“Pedro semeou. Isso é uma evidência”. É uma das muitas frases que nesta segunda-feira à noite evidenciaram que o legado de Pedro Casaldáliga ainda está muito vivo. Duzentas pessoas se reuniram em Barcelona na véspera do Dia de São Pedro para agradecer a maestria do antigo bispo de São Félix do Araguaia. Com uma memnsagem compartilhada: o mundo continua estando ferido e é necessário ser um militante da esperança.
Poucos líderes religiosos conseguem reunir pessoas de tão diversa procedência. De fato, ninguém achou estranho que nesta segunda-feira se falasse do “Reino de Deus” na Praça do Rei de Barcelona. Uma promessa evangélica que norteou a vida de Casaldáliga na construção da justiça e da paz para todos. Um Reino de Deus a ser construído “aqui e agora”, como sublinharam os jornalistas Antoni Bassas e Mònica Terribas, apresentadores desta homenagem cívica. Um evento organizado pela Prefeitura de Barcelona, a Associação Araguaia e a Fundação Pedro Casaldáliga que foi transmitido ao vivo e pode ser recuperado aquí.
Um dos vídeos projetados durante a homenagem recordou o testamento vital de Dom Pedro: “Optem, optem verdadeiramente pelos pobres, escolham uma Igreja-comunidade, de irmãos e irmãs iguais, sem poder”, disse. Dezenas de representantes de diversas entidades, amigos e companheiros ativistas, desde a Catalunha até o Mato Grosso, destacaram sua vida simples e coerente. Todas as testemunhas descreveram o “privilégio” de ter conhecido uma pessoa excepcional. Exemplo honesto, referência ética para os incrédulos. Como disse o jornalista e ativista social David Fernández: “Pedro Casaldáliga será sempre uma utopia fertil; as coisas bem feitas, as verdadeiras, duram para sempre”.
“Muito obrigado a todas as entidades amigas que assumiram a causa de Pedro como um instrumento transformador para toda a sociedade”, disse Gloria Casaldáliga, presidente da nova Fundação Pedro Casaldáliga. “Sabemos que vivemos tempos complexos e que a tarefa não será fácil”, afirmou, lembrando as dificuldades que o Brasil e a região do Araguaia enfrentam.
Estiveram também presentes o ator Eduard Fernández, o teólogo e colaborador da Agenda Latino-americana Jordi Corominas, a artista catalã-brasileira Priscila Barbosa, assim como as vozes do ativista Arcadi Oliveres, pouco antes de sua morte, o capuchinho Michael Moore, o abade de Montserrat, Josep Maria Soler, a dominicana Lucía Caram ou a atriz Núria Valls, entre outros amigos e colegas de Casaldáliga.
Como religioso, como bispo no Brasil, como poeta universal, Pedro sempre defendeu os direitos dos agricultores e dos sem-terra. E ele o fez sempre com sensibilidade poética, com tenacidade e também com senso de humor. “Aos meus católicos na Catalunha: devemos levar a Igreja com um pouco de bom humor”, disse ele. E, sobretudo, sustentada na esperança, o eixo desta nova homenagem conjunta.
A homenagem contou com a presença de uma boa representação de missionários claretianos na Catalunha, como Joan Soler, da Associação Araguaia, o provincial de San Pablo, Ricard Costa-Jussà, o delegado na Catalunha, Máximo Muñoz, o presidente da ONG Contato Solidario , Josep Roca, e a diretora do Casal Claret em Vic, Anna Larios. Também houve representações políticas, como a prefeita de Balsareny, cidade natal de Casaldàliga, Noelia Ramírez, e Albert Batlle, vereador da Câmara Municipal de Barcelona. Além de parentes de Casaldáliga e personalidades e entidades amigas, como M. Victoria Molins da Teresia, o delegado de Manos Unidas Barcelona, Mireia Angerri, Eudald Vendrell, Miquel Torres e Josep Maria Fisa, presidente, diretor e conselheiro de Justiça e Paz Barcelona respectivamente, Xavier Garí em nome da organização Cristianismo e Justiça.
A Prefeitura de Barcelona, a Associação Araguaia e a Fundação Pedro Casaldáliga celebram uma homenagem conjunta a Pedro Casaldáliga na cidade de Barcelona. O evento será realizado na próxima segunda-feira, dia 28 de junho.
Apresentado pelos jornalistas Mònica Terribas e Antoni Bassas, contará com a participação dos atores Eduard Fernàndez, Clara Segura e Núria Valls, além da artista catalã-brasileira Priscila Barbosa.
A palavra direta, clara e sempre lúcida de Casaldáliga será a protagonista principal, acompanhada ao piano pelo músico Carles Cases e acochegada por dezenas de testemunhas que trabalharam com ele e que o conheceram profundamente, do mundo todo.
Casaldáliga foi uma das referências mais importantes na luta pela terra e a favor dos Povos Indígenas da Amazônia. Desde sua morte em 8 de agosto e devido à pandemia, as entidades convocadoras não puderam se despedir deste claretiano internacional como gostariam. Portanto, uma vez que as restrições o permitem, e coincidindo com a véspera de São Pedro, este ato de memória será realizado aberto ao público.
Devido à situação atual, haverá ainda limitações de capacidade, mas o evento completo poderá ser acompanhado ao vivo no site da Fundação Pedro Casaldáliga (www.fperecasaldaliga.org), em sua conta no Facebook e no canal YouTube da Prefeitura Municipal de Barcelona.
Em 26 de março de 2021, o plenário da Prefeitura Municipal de Barcelona aprovou por unanimidade a entrega da Medalha de Ouro pelo Mérito Cívico, postumamente, a Pedro Casaldáliga “em reconhecimento à sua luta permanente contra os abusos de poder e a exploração, e pelo seu firme compromisso com a justiça social, a igualdade e a dignidade dos Povos Indígenas”.
Com maior ou menor lucidez, com uma lógica vital mais ou menos consistente, faz tempo que descobrimos a sociedade como um sistema, dentro da estrutura que nos envolve e nos condiciona, sob a inevitável solicitação da conjuntura diária.
A Igreja, boa conhecedora da eternidade e menos conhecedora da história, durante séculos, muitas vezes, considerou apenas às pessoas ou os indivíduos; ou, ainda mais dicotomicamente, às vezes só considerava as almas…
Sem nunca deixar de enfrentar aquela globalidade estrutural na qual a história humana é forjada e dentro da qual o Reino acontece, devemos agora redescobrir, de forma comprometida, a pessoa, membro da sociedade e protagonista da história e do Reino.
O homem e a mulher são seres estruturados e estruturantes. A história, o sistema e o Reino o fazem, mas, por sua vez, ele faz o sistema, a história e o Reino.
Em nossa América Latina, por exemplo, hoje acordando convulsivamente para a segunda libertação total, dois grandes homens marxistas proclamaram, com suas palavras e com suas vidas – e com sua morte-, a utopia do novo homem, o sonho incontrolável do “homem da manhã” : Ché e Mariátegui. E na revista “Amanecer” de março e abril deste ano de morte e Graça de 1982 acabo de ler um trecho do premiado livro do comandante sandinista, Omar Cabezas, sobre “o olhar do novo homem” e “o novo homem que está na montanha…”. [Casaldáliga se refere à obra disponível AQUI.]
A reflexão e a experiência de uma espiritualidade de libertação na América Latina (no Terceiro Mundo, no mundo em geral, creio sinceramente), deve ter como consideração e exigência básica a utopia necessária do novo homem.
Há dias estou tentando esboçar, para mim mesmo, os traços fundamentais do novo homem. E essa tentativa é o que ofereço agora, como uma contribuição gaguejante ao livro da DEI sobre “Espiritualidade e Libertação na América Latina”.
Nossos teólogos, nossos sociólogos, nossos psicólogos e nossos pastores dirão sua palavra principal, cientificamente. E nossos santos e nossos mártires tornarão realidade – eles já o estão fazendo com uma grande efusão – a face latino-americana do novo homem.
As características do novo homem seriam, em minha opinião:
1. A LUCIDEZ CRÍTICA
Uma atitude de crítica “total” aos supostos valores, mídia, consumo, estruturas, tratados, leis, códigos, conformismo, rotina…
Uma atitude de alerta, impossível de subornar.
A paixão pela verdade.
2. A GRATIDÃO ADMIRADA, DESLUMBRADA
A gratuidade contemplativa, aberta à transcendência e acolhedora do Espírito. A gratuidade da fé, o viver da Graça. Viver em um estado de oração.
A capacidade de ficar maravilhado, de descobrir, de agradecer.
Amanhecer todos os dias.
A humildade e a ternura da infância evangélica.
O maior perdão, sem mesquinhez e sem servidão.
3. A LIBERDADE DESINTERESSADA
Ser pobre para ser livre diante do poder e das seduções.
A livre austeridade daqueles que estão sempre em peregrinação.
Uma morigerada vida de combate.
A liberdade total daqueles que estão dispostos a morrer pelo Reino.
4. A CRIATIVIDADE EM FESTA
A criatividade intuitiva, desinibida, bem humorada, lúdica, artística.
Viver em estado de alegria, de poesia, de ecologia.
A afirmação de autoctonia.
Sem repetições, sem esquemas, sem dependências.
5. A CONFLITIVIDADE ASSUMIDA COMO MILITÂNÇA
A paixão pela justiça, em espírito de luta, pela paz verdadeira.
A teimosia incansável.
A denúncia profética.
A política, como missão e como serviço.
Estar sempre definido, ideologicamente e experiencialmente, do lado dos mais pobres.
A revolução diária.
6. A FRATERNIDADE IGUALITÁRIA
A igualdade fraterna.
O ecumenismo, por cima da raça e da idade e do sexo e do credo.
Conjugar a mais generosa comunhão com a salvaguarda da própria identidade étnica, cultural e pessoal.
A socialização, sem privilégios.
A verdadeira superação econômica e social das classes que existem, para o surgimento de uma única classe humana.
7. O TESTEMUNHO COERENTE
Ser o que se é. Falar o que se acredita. Acreditar no que se prega. Viver o que se proclama. Até as últimas conseqüências e nas minúcias diárias.
A disposição habitual para o testemunho do Martírio.
8. A ESPERANÇA UTÓPICA
Histórica e escatológica. Desde o hoje para o amanhã. A esperança credível das testemunhas e construtores da ressurreição e do Reino.
É sobre utopia, a utopia do Evangelho. O homem novo não vive apenas de pão; ele vive de pão e de utopia.
Apenas os homens novos podem fazer o mundo novo. Penso que estes traços correspondem aos traços do Homem Novo Jesus. Foi assim que Ele viveu utopicamente; foi assim que Ele ensinou em Belém, na Montanha e na Páscoa; foi assim que Seu Espírito, derramado em nós, nos configurou com cuidado.
Publicado no livro “Experiência de Deus e Paixão pelo Povo. Escritos Pastorais”, em 1983.
No dia 8 de agosto completará um ano da morte do bispo Pedro Casaldáliga. Na mesma data, há exatos 50 anos, Pedro aceitava sua nomeação como bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Em 23 de outubro, será celebrado os 50 anos de ordenação episcopal de Pedro. No contexto destas celebrações, para resguardar a memória da trajetória desta Igreja que tanto impactou a igreja e a sociedade brasileira, será lançado o livro “VENTOS DE PROFECIA NA AMAZÔNIA: Os 50 anos da Prelazia de São Félix do Araguaia”.
A venda antecipada já está aberta
[Informação no final desta entrada]
O livro resgata a presença da Igreja na região, desde os primeiros contatos com os indígenas que lá viviam, passando pela criação e instalação da Prelazia, chegando aos dias atuais.
A figura proeminente desta história é a do missionário claretiano Pedro Casladáliga. Ele, com outros companheiros, assumiu o desafio de colocar as bases de uma nova Igreja no sertão do nordeste mato-grossense. O novo bispo e sua equipe, em radical fidelidade ao Evangelho de Jesus e guiados pelas decisões do Concílio Vaticano II e da Assembleia dos bispos latino-americanos, ocorrida em Medellin, Colômbia, colocaram-se abertamente ao lado dos pequenos e pobres que eram espoliados dos seus direitos: os indígenas, os posseiros e os trabalhadores braçais, os peões, submetidos a condições degradantes análogas ao trabalho escravo.
Pedro Casaldáliga conversa com amigos em sua casa de São Félix.
A tomada de posição ao lado dos mais frágeis acarretou a Pedro e à equipe pastoral ameaças, ataques, prisões e tortura. Os donos das grandes fazendas e os agentes da ditadura que os protegiam e incentivavam, não admitiam uma igreja que não estivesse a seu lado. E os ataques também aconteceram no âmbito da própria Igreja, que não concordava com esta linha pastoral e por isso a acusavam de comunista.
Tudo isto é resgatado neste livro, que ainda traz um capítulo de como o próprio Vaticano se incomodava com esta Igreja e como quis enquadrar o bispo.
O livro narra também como era a organização interna da Igreja, em que bispo, padres, religiosas e leigos tinham voz e voto. Todas as decisões eram tomadas em conjunto e o bispo as assumia numa postura democrática. Em entrevista, depois da Páscoa de Pedro, o bispo de Juína, Dom Neri Tondello, disse que: “Pedro inaugurou no Araguaia há 50 anos um modelo de Igreja sinodal, que foi proposto no Sínodo da Amazônia realizado em 2019”.
O foco desta Igreja era a construção do Reino de Deus e, por isto, as ações no âmbito da educação, da saúde, da organização popular, da cultura eram consideradas ações pastorais.
O processo de sucessão de Pedro também é registrado e dom Leonardo Steiner, que o sucedeu, Dom Eugênio Rixen e Dom Adriano Ciocca Vasino, o bispo atual, eles mesmos contam sua atuação na Prelazia até o presente.
Ao final, como anexo, é reproduzida a Carta Pastoral Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social para que a conheçam os que dela somente tiveram notícia.
A publicação
Várias editoras foram procuradas, mas por causa da pandemia todo o seu cronograma de trabalho foi atrasado. Nenhuma tinha a possibilidade de disponibilizar o livro para as datas significativas que serão celebradas. Por isso decidiu-se apelar para outras alternativas, e a Editora da PUC Goiás aceitou fazer a publicação, mas as despesas de produção e expedição do livro serão do autor. Diante disto, optou-se pela venda antecipada, que já está aberta e cuja informação se encontra no final desta entrada.
O Autor
O autor desta obra é Antônio Canuto, que chegou a São Félix às vésperas do dia em que Pedro aceitou a nomeação de bispo e com ele colaborou na busca e organização dos documentos que compõe a segunda parte de sua Carta Pastoral. Acabou atuando na Prelazia por 26 anos, quando assumiu função na Secretaria Nacional da CPT em Goiânia (GO).
O Posfácio
O historiador Sérgio Coutinho diz: No final de tudo, penso que Canuto se parece mesmo, com este livro, com o nosso primeiro “historiador cristão”: São Lucas. Pois após acurada investigação de tudo desde o princípio, também a ele pareceu conveniente escrever de modo ordenado, às ilustres e aos ilustres “amigas e amigos de Deus” que estão na Amazônia, para que pudessem verificar a solidez dos ensinamentos que receberam do profeta Dom Pedro Casaldáliga e dos(as) muitos(as) “confessores da fé” (mártires) na região.
♥ Venda antecipada
Para possibilitar a edição deste livro apelamos à venda antecipada. O livro será remetido pelo Correio no final de julho, início de agosto.
Pode fazer a compra antecipada das seguintes formas:
Entrando neste endereço: AQUI e ir no botão “Quero contribuir” e colocando seus dados e cartão.
Podem fazer o depósito no Bradesco – Agencia 0140 – Conta 171688-3 em nome de Antônio Canuto e/ou CPF 146729361-04.
Pedimos que nos enviem uma cópia do comprovante de depósito em um dos nossos canais de comunicação para nosso controle:
Não esqueçam de nos enviar o endereço postal bem completo para que possamos postar o livro pelo correio quando estiver pronto.
O preço de capa será de R$ 45,00.
A quem adquirir o livro na Venda Antecipada pagará somente R$ 35,00.
Já a compra antecipada de 5 a 10 exemplares custará R$ 30,00 a unidade.
Acima de 10 exemplares, o valor será de R$ 25,00 a unidade.
Se alguém quiser somente um exemplar, mas deseja contribuir com um valor maior é só clicar no ícone “Quero contribuir”.
Preservação da memória e da casa do bispo Pedro Casaldáliga
Pelo menos 50% do lucro líquido da venda deste livro será destinado à preservação da memória e da casa onde Pedro viveu a maior parte dos seus dias em São Félix do Araguaia.
Em 1978, a Faculdade de Teologia da Catalunha, para comemorar seu 25º aniversário, decidiu por unanimidade de seu senado acadêmico nomear o Bispo Pedro Casaldáliga Doutor Honoris Causa. Mas houve um veto do arcebispo local, argumentando que Casaldàliga não era um teólogo, mas um poeta.
O teólogo benedictino Lluís Duch escreveu: “Casaldáliga não foi oficialmente reconhecido como teólogo: para ele talvez seja uma sorte; para a instituição poderia ter significado a possibilidade de reconhecer um profeta em sua pátria”.
Nessa ocasião, escrevi um longo artigo sobre a teologia poética de Casaldáliga, que enviei a ele.
Casaldáliga contempla o belo mundo indígena (o Araguaia, as garças brancas, a aldeia dos índios Tapirapé…) como um antecipo da Terra sem Males, agora destruído pelo maldito latifúndio e pelo Império. Ele chama Romero de “São Romero da América” e diz a Pedro para deixar a Cúria. Casaldáliga vive a paixão e a cruz com o povo, teme ser morto de pé, sobe e desce do Carmelo, sem ter nada, sem carregar nada, nunca se cansa de esperar pelo Reino. Enxerga o Ressuscitado junto ao mar de Tiberíades, com as feridas e as brasas ardentes do pão. Vive sob o vento do Espírito e se apresenta ao Pai com seu coração cheio de nomes.
Casaldáliga não sabia nada do que aconteceu em Barcelona e agradeceu o meu artigo. Mais tarde nos reunimos várias vezes na Bolívia e novamente em São Paulo em uma reunião de bispos e teólogos latino-americanos promovida por ele.
Casaldáliga tem sido um bom pastor, um místico, profeta e poeta, teólogo dos pobres, deste oitavo sacramento que o Espírito administra: a voz do povo! Talvez isso mesmo seja o que alguns acham difícil de reconhecer.
Esta consulta é sobre o “papel” de Deus durante a pandemia de COVID19. Foi recebida no portal teológico amigo servicioskoinonia.org. Acreditamos que o ponto de vista que oferece pode ser interessante para você nos dias que estamos vivendo.
«Por favor, me ajudaria muito se pudessem me indicar alguma reflexão ou leitura que me ilumine sobre o seguinte dilema:
Em uma família cristã, um de seus membros está infectado com o coronavírus. Ele passa mal e é internado na UTI, mas felizmente se recupera e volta para casa com saúde; toda a família dá graças a Deus pela sua misericórdia, pela sua bondade e por ter cuidado de seu parente.
Na família vizinha, porém, também cristã, um de seus membros contraiu o coronavírus e, infelizmente, faleceu poucos dias depois. Aflitos e cheios de dor, eles não dão graças a Deus.
Alguém de uma terceira família pensa, entretanto, que sempre ‘tem que agradecer a Deus por tudo’.
Como pode ser explicado de forma simples e teológica que Deus é misericordioso e bom para TODOS, sempre? »
Olá amigo.
Veja bem, os três casos que você coloca estão dentro do mesmo pressuposto: lá em cima está Deus, que vê, sabe e pode fazer tudo e, portanto, pode nos proteger de qualquer dano. Essa “suposição” é o que filosoficamente chamamos de “teísmo”: uma forma de compreender a Realidade, que considera um segundo andar, um mundo sobrenatural paralelo, o céu, habitado por um Ser Supremo, criador, governante do mundo. Os gregos chamaram Ele de Theos … uma palavra que se transformou depois em Deus em latim e passou para o português. É por esse motivo que falamos em “teísmo”. A sua pergunta encontra-se, portanto, “dentro desta estrutura de compreensão” que você considera natural, o teísmo.
Porém, é tão difícil responder à sua pergunta, que, de fato, a humanidade ainda não conseguiu, e temos estado acompanhados por Theos por cerca de seis milênios. Filósofos antigos – alguns até cristãos – já o consideravam há mil e quinhentos anos nos mesmos termos que hoje. O dilema que eles colocavam era:
Suponhamos que Theos-Deus é onipotente e bom. Nesse caso:
– se ele pode nos livrar do mal e não quer fazê-lo, é porque não é tão bom;
– e se ele quer nos livrar do mal, mas não pode, é porque ele não é onipotente.
Como os filósofos não encontraram a resposta, tradicionalmente se fala do “mistério do mal”. Porque não se trata de um problema, mas de um Mistério; mistérios, de fato, não podem ser resolvidos; eles são inatingíveis para a nossa razão; apenas uma “fé” religiosa pode tentar.
Vejamos esse dilema desde o ponto de vista da fé tradicional, então.
Para algumas pessoas, a terceira família tem razão, pois a fé nos garante que Deus nos ama apesar de tudo, mesmo que não pareça, mesmo que nos envie a morte com a COVID19. Para a fé tudo é possível, porque acreditar em Deus significa confiar nele, cegamente, aconteça o que acontecer. A fé é uma afirmação voluntária de confiança e teimosa, contra todas as evidências. A fé teísta é um recurso muito valioso da natureza humana, porque nos transforma e nos dá uma força indestrutível. Nada é impossível para quem tem fé teísta: Deus estará sempre com essa pessoa, com essa comunidade ou com esse povo.
Essa terceira família tem mais fé do que você? Não, eles simplesmente tem uma fé “teísta”. Eles recorrem a esse recurso e é bom para eles. Você também pode fazer isso.
É essa “fé em Deus apesar de tudo” então, a resposta que você procura para o problema do mal? Para nós, não existe uma resposta única … existem muitas. E nenhuma delas é “obrigatória” ou definitiva.
Na verdade, já faz algum tempo que muitos cristãos pensam que o teísmo, essa forma de entender a realidade que diz que existe um Ser Onisciente e Onipotente lá em cima que cuida de nós e nos protege até com anjos da guarda, não é a melhor maneira de imaginar a estrutura e o funcionamento da realidade. Parece uma explicação feita sob a medida da nossa imaginação. Ou seja: uma explicação muito humana (antropomórfica, dizem): lá acima um Ser Supremo, uma Pessoa como nós, um Pai precisamente, que tudo sabe e pode fazer, que tudo controla e, claro, nos protege.
No entanto, estamos preocupados com que esta forma de entender a realidade – toda ela baseada na pedra angular desta Pessoa Suprema lá em cima – não seja uma explicação satisfatória, porque, de fato, há muitos casos em que ela não funciona, pois Ele parece não nos proteger. Há muitos crentes que não estão satisfetios com essa explicação “teísta” e se sentem aliviados sabendo que não é a única explicação que existe, e que podem não acreditar nela e procurar uma nova maneira de explicar a realidade: sem segundo andar, sem um nível sobrenatural ou celestial, sem um Theos lá em cima/lá fora, que intervém sempre que necessário para cuidar de nós. São pessoas para as quais, pelo que refletiram, a explicação clássica (o “teísmo”) lhes parece incrível, como se tivesse sido elaborada para crianças.
E se aquilo que temos chamado de Deus seja a alma, o poder, o Mistério, a criatividade deste cosmos fantástico em que estamos e de onde viemos, mas não um Alguém; não um Senhor misterioso fora ou acima do mundo?
E se o cosmos, a Realidade, não tivesse dois andares?. E se a explicação do mundo não consiste na existência de uma Super-pessoa onipotente e onisciente controladora em um segundo andar? E se aquilo que temos chamado de Deus fosse a alma, o poder, o Mistério, a criatividade deste cosmos fantástico em que estamos e de onde viemos, mas não Alguém; não um misterioso Senhor exterior ou superior ao mundo? Somos a primeira geração à qual a ciência moderna deu um conhecimento que os humanos que nos precederam nunca imaginaram. Não é estranho então que as explicações que as gerações anteriores nos transmitiram não nos sejam mais utéis; foram explicações muito perspicazes e cheias de boas intenções, mas hoje, para nós, estão ficando para trás, estamos aquém.
Nossos bisavós pensavam que o mundo tinha 6.000 anos – o que a Bíblia havia dito a eles. Quando nossos pais nasceram, foi descoberto que estávamos em “uma” galáxia, e eles pensaram que o mundo era essa galáxia. Agora sabemos que pode haver trezentos bilhões de galáxias, com duzentos bilhões de estrelas cada. Sabemos que a história conhecida deste cosmos não tem menos de 13,7 bilhões de anos. Passaram-se apenas 25 anos (1996) desde que descobrimos que existem planetas fora do nosso sistema solar. E o cosmos interior, planetas como o nosso, com capacidade de ter vida … podem ser trilhões de trilhões que contenham vida … (vegetal, animal, humana, espiritual, religiosa…?). Será que esses “humanos” também explicam a Realidade recorrendo à existência de um Deus que lhes deu o mundo e cuida deles diante de qualquer perigo local?
Começamos a perceber que deve haver uma explicação maior, mais desinteressada, mais profunda … que foge do nosso entendimento e que apenas intuímos; e que é sagrada, onde quer que se olhe: desde as partículas subatômicas e o mar profundo da sopa quântica que as constitui, até esse corpo cósmico global que transborda de Criatividade e Mistério.
Admirando o profundo e belo mistério da Realidade, matéria, estrelas, galáxias, a evolução do cosmos, o surgimento da Vida, a espécie humana, a entrada da Terra (com os humanos) ao nível da Consciência, reflexão, espiritualidade … cientistas, e muitos homens e mulheres reflexivos, estão começando a perceber que é possível que exista uma explicação maior, mais desinteressada e mais profunda, que foge do nosso entendimento e que apenas intuímos; que é sagrada, onde quer que se olhe: desde as partículas subatômicas e do mar profundo da sopa quântica que as constitui, até esse corpo cósmico global que transborda de Criatividade e Mistério. Talvez esse Cosmos fantástico, tão radicalmente diferente daquele que nos ensinaram quando crianças, não precise de um relojoeiro para montá-lo … nem de um vigia universal para supervisionar qualquer possível erro (que seja real ou que nos pareça), nem de Alguém que assuma a posição de proteger a nossa espécie frente todas as outras – inclusive a dos desconcertantes vírus mutantes. Hoje a ciência pensa que não somos o mais importante neste cosmos, e que não é muito razoável pensar que existe Alguém que se encarrega de canalizar tudo para que nada de mal nos aconteça. .. nem mesmo a COVID.
As pessoas que sentem isso não podem mais continuar acreditando com a mesma certeza com que nossos avós acreditaram na história, nem no significado do cosmos que as religiões lhes apresentavam como uma doutrina de fé exigida sob pena de pecado mortal (!).
A verdade mais verdadeira e humilde é que não temos explicação. A ciência nos diz que “estamos apenas abrindo nossos olhos” … Ainda não sabemos onde estamos: o que é isso, ou de onde vem, ou para onde vai. Ainda não sabemos o que fazemos aqui, ou se somos apenas um capítulo fugaz de uma aventura cósmica infinitamente maior. As pessoas que sentem isso não podem mais continuar acreditando com a mesma certeza com que nossos avós acreditaram na história, nem no significado do cosmos que as religiões lhes apresentavam como uma doutrina de fé exigida sob pena de pecado mortal (!).
Estamos em um momento histórico realmente interessante: assediados por um vírus, deslumbrados pela ciência, decepcionados com a nossa velha segurança religiosa que ficou para atrás, como aquelas roupas que deixamos para trás quando crescemos. Não é fácil apreender o todo, nem reconhecer e localizar as limitações de nosso conhecimento. Mas é possível que a contemplação do Mistério da Realidade nos encha de compreensão, humildade e abertura, para continuarmos acreditando na Vida, no Cosmos e na Criatividade Misteriosa em que tudo está impregnado.
Mesmo sem ter uma resposta à pergunta “sobre Deus, a COVID e o problema do mal”, talvez possamos nos acochegar na Paz e na confiança, em comunhão com o sábio Divino Mistério do Cosmos, depois de fazer tudo o que for possível para controlar o Coronavírus. Embora seus ataques nos causem dor e não tenhamos respostas para saber o que está acontecendo, podemos nos sentir serenos e confiantes nesta comunhão divina com o Cosmos.
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