Dia Internacional da Mulher foi instituído por força das lutas de mulheres, a partir do século XVII, pela igualdade de direitos entre os gêneros e pelo reconhecimento de seus direitos. Não se trata de data festiva, mesmo porque nada havia a ser festejado.
Nossas avós e mães nos contaram; naqueles tempos, à mulher era negado o direito de ir à escola; aprender a ler e a escrever constituía-se em crime gravíssimo. Sabendo escrever e ler, passariam elas a escrever a eventuais e imagináveis namorados. Era o pensamento dominante.
O Dia Internacional das Mulheres é produto desse não contentar-se com os limites impostos; produto das transgressões. Algumas pagaram caro.
A escritora Ligia Fagundes Telles conta que quando decidiu cursar a faculdade de Direito, sua mãe a alertou: “mas logo faculdade de direito, filha, um lugar só de homens?! Você não vai casar; homem não gosta de mulher inteligente.”
Até mais da metade do século vinte, a mulher era considerada incapaz para os atos da vida civil portanto, tutelada pelo pai ou irmão e depois pelo marido; uma peça de adorno ou uma serva.
Mas foram muitas as que não se conformaram com a condição que lhes era imposta e ousaram pensar grande; alçaram vôo; transgrediram.
Hoje, no ocaso da primeira década do século XXI, no pós modernismo (alguns ousam afirmar que no pós historia), ainda há muito que conquistar; muito pelo que lutar.
O Dia Internacional das Mulheres é produto desse não contentar-se com os limites impostos; produto das transgressões. Algumas pagaram caro.
A origem do dia tem sido, com freqüência, atribuída à morte, em razão de incêndio, de mais de cem operárias têxteis, ocorrida em 1857, em Nova York, Estados Unidos.
Organizações feministas têm se dedicado à pesquisa e ao resgate das lutas da mulher no mundo inteiro, trazendo à luz o que foi, deliberadamente, acobertado, negado ou desvirtuado.
Hoje, no ocaso da primeira década do século XXI, no pós modernismo (alguns ousam afirmar que no pós historia), ainda há muito que conquistar; muito pelo que lutar.
É verdade que as mulheres freqüentam faculdades; são doutoras; executivas; mandatárias de cargos públicos eletivos; juízas; promotoras; escritoras e cientistas, premiadas com o Nobel.
Inobstante, os seus salários são menores que os dos homens, exercendo as mesmas funções, e o número de mulheres nos parlamentos e no Executivo, estaduais e federal, ainda é muito pequeno. Apenas em cargos municipais é que se constata uma presença maior, talvez pelo fato de que ela, para exercer o mandato, não tenha que se mudar do local. É que sobre a mulher pesa a responsabilidade dos filhos e da casa e isto é um tributo que tem sido cobrado apenas dela.
Um pouco de memória
Várias organizações feministas têm se dedicado à pesquisa e nos oferecem dados que ajudam a desenrolar o novelo da história das lutas e transgressões de mulheres que nos antecederam e possibilitaram chegarmos até aqui.
Muitos são os acontecimentos apontados como tendo sido o responsável pela instituição da data, mas diversas pesquisas têm apontado a Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, realizada em 1910, na cidade de Copenhague, na Dinamarca, durante uma Conferência, em que Clara Zetkin e várias outras militantes, apresentaram uma Resolução contendo proposta de instituição, oficial, de um Dia Internacional das mulheres, que apesar de não mencionar uma data precisa, apenas mencionava o exemplo das socialistas norte-americanas, como sendo o fato que, mais provavelmente, deu origem ao Dia.
Outras fontes revelam que no dia 03 de maio de 1908, em Chicago, Estados Unidos, comemorou-se o primeiro Dia da Mulher, em que participaram pelo menos 1 mil e 500 mulheres, que reivindicavam igualdade econômica e política, sendo que no aspecto político, defendiam o voto feminino, dentro e fora do partido, e denunciavam a exploração e a opressão a que eram submetidas as mulheres.
Em 1909, o Dia da Mulher foi uma atividade oficial do partido socialista americano que contou com a organização do Comitê Nacional de Mulheres, em defesa do voto feminino, no dia 28 de fevereiro de 1909.
Em 1910, o Dia da Mulher foi comemorado em 27 de fevereiro, participando das atividades pelo menos 3 mil mulheres, que reivindicavam o direito ao voto.
No mês de agosto daquele ano, durante a Conferência de Mulheres socialistas, militantes socialistas propõem, e é aprovada, a instituição do Dia Internacional da Mulher a ser organizado em todos os países, sem, contudo, especificar data, sendo a reivindicação central o direito ao voto.
As alemãs comemoraram o Dia Internacional da Mulher no dia 19 de março de 1911. As suecas o comemoraram no dia 1º de maio também de 1911.
Em 1913, na Rússia czarista, realizou-se a Primeira Jornada Internacional das Trabalhadoras pelo voto feminino, havendo forte repressão em Petrogrado. Em 1914 não foi possível a organização de atividades, já que as principais organizadoras do Dia Internacional das Mulheres estavam presas.
Neste mesmo ano, na Alemanha, o Dia foi dedicado à luta pelo direito ao voto para as mulheres e comemorado, talvez pela primeira vez, no dia 8 de março, sem um motivo especial, mas porque teria sido a data mais viável naquele ano.
Em fevereiro de 1917, na Rússia, as manifestações das mulheres eram contra a guerra, a fome e a escassez de alimentos; tudo em meio a uma greve das operárias do setor têxtil. Tudo aconteceu no 23 de fevereiro (no calendário ortodoxo, 8 de março); era a comemoração do Dia Internacional das Mulheres na Rússia. Tais manifestações, que duraram dias, segundo pesquisadores, deram início à Revolução Russa.
A pesquisadora Renée Côté faz referência a documentos de 1921, Conferência Internacional das Mulheres Comunistas, em que uma “camarada” búlgara propõe o 8 de Março como data oficial para o Dia Internacional das Mulheres, lembrando a iniciativa das mulheres russas, o que, a partir de 1922, passou a ser a data oficial em todo o mundo.
Somente em 1975 é que a ONU – Organização das Nações Unidas – integrou a data ao seu calendário.
O real sentido do 8 de março
Luta. Este, o verdadeiro sentido do Dia Internacional da Mulher. Em memória de todas as que nos antecederam, por nós mesmas, devemos manter o Dia Internacional da Mulher (8 de março) como um dia, principalmente, de luta; em respeito a elas devemos manter acesa a “tocha” e entregá-la, com a mesma integridade, com a mesma dignidade às gerações futuras.
Maria José Souza Moraes. Publicado no jornal da Prelazia de São Félix do Araguaia, o Alvorada, em março-abril de 2010.
Todas as correntes espirituais e teológicas nos foram propostas desde o colonialismo. Portanto, precisamos nos libertar e refazê-los completamente.
Ninguém se espante com este convite. De fato, assim como todo o sistema de educação e o nosso olhar sobre a vida, também as teologias e espiritualidades precisam ser decolonizadas. E não se trata de assunto que diz respeito só a religiosos/as
Todo caminho espiritual se baseia em uma visão teológica, ou seja, parte de uma concepção de Deus, do mundo e da vida. E isso tem muita influência no modo de organizar a sociedade e as relações humanas. Todas as correntes espirituais e teológicas nos foram propostas a partir do colonialismo. Por isso, todas precisam ser libertadas e refeitas.
É quase inevitável que, ao expressar em livros a sabedoria própria dessas tradições espirituais, a linguagem e a lógica ainda sejam da sociedade dominante. O colonialismo tem muitas formas, níveis e disfarces e temos de estar sempre alertas a isso.
Para isso é importante percebermos como as teologias cristãs legitimaram a colonização. Assim, essas terras, que chamamos Brasil e América Latina, foram alcançadas com o aprisionamento e a objetificação, para não dizer bestialização, dos corpos não brancos. Infelizmente, a Teologia que sustentou e legitimou a Cristandade Ocidental não somente foi conivente, como participou da incumbência de transformar os povos originários e os nativos do continente africano em escravizados, legitimando o poder supremo do colonizador que pretendia representar Deus.
O povo indígena Xavante, da região do Araguaia, teve forte influência católica na década de 1970.
Por tantos séculos e até hoje, as tradições espirituais dos povos originários e das comunidades afrodescendentes deram força de resistência às comunidades, vítimas do Colonialismo. No entanto, em nossos dias, muitas vezes, elas também são obrigadas a se expressar em linguagem e categorias das culturas dominantes. Convivem com questões como a economia capitalista para sobreviver. Além disso, é quase inevitável que, ao expressar em livros a sabedoria própria dessas tradições espirituais, a linguagem e a lógica ainda sejam da sociedade dominante.
El colonialisme té moltes formes, nivells i disfresses i hem d’estar sempre alertes. Tanmateix, com els dos que escrivim aquesta pàgina som sacerdots cristians i parlem amb els peus i el cor a Amèrica Llatina, víctima del projecte europeu del Cristianisme colonial, demanem permís per centrar la nostra reflexió en les espiritualitats i teologies descolonials cristianes.
Vocês que aceitam o nosso convite querem saber na prática como viver espiritualidades e fazer teologias decoloniais. Sem pretender esgotar o assunto, propomos alguns elementos e cuidados que podem nos ajudar neste mutirão profético:
1) Retomar o princípio de que toda boa teologia procede da práxis transformadora.
Desde a década de 1970, os teólogos da libertação nos dizem que o ato primeiro é a práxis. Daí decorre uma elaboração teológica. Para uma teologia decolonial, a prática já tem de ser antecipadamente anti-colonial e mesmo pós-colonial.
Na década de 1960, desobedecendo à orientação sempre conservadora das hierarquias eclesiásticas, na América Latina e Caribe, cristãos de várias Igrejas participaram de movimentos sociais transformadores e aderiram à práxis revolucionária. Pastores/as e teólogos/as passaram a refletir sobre a fé, não mais a partir da obediência e sim da desobediência civil. As teologias aprofundaram a dimensão evangélica do protesto e da revolta e não mais da submissão. É preciso, hoje, voltar aos fundamentos dessas teologias, construídas na contramão da sociedade dominante e das Igrejas. Assim, surgiram teologias cristãs a partir de baixo, ou seja, dos movimentos populares, da caminhada dos povos originários e das comunidades negras.
2) Deslegitimar as teologias coloniais da Cristandade e da neo-cristandade, atualmente ainda tão frequentes nos seminários e púlpitos.
Desde a celebração do 5º centenário da conquista, em 1992, papas, bispos e autoridades evangélicas pediram perdão aos povos originários e às comunidades negras pelos pecados que cristãos do passado cometeram contra esses povos.
Ora, infelizmente, esse tipo de espiritualidade e de teologia que legitimou a conquista, a escravização e outros crimes sociais, até hoje, persiste em não poucos círculos católicos, evangélicos e pentecostais.
Alguns falaram nos pecados cometidos “por alguns filhos da Igreja”. No entanto, os que cometeram esses pecados foram papas e bispos, representantes oficiais da instituição e fizeram isso porque a espiritualidade e a teologia oficial não só permitiam tais pecados, como os promoviam como necessidade da missão.
A igreja evangélica brasileira é uma força política e cultural muito forte no país. Foto: Isac Nóbrega/PR
Ora, infelizmente, esse tipo de espiritualidade e de teologia que legitimou a conquista, a escravização e outros crimes sociais, até hoje, persiste em não poucos círculos católicos, evangélicos e pentecostais. A forma com que, até hoje, setores da hierarquia católica tratam a mulher não é por acaso.
A homofobia manifestada por numerosos padres, pastores e grupos cristãos tem seus fundamentos nessa mesma compreensão da fé. O racismo religioso, responsável por agressões e ataques a casas de reza indígenas e terreiros afrodescendentes não decorre apenas da ignorância de religiosos fanáticos.
Não se pode construir teologia e espiritualidade decolonial sem revelar a contradição com o Evangelho de Jesus contidos em algumas espiritualidades e teologias ainda vigentes.
O desprezo pela sacralidade da Terra e a mercantilização da natureza vem da mesma fonte. Há uma teologia e espiritualidade que legitimam esses crimes. Não se pode construir teologia e espiritualidade decolonial sem revelar a contradição com o Evangelho de Jesus contidos em algumas espiritualidades e teologias ainda vigentes.
A fé em um Deus Amor exige uma interpretação da Bíblia que seja amorosa, inclusiva e em função da Vida, como Jesus propôs o sábado a serviço do ser humano e não o contrário. As teologias decoloniais começam por ser anti-coloniais e se tornam pós-coloniais. Por fim, se tornam decoloniais, porque partem de princípios próprios e autônomos.
3) Com cores, com ginga, cheiros e sabores do Sul, abraçar as teologias inscritas nos corpos e feitas a partir da corporalidade.
Abraçar o corpo da mulher, o corpo indígena e negro, os corpos diferentes e belos das diversidades de gênero é o chão das teologias decoloniais que redescobrem a beleza do erotismo, a espiritualidade do prazer e a dignidade das revoluções que se propõem a restaurar a vida das pessoas e do universo. Isso nos faz testemunhar a ação do Espírito Divino no encanto dos espíritos da mata (os Encantados), na sabedoria dos ancestrais, na força dos Orixás e no sorriso negro e índio da Vida.
Pere Casaldàliga a les comunitats de la seva Prelatura.
Esse corpo a se abraçar é o mesmo corpo que as colonialidades do poder, do saber e do ser, descritas por Anibal Quijano, continuam optando por negar, por escravizar, por ferir. No entanto, é nesse corpo que, a partir do direito que, como afirmava Paulo Freire, cada sujeito tem de dizer a sua palavra, podemos dançar a sua dança e esperançar com a espiritualidade que a ação do Espírito nos impulsiona.
É na dimensão do corpo da terra que ela se manifesta em vida, mesmo ainda gemendo e esperando a manifestação dos filhos e filhas de Deus (Rm 8: 19-22 ). É na comunhão do universo, seu templo e morada (1 Cor 6:19 ; 3: 16), que se manifesta o Amor que cria e recria modos de manifestar sua energia criadora. Assim, cremos que o Amor Divino é sempre novo, cada manhã e, neste momento, recria o universo. Está em cada molécula e cada célula da vida. Está conosco e em nós para restaurar relações e transformar o mundo. A regra é o inesperado. Somos todos e todas seres de esperança e podemos sonhar. Neste sonho cabem todos e todas. Se estamos nessa é porque fomos marcados pelo Amor Maior. Para nós, que escrevemos estas linhas, Jesus de Nazaré é quem nos abre o coração e nos envia para a decolonialidade e para testemunhar a Ternura Divina do Espírito presente na diversidade das culturas e das religiões, como em todo movimento pela Libertação e pela Vida.
Assim, ainda de forma inconclusa, convidamos você a completar este caminho, porque se trata de construção coletiva.
Na esperança de que você, que nos lê, atenda este convite: a descolonização de nossas teologias e espiritualidades se materializa no chão da vida real, onde o amor se materializa e nos permite ver os rostos e ouvir as vozes da multidão de irmãos e irmãs que o Colonialismo tentou silenciar.
[1] – Marcelo Barros é monge beneditino (78), teólogo e escritor. No Brasil, é assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais.
[2]– Josias Vieira é pastor na Igreja Batista em Coqueiral, teólogo por formação, mas ecoteólogo por conversão e fundador do Movimento Nós na Criação – Abya Yala.
A “Missa dos Quilombos” foi celebrada em 20 de novembro de 1981 na cidade de Recife (PE), para mais de 8 mil pessoas. É considerada uma expressão artística e religiosa que busca honrar a luta e a resistência do povo negro no Brasil.
A Missa dos Quilombos combina elementos da tradição católica com ritmos e melodias afrobrasileiras, criando uma fusão única de música sacra e folclore. A obra se inspira na história e cultura dos “quilombos”, que eram comunidades de pessoas negras fugitivas em busca de liberdade e autonomia durante a época da escravidão no Brasil.
A Missa dos Quilombos é uma homenagem à cultura negra, uma celebração da resistência e um lembrete da importância da justiça social e inclusão na sociedade brasileira e além.
Em nome de um suposto Deus branco e colonizador, que nações cristãs têm adorado como se fosse o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, milhões de negros foram submetidos, durante séculos, à escravidão, desespero e morte. No Brasil, na América, na mãe África, no mundo.
Deportados como “peças” da ancestral Aruanda, eles encheram os canaviais e minas de mão de obra barata e inundaram os povoados com indivíduos sem cultura, clandestinos, inviáveis. (Ainda hoje, eles preenchem de subgente – para os senhores brancos e senhoras brancas e a lei dos brancos – as cozinhas, os cais, os bordéis, as favelas, os subúrbios, as prisões).
Para escândalo de muitos fariseus e alívio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos confessa diante de Deus e da História essa máxima culpa cristã.
Mas um dia, uma noite, surgiram os Quilombos, e entre eles, o Sinai Negro de Palmares, e nasceu, de Palmares, o Moisés Negro, Zumbi. E a liberdade impossível e a identidade proibida floresceram, “em nome do Deus de todos os nomes”, “que faz toda carne, negra e branca, vermelha no sangue”.
Vindos “do fundo da terra”, “da carne do flagelo”, “do exílio da vida”, os Negros decidiram forçar “as novas Alvoradas” e reconquistar Palmares e retornar à Aruanda.
E estando ali, de pé, quebrando as muitas correntes em casa, na rua, no trabalho, na igreja, resplandecentemente negros sob o sol da Luta e da Esperança.
Cartaz do CD gravado posteriormente com a música da Missa dos Quilombos
Para escândalo de muitos fariseus e alívio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos confessa diante de Deus e da História essa máxima culpa cristã.
Na música do negro minerador Milton e de seus cantores e músicos, oferece ao único Senhor “o trabalho, as lutas, o martírio do Povo Negro de todos os tempos e lugares”.
Como toda verdadeira Missa, a Missa dos Quilombos é pascal.
E garante ao Povo negro a Paz conquistada da Liberação. Pelos rios do sangue negro, derramado no mundo. Pelo sangue do Homem “sem figura humana”, sacrificado pelos poderes do Império e do Templo, mas ressuscitado da Ignomínia da Morte pelo Espírito de Deus, seu Pai.
Como toda verdadeira Missa, a Missa dos Quilombos é pascal: celebra a Morte e a Ressurreição do Povo Negro, na Morte e Ressurreição de Cristo.
Pedro Tierra e eu já empenhamos nossa palavra, iradamente fraterna,
com a Causa dos Povos indígenas, com a “Missa da Terra sem males”; e agora empenhamos a mesma palavra com a Causa do Povo Negro, com essa Missa dos Quilombos.
Chegou a hora de cantar o Quilombo que está por vir: estamos no momento de celebrar a Missa dos Quilombos, na esperança rebelde, com todos “os Negros da África, os Afros da América, os Negros do Mundo, em Aliança com todos os pobres da Terra”.
Pedro Casaldáliga. Apresentação da Missa dos Quilombos, 1982
«Conheci D. Pedro Casaldáliga em 1970, quando, com mais três companheiros chegamos a São Félix do Araguaia para trabalhar no Ginásio Estadual do Araguaia.». Assim começa a história de Eunice Dias de Paula, que chegou à Prelazia de Pedro Casaldáliga com pouco mais de 20 anos e que está há mais de 40 com o Povo Indígena Apyãwa.
Doutora em Letras e Lingüística pela Universidade Federal de Goiás, sua escolha de vida na Prelazia de Casaldáliga tem sido fundamental para a valorização, o ensino e o uso da língua dos Apyãwa (Tapirapé).
Conheci D. Pedro Casaldáliga em 1970, quando, com mais três companheiros chegamos a São Félix do Araguaia para trabalhar no Ginásio Estadual do Araguaia. Esta escola foi construída por D. Pedro e sua equipe, para suprir necessidades urgentes de educação, visto que o analfabetismo predominava na região, naquele período. Fomos eu e mais três companheiros, jovens que haviam deixado o seminário claretiano, para iniciarmos uma experiência que iria marcar nossas vidas. Iríamos viver isolados dos grandes centros urbanos e inseridos entre uma população de cultura ribeirinha e indígena.
Este sistema foi quebrado com a chegada dos latifúndios que, munidos de documentos legais ou falsos da terra, começaram a construir cercas em grades áreas e a expulsar moradores que aí se encontravam instalados.
O sistema de uso da terra dos moradores regionais, no período da chegada dos claretianos padre Pedro Casaldàliga e irmão Manoel Luzón, no ano de 1968, à região da Prelazia, tinha uma certa semelhança com o que era observado entre os povos indígenas. Os sertanejos que, há muito tempo tinham vindo, sobretudo, do Pará, do Maranhão e de outros estados do Nordeste, haviam ocupado terras que antes eram dos povos originários. Estes povos, naquele período, se encontravam com suas populações reduzidas e concentradas em algumas aldeias. Os novos moradores, seguindo o curso dos rios, iam, aos poucos, ocupando o espaço, sem se preocuparem em traçar limites de propriedades. A maioria era constituída de criadores que criavam o gado em áreas comuns, desprovidas de cercas e que mantinham uma forte relação de entreajuda.
Este sistema foi quebrado com a chegada dos latifúndios que, munidos de documentos legais ou falsos da terra, começaram a construir cercas em grades áreas e a expulsar moradores que aí se encontravam instalados. Houve até a o deslocamento de povos indígenas, como é o caso dos A’uwẽ Xavante e de vários povos do Parque Indígena do Xingu, para dar lugar aos invasores.
Pedro Casaldáliga com a autora deste texto, Eunice, seu marido Luiz e seu filho André na comunidade indígena Apyãwa.
Diante deste confronto entre forças desproporcionais, visto que o latifúndio contava com abundante financiamento e forte apoio do governo militar ditatorial, Dom Pedro assumiu logo posição. Colocou-se imediatamente do lado dos mais fracos, dos indígenas, dos posseiros, dos moradores dos núcleos urbanos e do lado dos peões que eram trazidos de longe para serem explorados em um regime de trabalho escravo nas fazendas que estavam sendo implantadas.
Hoje, é comum ouvir moradores antigos da Prelazia dizerem: se não fosse Dom Pedro e a Prelazia, esse nosso lugar não existiria mais. Testemunhos como este dão uma dimensão do que Dom Pedro e a Prelazia representaram e representam para esta região do interior do Brasil.
Pedro e sua equipe que foi, aos poucos, sendo constituída, logo se tornaram um ponto de apoio para o povo da região. Trouxeram melhoria na educação, com a criação do Ginásio Estadual do Araguaia, trouxeram melhorias na saúde, com a vinda de irmãs enfermeiras, deram força para os que estavam na terra enfrentarem os grandes fazendeiros, que chegavam ameaçando de expulsão os moradores da região. Hoje, é comum ouvir moradores antigos da Prelazia dizerem: se não fosse Dom Pedro e a Prelazia, esse nosso lugar não existiria mais. Testemunhos como este dão uma dimensão do que Dom Pedro e a Prelazia representaram e representam para esta região do interior do Brasil.
¿Porque Pedro foi um profeta?
Pedro, reconhecidamente, foi um profeta. O profetismo em Pedro se revela em duas faces, o anúncio da Boa Nova aos pobres, através de gestos concretos e do testemunho de sua vida, simples e austera e, por outro lado, a denúncia constante dos atos praticados pelos perseguidores das pessoas que viviam na Prelazia.
“Escrevo-o por dever de consciência, por imperativo da mais elementar justiça cristã. Nestes últimos meses a tragédia estourou em tais termos que não pode ser mais calada”.
Capa do documento original “Uma Igreja da Amazônia…” que Casaldáliga lançou o mesmo dia de sua ordenação como bispo.
Assim, a denúncia, para Pedro, decorre da fidelidade ao Evangelho, dos preceitos cristãos que preconizam uma vida em plenitude para todos e todas. Na Carta Pastoral (1971, p. 40) afirma:
“Não podemos aceitar a dicotomia entre evangelização e promoção humana, porque acreditamos no Cristo, como o Senhor Ressuscitado que liberta o homem todo e o mundo todo e nos salva em plenitude: progressivamente e dolorosamente aqui na terra, definitivamente e com glória no céu”..
Ver pessoas escravizadas pelo latifúndio, expostas a condições desumanas, causou profunda indignação em Pedro, expressas também em várias de suas poesias, como na Confissão do Latifúndio:
Por onde passei,
plantei a cerca farpada,
plantei a queimada.
Por onde passei,
plantei a morte matada.
Por onde passei,
matei a tribo calada,
a roça suada,
a terra esperada…
Por onde passei,
tendo tudo em lei,
eu plantei o nada.
O modo de vida de Pedro também se constituía em um anúncio profético. Su casa sencilla, como las demás casas de la región, no recuerda en modo alguno a un “palacio episcopal”. Sua casa simples, como as outras casas da região, em nada denotava um “palácio episcopal”. As portas sempre abertas, recebendo desde sertanejos e indígenas até magistrados, políticos, jornalistas que o procuravam. Pedro recebia a todos de forma calorosa, deixando o trabalho que estava fazendo e dedicando atenção a quem o visitava.
A quem dizia para ele viajar de avião e evitar estes transtornos, Pedro respondia sorrindo que “de ônibus, se perdia tempo, mas se ganhava em povo”.
Suas viagens eram sempre feitas de ônibus, o que acarretava muitos dias na estrada. No tempo chuvoso, especialmente, havia atoleiros que provocavam atrasos consideráveis. A quem dizia para ele viajar de avião e evitar estes transtornos, Pedro respondia sorrindo que “de ônibus, se perdia tempo, mas se ganhava em povo”. Isto porque ele conversava o tempo todo da viagem com os passageiros, perguntava pelos familiares, pela saúde, pelos trabalhos que estavam fazendo. A viagem se transformava em uma verdadeira visita pastoral.
Pedro Casaldáliga em viagem de camião pela região do Araguaia (maior que Portugal).
O profetismo de Pedro também se manifestou na vivência de uma Igreja – Povo de Deus, que supõe relações horizontais e não hierárquicas. Até mesmo quando recebeu o convite para assumir o episcopado, refletiu com os integrantes da equipe pastoral e com o amigo D. Tomás Balduino, se era oportuno aceitar ou não. Todas as equipes se reuniam em 3 momentos por ano: primeiro, numa reunião de estudos e programação, chamada Bolão, pois a disposição das cadeiras era em círculo e todos os assuntos eram debatidos em conjunto; segundo, em um Retiro, momento de oração e, depois, na Assembleia do Povo, na qual se tomavam as decisões maiores a respeito da Prelazia juntamente com representantes de todas as comunidades. Numa destas Assembleias, elaborou-se o Manual da Prelazia que, em seu objetivo, inclui as palavras proferidas por um camponês::
“No seguimento de Jesus Cristo e em comunhão fraterna com toda a Igreja, o objetivo geral de nossa Igreja de São Félix do Araguaia é viver e anunciar a Boa Nova do Evangelho com alegria, jeito humilde e paixão, para acolher o Reino de Deus e contribuir aqui na Terra, na esperança do Reino Definitivo”.
¡Es de esta experiencia profundamente evangélica de donde nace el testimonio y el grito profético de Don Pedro Casaldáliga, este hombre sencillo, humilde, frágil, santo que lleva en su poesía y en sus inspiradas palabras la voz, la historia y vida de los pobres de esta tierra!
A solidariedade com os outros países da América Latina, a Pacha Mama, mostra também a profunda comunhão de Pedro com os espoliados de nosso continente. Pedro realizou várias visitas à países da América Central, que sofriam em lutas por libertação. O assassinato de D. Oscar Romero, com quem mantinha uma forte relação de amizade e de compromisso com as causas dos pobres, o marcou profundamente.
Por essa aliança com os empobrecidos, Pedro sofreu muitas ameaças de morte e perseguições de várias ordens. Os latifundiários chegaram a pressionar o Núncio Apostólico para que o expulsasse do Brasil.
É a partir desta vivência profundamente evangélica que ecoaram e ecoam, com muita força, o testemunho e o grito profético de Dom Pedro Casaldàliga, este santo homem, simples, humilde, franzino, que carrega em sua poesia e em suas palavras inspiradas a voz, a história e a vida dos empobrecidos desta terra!
Eunice Dias de Paula
Publicado primeiro na revista Solidaridad y Misión
Pedro Casaldáliga, bispo e teólogo de profunda convicção, destacou-se como um incansável lutador pelos direitos humanos. Seu legado é uma fonte inesgotável de inspiração para todos aqueles que buscam construir um mundo mais justo e solidário.
Casaldáliga dedicou sua vida a defender os mais vulneráveis, dando voz aos marginalizados e denunciando as injustiças sociais.
Seu espírito solidário e seu compromisso com a justiça ressoavam em cada ação que empreendia. Ele não tolerava o silêncio diante das violações dos direitos humanos nem das desigualdades que afligem tantas pessoas em nosso mundo.
Casaldáliga nos ensinou que não devemos nos conformar com uma sociedade injusta. Ele nos incentivou a agir, a levantar nossas vozes e a estendermos nossas mãos àqueles que mais precisam.
«Optem pela militância social e política, também. Se a nossa fé; nossa opção pelo Reino não se traduzir em prática social e política, então ficaremos pelo meio do caminho.»
Pedro Casaldáliga
Seu legado nos inspira a ser agentes de mudança, a trabalhar incansavelmente por um mundo mais justo e equitativo. Ele nos lembra que cada um de nós tem o poder de fazer a diferença na vida dos outros e nos encorajou incansavelmente a participar de comunidades e grupos comprometidos com as Causas da Vida.
Pedro insistia na necessidade de “lutar”, de fazer política em nosso dia a dia. Ele não esteve “apenas” ao lado dos mais pobres, mas se posicionou e se colocou ao lado deles e contra os opressores.
A teologia da libertação tem dito, e é verdade, que nosso problema principal não é o ateísmo, é a idolatria do consumismo, do lucro… Por isso digo sempre, e outros muitos dizem, que o capitalismo não tem salvação, não se pode batizar o capitalismo. Se é capitalismo, é lucro, acumulação, privilégio, marginalização e o dinheiro acima da pessoa humana, a negação até das próprias pátrias por causa das multinacionais e transnacionais.
Pedro Casaldáliga
Sigamos seu exemplo, participemos ativamente das lutas pela libertação, levantemos nossa voz contra a injustiça social e mostremos solidariedade aos marginalizados. Como ele sempre dizia: “com a paz militante do Reino”.
Não deixemos que o fogo interior do compromisso se apague!
O funeral como um encontro para honrar sua memória e celebrar seu legado
A cada mês de agosto, ao lembrarmos de sua ressurreição (“Se Cristo ressuscitou, nós também ressuscitamos, é a certeza, clara e contundente, de nossa fé cristã.”), o legado de Pedro Casaldáliga brilha com uma luz ainda mais intensa. Sua partida deixou um vazio imenso em nossos corações, mas também nos inspira a seguir seu exemplo de amor, coragem e compromisso com a Justiça.
O funeral de Pedro Casaldáliga foi uma homenagem póstuma repleta de emoção e gratidão. Suas palavras cheias de sabedoria e sua incansável luta pela justiça social sempre nos acompanharão. Seu legado perdurará em cada vida que ele tocou e em cada causa que ele defendeu.
Nesses dias em que revivemos sua despedida, recordemos os ensinamentos de Pedro Casaldáliga: o valor de erguer a voz por aqueles que não podem fazê-lo, a importância de defender os direitos humanos, independentemente das adversidades, e a necessidade urgente de construir um mundo mais justo e solidário.
Sua partida nos lembra que nossa existência tem um propósito maior: deixar uma marca neste mundo, ser agentes de mudança e fazer a diferença. Sigamos seu exemplo corajoso e sincero para nos tornarmos melhores seres humanos.
Pedro Casaldáliga viverá eternamente em nossos corações como uma chama ardente que ilumina o caminho para um futuro mais equitativo. Em sua honra, continuemos trabalhando por um mundo onde todos possam viver com dignidade e esperança.
Que a lembrança de sua Páscoa seja uma despedida emocionante, mas também uma celebração do impacto positivo que ele teve em nossas vidas. Honremos sua memória vivendo seus ideais com paixão e inspiração.
Avante! Sigamos caminhando juntos em direção a um mundo melhor, lembrando sempre do legado de Pedro Casaldáliga, um homem que nos ensinou que cada um de nós tem o poder de mudar o mundo.
Uma visita virtual ao seu túmulo: um convite ao compromisso
Às margens do Rio Araguaia, no “cemitério dos karajá”, sob uma árvore de pequi, encontra-se o túmulo simples de Pedro Casaldáliga, um monte de terra com uma cruz de madeira e uma pequena lápide com o poema, em português, que ele mesmo escreveu como epitáfio: “Para descansar eu quero isso: esta cruz de pau chuva e sol estes sete palmos [de terra] e a Ressurreição”.
Neste local, Pedro realizou muitos enterros de camponeses e trabalhadores despojados de tudo, prostitutas, indígenas e suicidas, bem como de corpos de pessoas não identificadas. Há, entre as árvores, sepulturas sem nome, acompanhando a sua. Alguns metros adiante, o imenso rio avança silencioso, entre São Félix e a ilha do Bananal.
Em outro poema, Casaldáliga disse:
Que me enterrem no rio perto de uma garça branca. O resto já será meu E aquele curso livre que eu, ao passar, pedia, será pátria recuperada. <…>
A esse rio-vida de Casaldáliga e a esse túmulo berço da ressurreição, convidamos você a visitar hoje, no aniversário de sua Páscoa:
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