestres”, diz o Senhor. Da mesma forma, seria mais evangélico – e também mais acessível às sensibilidades de hoje – simplificar o vestuário, os gestos, as distâncias, dentro da nossa Igreja.
Por que não reexaminar, à luz da fé, a favor do Ecumenismo, para dar testemunho ao mundo, a condição de Estado com que o Vaticano se apresenta, conferindo à pessoa do Papa uma dimensão explicitamente política, que prejudica a liberdade e transparência de seu testemunho como pastor universal da Igreja?
Penso também que seria muito apostólico para vós obter uma avaliação suficientemente livre e participativa das vossas viagens, tão generosas e mesmo heróicas em muitos aspectos, e contudo contestadas – e, a meu ver, nem sempre sem motivos -: não são essas viagens conflituosas para o ecumenismo – testemunha de Jesus pedindo ao Pai que sejamos um – pela liberdade religiosa na vida pública pluralista? Essas viagens não exigem grandes gastos econômicos por parte das Igrejas e dos Estados, investindo-se assim em certa arrogância e privilégios cívico-políticos em relação à Igreja Católica, na pessoa do Papa, que se tornam irritantes para os outros?
Por que não reexaminar, à luz da fé, a favor do Ecumenismo, para dar testemunho ao mundo, a condição de Estado com que o Vaticano se apresenta, conferindo à pessoa do Papa uma dimensão explicitamente política, que prejudica a liberdade e a transparência de seu testemunho como pastor universal da Igreja?
Por que não se decidir, com liberdade evangélica e também com realismo, por uma renovação profunda da Cúria Romana?
Sei da dor que a sua viagem à Nicarágua lhe causou. Mesmo assim, sinto que devo confiar-lhe a impressão – que muitos outros compartilham – de que seus assessores e a sua própria atitude pessoal não contribuíram para que esta viagem extremamente crítica e, por outro lado necessária, fosse mais feliz e, acima de tudo, mais evangelizadora. Uma ferida se abriu no coração de muitos nicaragüenses e de muitos latino-americanos, assim como você se sentiu ferido em seu coração.
No ano passado estive na Nicarágua. Foi a minha primeira saída do Brasil após dezessete anos de permanência no país. Pela amizade que mantenho, há muito tempo, com muitos nicaragüenses, através de contatos pessoais ou por carta, senti que devia me fazer presente, como pessoa humana e como bispo da Igreja, em uma hora de gravíssima agressão político-militar e profundo sofrimento interno.
Não tive a intenção de substituir ou subestimar o episcopado local. No entanto, acreditava que poderia e até mesmo deveria ajudar aquelas pessoas e aquela Igreja. Por isso, comuniquei por escrito aos bispos da Nicarágua, assim que cheguei. Tentei falar pessoalmente com alguns deles, mas não fui atendido. A hierarquia da Nicarágua está abertamente de um lado; do outro lado, há milhares de cristãos, aos quais também se deve a Igreja.
Sinceramente penso que a nossa Igreja – me sinto como a Igreja da Nicarágua também, como cristão e como bispo da Igreja – não está dando oficialmente naquele país sofrido, e com repercussões negativas para toda a América Central, o Caribe e para toda a América Latina, o testemunho que deveria dar: condenando as agressões, defendendo a autodeterminação desses povos, consolando as mães dos caídos e celebrando, na Esperança, a morte violenta de tantos irmãos, principalmente católicos.
Nós, membros da hierarquia, não reconhecemos de fato os leigos como adultos e administradores da Igreja, ou queremos impor ideologias e estilos pessoais, exigindo uniformidade ou nos escondendo no centralismo.
É só com o socialismo ou com o sandinismo que a Igreja não pode dialogar criticamente, sim, como deve dialogar criticamente com a realidade humana? A Igreja conseguirá parar de dialogar com a História? Dialogou com o Império Romano, com o feudalismo, e dialogou, à vontade, com a burguesia e com o capitalismo, muitas vezes acriticamente, como uma avaliação histórica posterior teve de admitir. Não está em diálogo com a administração Reagan? O Império norte-americano merece mais consideração da Igreja do que o doloroso processo com que a pequena Nicarágua finge ser ela mesma, enfim, arriscando e até errando, mas ainda sendo ela mesma?
O perigo do comunismo não justificará nossa omissão ou conivência com o capitalismo. Esta omissão ou conivência pode um dia “justificar” dramaticamente a revolta, a indiferença religiosa ou mesmo o ateísmo de muitos, especialmente entre os militantes e nas novas gerações. A credibilidade da Igreja – e do Evangelho e do próprio Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo – depende, em grande parte, do nosso ministério, crítico, sim, mas comprometido com a Causa dos pobres e com os processos de libertação dos os povos dominados secularmente por sucessivos impérios e oligarquias.
Você, como polonês, está em uma posição muito pessoal para compreender esses processos. Sua Polônia natal, tão sofrida e forte, o irmão Jõao Paulo, tantas vezes invadido e ocupado, privado de sua autonomia e ameaçado em sua fé por impérios vizinhos (Prússia, Alemanha nazista, Rússia, Império Austro-Húngaro ) é irmã gêmea da América Central e o Caribe, tantas vezes ocupado pelo Império do Norte. Os Estados Unidos invadiram a Nicarágua em 1898 e a reocuparam com seus fuzileiros navais de 1909 a 1933, deixando então uma ditadura que durou até 1979. Haiti esteve sob ocupação de 1915 a 1934. Porto Rico continua ocupado hoje, desde 1902. Cuba sofreu várias vezes invasões e ocupações, assim como os demais países da região, especialmente Panamá, Honduras e República Dominicana. Mais recentemente, Granada sofreu o mesmo destino. Os próprios Estados Unidos exportam suas seitas para esses países, que internamente dividem o povo e ameaçam a fé católica e a fé de outras Igrejas evangélicas … aí estabelecidas.
Sei também de suas preocupações apostólicas em relação à nossa Teologia da Libertação, às Comunidades Cristãs na mídia popular, aos nossos teólogos, aos nossos encontros, publicações e outras manifestações da vitalidade da Igreja na América Latina, de outras Igrejas do Terceiro Mundo e de alguns setores da Igreja na Europa e América do Norte. Seria ignorar a sua missão de Pastor universal fingir que não conhece e até se preocupa com todo esse movimento eclesial, especialmente quando a América Latina, especificamente, representa quase a metade dos membros da Igreja Católica.
Em todo caso, mais uma vez, peço desculpas por expressar uma palavra sentida à respeito da forma como a Cúria Romana está tratando a nossa Teologia da Libertação e seus Teólogos, certas instituições eclesiásticas – como a própria CNBB, em certas ocasiões -, as iniciativas das nossas Igrejas e de algumas comunidades sofredoras deste Continente, bem como dos seus animadores.
Diante de Deus, posso dar-lhe o testemunho dos agentes pastorais e das comunidades com as quais estabeleci contato na Nicarágua. Eles nunca alegaram ser uma Igreja “paralela”. Não ignoram a Hierarquia nas suas funções legítimas, e sabem que são a Igreja, manifestando o desejo sincero de nela permanecer. Por que não pensar que algumas causas desses conflitos na pastoral podem vir também da hierarquia? Nós, membros da hierarquia, não reconhecemos de fato os leigos como adultos e administradores da Igreja, ou queremos impor ideologias e estilos pessoais, exigindo uniformidade ou nos escondendo no centralismo.
Não quero criar problemas desnecessários. Desejo ajudar, de forma responsável e colegiada, a levar adianta missão evangelizadora da Igreja, particularmente aqui no Brasil e na América Latina. Porque acredito na perenidade do Evangelho.
Acabo de receber a última carta do Cardeal Gantin, Prefeito da Congregação para os Bispos.
Nela, o Cardeal, entre outras punições, me lembra agora a visita apostólica que recebi e recebeu a Prelazia de São Félix do Araguaia em 1977. Desejo simplesmente informar que esta visita foi motivada por denúncias ou calúnias de um irmão no episcopado; que o visitante apostólico passou apenas quatro dias em São Félix, sem visitar nenhuma comunidade, concordando apenas em conversar com pouquíssimas pessoas e ver o Arquivo da Prelazia, depois de insistirmos que o fizesse. Nem ele, nem a Nunciatura, nem a Santa Sé jamais me comunicaram as conclusões da referida visita, embora eu a tivesse expressamente solicitado.
Por fim, quero reafirmar-lhe, querido irmão em Cristo e Papa, a segurança da minha comunhão e a sincera vontade de continuar com a Igreja de Jesus, a serviço do Reino. Deixo para Pedro, de nossa Igreja, tomar a decisão que julgar apropriada a meu respeito, também bispo da Igreja. Não quero criar problemas desnecessários. Desejo ajudar, de forma responsável e colegiada, a levar adianta missão evangelizadora da Igreja, particularmente aqui no Brasil e na América Latina. Porque acredito na perenidade do Evangelho e na presença sempre libertadora do Senhor Ressuscitado, quero acreditar também na juventude da sua Igreja.
Se você considerar apropriado, pode indicar uma data para eu visitá-lo pessoalmente.
Confio na sua oração de irmão e de Pontífice. Deixo o desafio desta hora nas mãos de Maria, Mãe de Jesus. Reitero a minha comunhão de irmão em Jesus Cristo e, com você, reafirmo a minha condição de servo da Igreja de Jesus.
Com sua bênção apostólica,
Pedro Casaldáliga,
Bispo de São Félix do Araguaia , MT, Brasil.
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por Administrador/a | 25 nov, 2020 | As causas de Pedro Casaldáliga
Uma Igreja comunitária, sem hierarquias, com plena igualdade e sem etiquetas. Esta é a Igreja que o bispo claretiano, Pedro Casaldáliga promoveu em sua diocese, São Félix do Araguaia. Após sua morte em agosto, muitas vozes têm lembrado seu estilo eclesial e sua disposição. O jornal Alvorada, da Prelazia, publicou cinco breves testemunhas de mulheres que compartilharam a fé e a missão evangélica com o bispo Pedro.
“Pedro nos convidou a criar um modelo circular e inclusivo de Igreja, inserido na vida do povo, em suas lutas e resistências, diante das ameaças e violências do latifúndio e da ausência e omissão do Estado”. É o testemunho de Jeane Bellini, membro da equipe Casaldáliga entre 1983 e 2005.
Bellini explica que desde o início ele propôs “formar equipes mistas de homens e mulheres, leigos, religiosos e sacerdotes, sem hierarquias”. As equipes viviam com o povo e enfrentarvam juntos os desafios. “Aprendemos muito, foi um caminho marcado por momentos fortes de vitórias, mas também por muitas derrotas”, conta.
Uma Igreja – povo de Deus – sem hierarquias
A experiência com o povo juntava-se à experiência religiosa: “Nos inundamos da espiritualidade de Pedro, que permeava tudo o que ele fazia. Celebrávamos tudo: a vida, a morte, a luta, a derrota e a vitória”, diz Bellini.
Ela sublinha o privilégio de, ao longo de 22 anos, “fazer parte da construção de um modelo de Igreja – Povo de Deus, sem hierarquias”. Nunca usaram as etiquetas de leigo, leiga, padre, irmã ou bispo. “Nós nos reconhecíamos pelo nome, não pela categoria. Cada membro da Igreja, da equipe pastoral, assumiu e compartilhou essa missão”.
Essa é também a experiência de Selme de Lima Pontim, que viveu por mais de 20 anos na Prelazia de Casaldáliga: “Durante minha estada em São Félix, eu rezei missa muitas vezes, até mesmo na catedral. Eles nunca me proibiram, ao contrário, sempre me encorajaram a fazê-lo e a me preparar.
De Lima fez um curso no Centro de Estudos Bíblicos, CEBI por correspondência e cursou Teologia do Pluralismo Religioso pela Internet. Ele se lembra de “sentir sempre a alegria de Pedro” assim que ela estava avançando em sua formação. Na missa, ele não só lia o Evangelho, mas também dava algumas homilias, explica.
“Nunca houve nenhuma reunião separada entre padres e freiras para tomar decisões”.
A mãe de Dailir Rodrigues da Silva também era uma mulher ativa na comunidade de Casaldáliga. E Dailir nasceu e viveu na Prelazia de São Félix do Araguaia. Durante seis anos, ela foi agente pastoral. Fez parte dos Conselhos de várias comunidades locais e regionais e também da assembléia geral da Prelazia. “Eram lugares onde todos tinham o mesmo direito: uma voz e um voto”, disse Rodrigues.
A cultura democrática permeava o dia-a-dia das comunidades, sem distinção entre homens e mulheres, leigos ou padres: “Nunca houve um encontro separado entre padres e freiras para tomar decisões sobre a vida da comunidade ou da Prelazia. E lembra: “Tanto o Pedro como os outros tinham o mesmo direito de falar e decidir. Tudo era debatido, refletido ou votado”.
No fundo havia uma responsabilidade conjunta: “Nem o Evangelho nem a partilha da Palavra era responsabilidade exclusiva dos padres, mas uma responsabilidade de toda a comunidade”. E também “as casas das equipes pastorais eram casas da comunidade, não a casa do padre” onde “mulheres e homens eram recebidos e tratados com o mesmo carinho e respeito”.
“Por que as mulheres não podem celebrar missa?”
Tânia Oliveira viveu 20 anos com Casaldáliga. Três desses anos na casa de Pedro. No primeiro ano, com ele e a Irmã Irene. “Sempre me senti respeitada e valorizada como missionária leigo”, diz ela.
Uma vez sua filha, ainda bem nova, de seis ou sete anos de idade, perguntou ao bispo: “Pedro, por que as mulheres não podem celebrar a missa?” Pedro, respondeu, com um largo sorriso: “Gabriella, eu esperava ver isso acontecer”. Acho que não viverei o suficiente para vê-lo, talvez sua mãe o faça, mas tenho esperança de que você sim vai ver isso acontecer”. E acrescentou: “Não há nada que impeça as mulheres de fazer o mesmo que nós padres fazemos e, na verdade, acho que vocês podem fazê-lo muito melhor!”.
Casaldáliga tinha um caráter renovador. Maria Aparecida Rezende, que nasceu e ainda mora no Araguaia, conta que quando tinha 14 ou 15 anos, após sua primeira comunhão, ela começou a ser catequista. “Em uma ocasião, tivemos um encontro de jovens para preparar a missa. Era um dia de festa e tínhamos que organizar a igreja e preparar a missa com Pedro e o Padre Clélio”.
Houve uma discussão porque “os meninos queriam preparar a missa porque eram homens e não queriam limpar a igreja e os bancos”. Em certo momento, Pedro disse ao grupo: “Hoje teremos uma missa feminina. Os rapazes vão limpar a igreja”.
Rezende se lembra com surpresa: “Os meninos fariam ‘trabalho de mulher’?”….Conta que quando contou sobre o acontecido em sua casa, seus irmãos disseram que o pessoal da Prelazia era muito estranho. Mas, a Maria Aparecida tem clareza: “Pedro nos ensinou que fazer comida, lavar pratos e preparar a casa também era um trabalho de homens. O povo do interior, da roça, acharam muito estranho, mas aos poucos se acostumaram”.
Fotografia de Selme Lima Pontim
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