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O ex-assessor de Lula, Paulo Maldos, participa da campanha contra o fascismo organizada pela Fundação Pedro Casaldáliga

O ex-assessor de Lula, Paulo Maldos, participa da campanha contra o fascismo organizada pela Fundação Pedro Casaldáliga

É necessário aprofundar e divulgar a difícil situação do povo no Brasil, sob o mandato do presidente Jair Bolsonaro, que termina neste outono. Por isso, a Fundação Pedro Casaldáliga convidou, com o apoio da ONG Misereor, o Sr. Paulo Maldos, ex-assessor do presidente Lula da Silva e alto funcionário da presidente Dilma Roussef para direitos humanos e articulação social, para participar da campanha Brasil-Mundo: Resistir e transformar, que aconteceu em várias cidades da Catalunha ao longo do passado mês de maio.

Paulo Maldos explicou as consequências da política ultraliberal do presidente fascista, que está eliminando os avanços sociais que Lula da Silva e Dilma Roussef alcançaram, entre 2003 e 2016. Com eles, os 217 milhões de habitantes do maior país da América Latina, tiveram direito à alimentação, a melhora do sistema único de saúde, a promoção da educação, o respeito aos direitos dos povos indígenas, etc. Bolsonaro está acabando com todos esses direitos e impondo um estado baseado na violência, no ódio e no privilégio das elites.

Durante as duas semanas de turnê, Maldos deu entrevistas aos principais jornais, radios e TVs da Catalunha, como os jornais Diari Ara, Diari de Tarragona, Nació Digital e Regió 7, as revistas FET a Tarragona, e A República, a Casa Amèrica Catalunya, Tarragona Ràdio, a Televisió de Girona, e recentemente analizou para o Jornal Nacional da Catalunha, o TN vespre, o risco do Brasil estar caminhando para uma ditadura.

Como todos os anos, a Campanha da Fundação se organiza de forma colaborativa com o apoio de organizações amigas e comprometidas com as Causas de Casaldáliga. Por isso, em Tarragona, o Comité Óscar Romero foi a entidade anfritiã; em Girona foi a Comissió de l’Agenda Llatinoamericana; e em Manresa e Cervera, Justicia i Pau organizou a logística do evento.

A Campanha 2022 da Fundação concluiu em 29 de maio com La Trobada (O Encontro) tradicional em Barcelona que também contou com a presença da Deputada ao Congresso espanhol, a brasileira Maria Dantas, os teólogos Juan José Tamayo e Víctor Codina e o sociólogo Flávio Carvalho. Em Barcelona, ​​o evento também permitiu mergulhar no legado social e político de Pedro Casaldáliga, bem como conhecer sua figura através da análise de sua poesia, oferecida pelo jesuíta Víctor Codina.

No Brasil, as próximas eleições de 2 de outubro estão se transformando em um duelo entre Bolsonaro, que está concorrendo a um segundo mandato, e Lula da Silva, que foi absolvido de todas as acusações contra ele pelo Supremo Tribunal Federal. Nestes meses, o clima político e de rua é tenso. Há um ano, as pesquisas apontam Lula da Silva como o vencedor claro, que concorre com a coalizão dos democratas e que com previsão de 40% dos votos poderia inclusive vencer no primeiro turno. O atual presidente tem promovido, entre suas bases radicalizadas, o uso de armas, em sua dura escalada verbal ameaça não aceitar o resultado das eleições nem respeitar a vida dos opositores; uma ditadura seria seu sonho. O Brasil, portanto, está agora no meio da incerteza e da esperança, mas lutar contra aqueles que comprometem a Vida é uma obrigação moral desta Fundação.

Berta Ramos, jornalista

 

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Cristoneofascismo, teismo político e Deus sacrificial de Bolsonaro

Cristoneofascismo, teismo político e Deus sacrificial de Bolsonaro

Desde a eleição de Bolsonaro como presidente, o Brasil se tornou o epicentro do “cristoneofascismo” e o lugar onde a extrema direita de Deus governa, em um ato da mais crassa manipulação do sagrado a serviço de uma política necrófila.

Tal situação me leva a colocar duas questões: em que modelo político-religioso se baseia o cristoneofascismo de Bolsonaro e qual imagem de Deus o fundamenta. Acredito que a melhor resposta está no teísmo político que Bolsonaro estabeleceu no Brasil e na imagem sacrificial de Deus em que se baseia.

A teologia da libertação latino-americana, e especialmente a brasileira, libertou Deus do cerco do mercado e Bolsonaro o tornou prisioneiro de sua política antiecológica, homofóbica, patriarcal, neocolonial e ultraneoliberal.

O slogan de sua campanha eleitoral, com o qual também concluiu seu discurso de posse como presidente do Brasil, foi: “Brasil acima de tudo, Deus acima de tudo”. Ele reiterou isso em um dos cultos em que participou na Igreja Evangélica Sara Nossa Terra em julho de 2019: “Devo minha vida a Deus e este mandato está a serviço do Senhor. Em nosso governo, Deus está acima de tudo”.

O que muitos de nós consideramos um sequestro político de Deus, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, descreveu como uma libertação de Deus, “triste prisioneiro…, que volta a circular livremente pela alma humana”. Puro teísmo político e flagrante perversão religiosa.

Acredito, sim, que no Brasil está acontecendo o contrário da afirmação de Araújo: a teologia da libertação latino-americana, e especialmente a brasileira, libertou Deus do cerco do mercado e Bolsonaro o tornou prisioneiro de sua política antiecológica, homofóbica , patriarcal, neocolonial e ultraneoliberal.

Bolsonaro, Edir Macedo y Silvio Santos

(Brasília – DF, 07/09/2019) Jair Bolsonaro acompanhado pelo bispo da Igreja Universal Edir Macedo e pelo magnata da mídia Silvio Santos, durante o Desfile Cívico do Dia da Pátria. Foto: Alan Santos/PR

Uma característica do teísmo político de Bolsonaro é o providencialismo religioso, que consiste em interpretar a história a partir de um Deus providente, como quando considerou um milagre ter se livrado do atentado sofrido durante a campanha eleitoral. O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, aplicou a Bolsonaro as palavras de Jesus: “Muitos são chamados e poucos são escolhidos” e disse que Deus “elegeu o mais improvável”.

Na escolha do “mais improvável”, Lorenzoni estava certo. O que duvido – ou melhor, nego – é que tenha sido Deus quem o escolheu ou quem legitimou a sua eleição. O fato que realmente contribuiu para a eleição de Bolsonaro foram as fake news de sua campanha eleitoral, que continuam sendo produzidas durante sua presidência por meio do gabinete do ódio, que é dirigido por um de seus filhos e encarregado de divulgar notícias falsas. Comentando a solidão dos dois presidentes anteriores após as primeiras semanas de posse do governo, afirmou que um dos motivos dessa solidão foi “o afastamento de Deus, nosso criador”.

Bolsonaro reconhece mais influência da Bíblia do que da própria Constituição brasileira. Mas de uma Bíblia lida de forma fundamentalista e seletiva em seus textos mais violentos e discriminatórios contra mulheres, homossexuais, etc.

O Brasil tem uma longa tradição de Estado laico, que Bolsonaro parece ratificar, mas o faz com astúcia porque introduz uma distinção que leva ao confessionalismo: “O Estado é laico, mas nós -” eu “, diz em outras ocasiões – somos cristãos”. Confessionalismo que estendeu ao Supremo Tribunal Federal para o qual anunciou que dos dois juízes que deveria nomear “um seria terrivelmente (sic!) evangélico”.

Respeito ao pluralismo? Em absoluto. Ele prometeu reconhecer todas as religiões, mas, “seguindo a tradição judaico-cristã”. Considerando as constantes referências que faz à Bíblia, deve-se notar que ele reconhece mais influência da Bíblia do que da própria Constituição brasileira. Mas de uma Bíblia lida de forma fundamentalista e seletiva em seus textos mais violentos e discriminatórios contra mulheres, homossexuais, etc.

Bolsonaro hace el saludo militar en la "Marcha para Jesus"

Bolsonaro faz a saudação militar na “Marcha por Jesus”, em maio passado.

Constante é a presença de Bolsonaro nos templos das igrejas evangélicas fundamentalistas. Em sua visita ao Templo de Salomão da Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, ocorreu uma cena inusitada: o Presidente da República ajoelhado diante do Bispo Macedo, que impôs as mãos nele, abençoado-o. A referência à Bíblia é permanente para legitimar a sua política homofóbica, sexista, racista e ultra-neoliberal, numa palavra, neofascista num claro rapto do texto sagrado judaico-cristão, que lê de forma fundamentalista.

Em maio de 2016, Bolsonaro viajou para Israel para receber o batismo no rio Jordão, imitando o batismo de Jesus. Foi o pastor e líder do Partido Social Cristão Everaldo Dias Pereira quem o imergiu no Jordão e, após o batismo, perguntou-lhe: “Você acredita que Jesus é o Filho de Deus?”, ao que Bolsonaro respondeu: “Acredito”. Após o batismo, ele citou a declaração de Jesus: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32) e fez a seguinte confissão: “Recuperei uma fé que me acompanhará pelo resto da minha vida.”

O deus de Bolsonaro

O deus em que o atual presidente do Brasil acredita e com ele os cristofascistas é aquele que legitima as ditaduras e não respeita à democracia. De fato, Bolsonaro defendeu inúmeras vezes a ditadura brasileira que durou mais de vinte anos, de 1964 a 1985.

Ele chegou a afirmar que o principal erro daquele regime “foi torturar, mas não matar”. Ele também elogiou o golpe de Estado de Augusto Pinochet e o fez em resposta às críticas de Michelle Bachelet, presidenta do Chile por dois mandatos (2006-2010, 2014-2018) e atual Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

A reação de Bolsonaro não deixa dúvidas: Deus fica do lado dos ditadores, criminaliza impiedosamente as vítimas e, como disse Atahualpa Yupanki, almoça na mesa do patrão.

Ele respondeu a Bachelet que esqueceu “que seu país não era como Cuba apenas graças a quem teve a coragem de ‘dar um fim’ à esquerda em 1973, entre os quais estava seu pai, então brigadeiro”. A reação de Bolsonaro não deixa dúvidas: Deus fica do lado dos ditadores, criminaliza impiedosamente as vítimas e, como Atahualpa Yupanki, almoça na mesa do patrão.

Culto em comemoração aos 106 anos da Assembleia de Deus

(Boa Vista – RR, 26/10/2021) Culto em comemoração aos 106 anos da Assembleia de Deus.
Foto: Isac Nóbrega/PR

Comentando a Declaração postsinodal Querida Amazonía, do Papa Francisco, Bolsonaro negou que houvesse fogo na floresta úmida e questionou o conteúdo da exortação em tom burlesco e teocrático: “O Papa Francisco disse ontem que a Amazônia é dele, que é do mundo inteiro; Coincidentemente, ontem estive com o chanceler argentino… o papa é argentino, mas Deus é brasileiro”. Deus étnico e nacional contrário ao Deus universal das religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo!

O deus de Bolsonaro é o deus negador do aquecimento global, insensível à violência de gênero, militarista, feito à imagem e semelhança dos militares como Bolsonaro e seu governo.

O Deus de Bolsonaro, segundo Eliane Brum, é aquele que odeia o mundo globalizado, aquele que acredita que os imigrantes podem ameaçar a soberania do Brasil, aquele que acredita que as escolas do país se tornaram um verdadeiro bacanal infantil incentivado por professores que defendem a “ideologia de gênero”. Eu acrescento: é o deus negador do aquecimento global, insensível à violência de gênero, militarista, feito à imagem e semelhança do militar Bolsonaro e seu governo com grande representação militar. É um deus vingativo, e não o Deus do perdão, compaixão e misericórdia como pregado e praticado por Jesus de Nazaré. Nada a ver com o Deus libertador do êxodo e dos profetas de Israel, que opta por pessoas e grupos empobrecidos.

O deus de Bolsonaro é também o deus da magia e da superstição. No auge da pandemia, com dezenas de milhares de brasileiros infectados e milhares de pessoas morrendo todos os dias, ele emitiu um decreto declarando os serviços religiosos um “serviço essencial” para os cidadãos. Este regulamento foi inspirado na afirmação do pastor evangélico Silas Malafaia, um de seus conselheiros religiosos: “A igreja é uma agência de saúde emocional, tão importante quanto os hospitais”. Maior desprezo pela vida, impossível!

“Não se preocupem com o coronavírus. É uma tática de Satanás. Satanás trabalha com o medo, com o pavor, com a dúvida. Satanás apavora as pessoas. E quando as pessoas ficam apavoradas, ficam com medo ou com dúvida, as pessoas ficam fracas, débeis e suscetíveis”. Edir Macedo

Aconselhado pelos pastores das megaigrejas, Bolsonaro subestimou desde o início a gravidade do coronavírus, que qualificou de “gripezinha”, e da pandemia, que descreveu como psicose e histeria, mostrando desconfiança da ciência e propondo como alternativa a fé. Bolsonaro acenou a sua proximidade com o bispo evangélico Edir Macedo, para quem o coronavírus é uma estratégia de Satanás para instilar medo, pânico e até terror, mas que só atinge pessoas sem fé. Como antídoto para o coronavírus, Bolsonaro propõe o “coronafé”, que só é eficaz para quem acredita firmemente na palavra de Deus. O próprio Bolsonaro se tornou o profeta contra o coronavírus para um grupo de evangélicos que o aguarda ansiosamente chamando-o de “Messias” nos portões do palácio presidencial.

O teólogo e filósofo intercultural Raimon Panikkar em seu livro «La religión, el mundo y el cuerpo» (Herder, Barcelona, 2012) oferece uma resposta à desconfiança da ciência e ao caráter mágico-curativo da fé fora da medicina:

“Desvinculada da medicina, a religião deixa de ser […] fonte de alegria […]; torna-se uma força alienante, que raramente pode refugiar-se no ‘negócio’ de salvar almas não encarnadas ou na esperança de um céu projetado em um futuro linear, mas que perde valor e até sua razão de ser, já que não pode mais salvar o verdadeiro ser humano de carne e osso […] uma espécie de remédio para outro mundo, ao preço de ignorar este aqui” (p. 111).

E Panikkar conclui: “Religião sem medicina não é religião, ela desumaniza, torna-se cruel e aliena os seres humanos de sua própria vida nesta terra. A religião sem medicina torna-se patológica”. (p.112).

O Deus de Bolsonaro -também conhecido como BolsoNero- exige o sacrifício de seres humanos, um sacrifício seletivo de pessoas, classes sociais e setores mais vulneráveis ​​da população brasileira, de comunidades afrodescendentes e indígenas. Isso ficou evidente durante a pandemia com a morte de cerca de 700.000 pessoas, principalmente dos setores e classes populares, que foram sacrificadas com a desculpa de salvar a economia. A economia acima da vida!

O bispo, profeta, místico e poeta Pedro Casaldáliga responde, com sua vida e as causas que defendeu -mais importantes que sua vida-, ao cristoneofascismo de Bolsonaro com a proposta de um cristianismo libertador, desevangelizador e descolonizador, do qual ele foi um dos símbolos mais luminosos.

O investimento não poderia ser mais necrófilo. É a aplicação mais desumana da teoria da necropolítica, exposta pelo cientista político camaronês Achille Mbembe, segundo a qual os poderes decidem quem deve morrer e quem pode viver, e a cultura do descarte do Papa Francisco, segundo a qual “os excluídos não são apenas ‘explorados’, mas ‘desperdícios’, ‘excedentes’ (O alegria do Evangelho, n. 53).

O deus de Bolsonaro é, em suma, um deus ecocida que exige o sacrifício da natureza, principalmente com a destruição da floresta amazônica, sem perceber que a natureza é a fonte da vida, e Deus é o doador da vida. O deus de Bolsonaro está relacionado aos ídolos da morte do cristofascismo.

O bispo, profeta, místico e poeta Pedro Casaldáliga responde, com sua vida e as causas que defendeu -mais importantes que sua vida-, ao cristoneofascismo de Bolsonaro com a proposta de um processo libertador, desevangelizador e descolonizador. Cristianismo, do qual ele foi um dos símbolos mais brilhantes. Propõe, igualmente, como alternativa ao deus necrófilo e sacrificial do atual -e esperançosamente por muito pouco tempo- presidente do Brasil- Deus Pai e Mãe, “o Deus de todos nomes”, que “no ventre de Maria de Nazaré se tornou um ser humano e na oficina de José se tornou classe”.

 

Juan José Tamayo. Professor emérito da Universidade Carlos III de Madrid e autor de La Internacional del odio. ¿Cómo se construye? ¿Cómo se deconstruye? (Icaria, Barcelona, 2022, 3ª ed.) e Pedro Casaldáliga. Larga caminata con los pobres de la tierra (Herder, Barcelona, 2020)

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As mortes devido a conflitos no campo no Brasil aumentaram em 75% em 2021

As mortes devido a conflitos no campo no Brasil aumentaram em 75% em 2021

No Brasil, os assassinatos devido aos conflitos no campo aumentaram 75% em 2021, um aumento que reflete “o abandono e a ação deliberada contra a vida das pessoas” do governo do Presidente Jair Bolsonaro. A denúncia foi feita pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada ao Episcopado brasileiro, na apresentação de seu relatório anual, Caderno de Conflitos no Campo 2021.

 

A Terra Indígena Yanomami (TIY) tem sido um dos territórios mais duramente atingidos pela violência dos garimpeiros no Brasil. Demarcada em 1992, a TIY é a maior do Brasil, com 9,6 milhões de hectares. É o lar dos povos indígenas Yanomami e Ye’kwana. Há também evidências da presença de oito grupos indígenas isolados na floresta, um deles conhecido como o povo indígena Moxihatëtëa. Desde 2012, a atividade de mineração clandestina vem se expandindo rapidamente no país e está tendo um impacto significativo sobre a Amazônia.

Em 2020, o Centro de Documentação da CPT – Dom Tomás Balduino registrou 9 mortes como resultado de conflitos no campo, a maioria delas dentro do estado do Amazonas (6). Em 2021, 109 mortes foram registradas como resultado de conflitos, um aumento de 1.110%.

Do total, 101 mortes foram registradas no estado de Roraima. Todas elas de indígenas Yanomami. Tudo causado pelas ações de garimpeiros clandestinos de ouro. Desde 2020, a Asociação Hutukara alerta autoridades sobre a escalada da violência nas regiões da TIY onde a mineração ilegal, o garimpo, está mais avançado. De acordo com dados obtidos pelo Sistema de Monitoramento de Mineração Ilegal dentro da TIY, o leito do rio Uraricoera é a região mais afetada por esta atividade, representando 45% de toda a área degradada pela mineração ilegal dentro do território indígena Yanomani.

Treball esclau al Brasil

O Brasil encerrou 2021 com 1937 pessoas resgatadas da escravidão, o maior número desde 2013. Sérgio Carvalho / MTE

Violência contra as personas: aumento de 75% nos assassinatos

Em 2021, informaçãoes da Comissão Pastoral da Tierra evidenciaram que a violência contra as pessoas era brutal. Somente nos estados que compõem a Amazônia Legal, foram registrados 28 assassinatos, 80% do total para todo o Brasil. As ações dos “pistoleiros contratados” e das chamadas “agromilicias”, assim como dos agentes públicos, levaram a 35 assassinatos devido a conflitos no campo no Brasil em 2021. Desse total, 33 eram homens e dois eram mulheres.

Durante este período houve também 27 tentativas de assassinatos e 132 ameaças de morte. Houve também 75 agressões físicas com vários feridos, inúmeras intimidações e tentativas humilhantes de subjugação, com 13 registros de tortura praticados principalmente por agentes privados de grandes propriedades, proprietários de terras, fazendeiros.

No total, 100 camponeses foram presos em 2021, com um aumento de 45% no número de prisões em comparação com o ano anterior.

Cinco pessoas LGBTI+ são vítimas de violência no campo

Os dados sobre a violência contra as pessoas, divulgados na publicação Conflitos no Campo Brasil 2021, pela primeira vez, apresentam informações sobre a orientação sexual e a expressão de gênero das vítimas de violência no campo. Em 2021, cinco pessoas LGBTI+ no campo foram vítimas de violência, de acordo com dados publicados no relatório. Tal violência inclui: humilhação e prisão; assassinato; intimidação e tortura.

Treball esclau al Brasil

No maior resgate de 2021, a Souza Paiol foi considerada responsável por manter 116 trabalhadores escravizados na colheita da palha de seus cigarros (Foto: Grupo Especial de Inspeção Móvel/Divulgação).

Trabalho escravo: maior número de pessoas resgatadas desde 2013

Em 2021, o Ministério Público do Trabalho brasileiro resgatou 1.726 pessoas da escravidão, o maior número desde 2013. Um aumento de 113% em relação ao valor de 2020. Houve 169 casos de trabalho escravo nas áreas rurais em 2021, um aumento de 76% em relação ao ano anterior. O estado de Minas Gerais lidera a lista, com 51 casos e 757 pessoas resgatadas. Em seguida vem o estado do Pará, com 27 casos, e Goiás, com 17.

Do total de pessoas resgatadas desta prática criminosa, 64 eram crianças e adolescentes, o que corresponde a um aumento de 121% em relação ao ano anterior. As regiões sudeste e centro-oeste concentraram o maior número de menores escravizados, 19 cada uma.

Estas duas regiões também são onde foram detectados mais casos de trabalho escravo: na região Sudeste foram registrados 59 casos e resgatados 919, enquanto no Centro-Oeste houve 37 casos e 415 resgatados em 2021.

Tentativas de destruir a subsistência da população rural estão aumentando

Durante 2021, houve 2.143 famílias despejadas judicialmente, 12% a mais do que em 2020. Houve também um aumento de 18% no número de famílias expulsas violentamente de suas terras. O número aumentou de 469 em 2020 para 555 em 2021.

Mais de 71 milhões de hectares estavam ou ainda estão em conflito. As terras indígenas constituem a esmagadora maioria destas terras sofrendo de invasões violentas, correspondendo a 81% das áreas sob tensão e conflito social. Os chamados sem-terra constituem a segunda categoria de identidade com mais áreas sob forte pressão e conflito, seguidos pelos “posseiros”.

Treball esclau al Brasil

A alta porcentagem de negros entre os escravos resgatados é um sintoma da realidade que os negros ainda vivem hoje no Brasil (Foto: Sergio Carvalho – Subsecretária de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia).

Em termos de dados sobre o número de famílias envolvidas em conflitos fundiários nos últimos dez anos, o aumento dramático do número de famílias que tiveram suas terras invadidas desde o início do atual governo (2019-2021) é impressionante: nada menos que 206% a mais do que em 2018.

Na Amazônia foram registradas 64,5% das ameaças de expulsão, 63% de contaminação por agrotóxicos, 78% de desmatamento ilegal, 87% de expulsões, 81% de grillagens, 82% de invasões, 69% de registros de assassinos e pistoleiros contratados, 73% de omissões/conivências por parte do Estado e 70% de violações das condições de existência de todo o Brasil.

Resistência

As ações de ocupação e recuperação de terras também tiveram um aumento expressivo em 2021. No total, estas ações de resistência aumentaram de 29 em 2020 para 50 em 2021, um aumento de 72%, e de 1.391 famílias em 2020 para 4.761 famílias ocupando e recuperando terras em 2021. Um aumento de 242%.

 

Dados do relatório anual da Comissão Pastoral da Terra.

 

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A minha espiritualidade

A minha espiritualidade

Em nosso livro “Espiritualidade da libertação”, José María Vigil e eu reconhecemos, já na primeira linha do primeiro capítulo, que “espiritualidade” é uma palavra infeliz, desmoralizada, pelo abuso teórico e prático com que foi usada – ainda é – como uma esfera distante da vida real, como espiritualismo desencarnado e fuga do compromisso. Se a espiritualidade deriva do “espírito”, e se o espírito se opõe à matéria, ao corpo, uma pessoa será espiritual quando viver sem se preocupar com o que é material, nem mesmo com o próprio corpo, instalando-se em realidades espirituais etéreas.

Essa concepção de espírito e espiritualidade como realidades opostas ao material do corpóreo, vem da cultura grega. Nas culturas indígenas não é assim. E nem no mundo cultural semítico da Bíblia. A palavra de Deus é muito mais abrangente.

Nesta última década, depois de algumas decepções, aprendendo com a história e através de um verdadeiro processo de amadurecimento, devemos reconhecer, agradecidos a Deus que nos acompanha e aos irmãos e irmãs que deram seu sangue por nós, aquela “espiritualidade” não é mais uma palavra infeliz. Hoje é um horizonte que precisamos, um grito que vem de dentro, água viva para nossa caminhada. Há uma autêntica e profunda sede de espiritualidade nas comunidades eclesiais, nos agentes pastorais, nos militantes cristãos, nos jovens mais alertas.

Multiplicam-se encontros, publicações, conferências, entidades que estudam, propagam e dinamizam a espiritualidade e, mais especificamente, a nossa espiritualidade. A cada dia há mais pessoas que querem “beber do próprio poço”.

1. O que então é espiritualidade?

O espírito de uma pessoa é a profundidade e a dinâmica de seu próprio ser: suas maiores e últimas motivações, seu ideal, sua utopia, sua paixão, o misticismo pelo qual vive e luta e com o qual se contagia.

“Espírito” é o substantivo concreto, e “espiritualidade” é o substantivo abstrato. Na linguagem comum, essas duas palavras são usadas de forma intercambiável: “Fulano tem muito espírito, tem uma espiritualidade profunda”.

Quando dizemos de alguém que “não tem espírito”, queremos afirmar que não tem paixão, nem ideal, nem vida profunda. É mais que uma pessoa, é um baú, é uma máquina.

Existem diferentes espíritos, sim. E é necessário discernir. Segundo alguns códices, quando os apóstolos sonhavam ou agiam fora do Reino, Jesus os advertia: “Vocês não sabem qual espírito são” (Lc 9,55). Existe um espírito mau e um espírito bom. Não é que se fala e se escreve sobre “o espírito do capitalismo”, sobre o “espírito do mercado neoliberal”?

2. A espiritualidade é herança de todos os seres humanos

Cada pessoa é animada por uma ou outra espiritualidade, porque cada ser humano – cristão ou não, religioso ou não – também é fundamentalmente também um ser espiritual. Cada mulher, cada homem é mais do que apenas biologia. E é essa outra coisa, ou muito mais, que os distingue do simples animal. Religiões e filosofias designam essa realidade misteriosa, mas real, como “espírito”. Perder essa dimensão profunda é deixar de ser humano, é tornar-se brutalizado. Paul Tillich fala disso “dimensão perdida” como da grande tragédia de nossos tempos materialistas e consumistas.

3. Toda espiritualidade também é algo religioso?

Se entendermos a palavra “religião” como uma referência explícita a Deus, devemos reconhecer que existem espiritualidades não religiosas, pessoas com muita espiritualidade, com profundos ideais de luta e serviço, que são ateus ou agnósticos. “Não hesitamos em afirmar que existem não apenas espiritualidades não cristãs, mas também não crentes”, escreve A.M. Benard.

No entanto, para nós, que cremos em Deus como presença felizmente “inevitável” e animadora de nossas vidas, água e luz de todo bom pensamento e de toda ação honesta, espiritualidade sincera, essa profundidade humana radical, é sempre “religiosa”. O grande mestre Orígenes disse que “Deus é isso que a gente coloca acima de tudo”. E o inquieto bispo de Hipona, Santo Agostinho, escreveu em suas “confissões” que “Deus é mais íntimo de mim do que minha própria intimidade”.

No entanto, não é a religiosidade que faz a verdade ou mentira de uma vida humana, mas a autenticidade dessa própria vida. “Em espírito e em verdade o Pai quer ser adorado”, lembrou Jesus à mulher samaritana junto ao poço de Jacó (Jo 4,23).

4. A nossa espiritualidade é cristã

À luz da fé cristã (há uma fé religiosa quíchua, uma fé religiosa islâmica, uma fé religiosa hindu) descobrimos a presença de Deus no cosmos, na vida humana e na história como amor gratuito e salvação precisamente porque Jesus, filho de Deus e filho de Maria de Nazaré, com a sua palavra, ação, morte e ressurreição, faz-nos entrar vitalmente nessa descoberta. A partir desse encontro de fé, nossa espiritualidade só pode ser “religiosa” (como uma volta ao Deus vivo, revelado por Jesus) e até “cristã” (como o próprio seguimento de Jesus).

O Deus de Jesus é o nosso Deus. Ele é a profundidade máxima da nossa vida.

A causa de Jesus é a nossa causa.

O nosso viver é Cristo (Fl 1,21). Ele é nossa paixão e seu espírito é nossa espiritualidade.

5. Nossa espiritualidade

Nossa espiritualidade é nossa em dois sentidos:

  1. Porque é uma espiritualidade personalizada, porque vivemos consciente e livremente na condição de adultos também na fé, com a totalidade do nosso ser humano, em todas as dimensões da nossa vida. Eu sou minha espiritualidade. Ninguém a vive por mim.
  2. Porque é uma espiritualidade explicitamente latino-americana; e, de forma clara, espiritualidade de libertação.

Antes de mais nada, é preciso sublinhar esse aspecto, que oportunamente a modernidade (também a pós-modernidade, a seu modo) trouxe à tona e que nos liberta do gregário, da infantilidade e, por fim, de uma possível e justificada deserção.

A espiritualidade ou é personalizada ou não é espiritualidade. Ou abrange todas as dimensões do meu ser (alma e corpo, pensamento e vontade, sexo e fantasia, palavra e ação, interioridade e comunicação, contemplação e luta, gratuidade e compromisso) ou não será minha, não vou me realizar nela, vai acabar me mutilando.

Foi um prazer oferecer aos meus companheiros e companheiros de caminhada um quadro de referências que muito me serviu na vida, depois de ter experimentado, em determinados momentos, sobretudo nas formações, métodos reducionistas ou unilateralidades que nos angustiavam e reprimiam a realização e a amplitude do espírito.

Assim como corrigir uma formação espiritual dispersa ou mutilada, por ser contador ou por ser dicotômica e unilateral, e ser a síntese da própria existência (esse é o desafio!), devemos pensar a vida assim:

Toda a nossa vida é:

  • um problema (na fé, um mistério);
  • um desafio (na fé, uma missão);
  • um espaço (na fé, dom, graça); que devemos assumir com certas atitudes (geradas por certos atos e que, por sua vez, geram práxis);
  • através de certas mediações (psicológicas, sociológicas, políticas, pastorais, evangélicas…);
  • com vista à opção fundamental, que dará sentido, força, alegria e vitória às nossas vidas.

Ao longo deste texto – e espero, sobretudo, ao longo da vida de cada um – o que quero dizer quando falo da “nossa” espiritualidade cristã aparecerá melhor. O espírito é quem sabe. É ele quem ensina aqueles que quiserem entrar em sua escola gratuita e amorosa. De minha parte, sinto-me cada vez menos legitimado para dar lições de espiritualidade, porque a vida não se ensina. Ninguém pode substituir o Mestre, que é o Espírito de Deus, nem mesmo o discípulo, que é o espírito de cada um de nós.

Posso indicar onde tropecei, sim, e compartilhar alegrias e descobertas; porque também é verdade que, em Cristo, somos um só corpo e que o espírito que nos anima é um só (cf. 1 Cor 12,12, s).

Em nosso livro “Espiritualidade da libertação”, explicamos detalhadamente o que entendemos por Espírito/espírito/espiritualidade; os diferentes significados dessas palavras, a complementaridade com que a espiritualidade “natural” e “latino-americana” deve ser vivida, assim como a espiritualidade “cristã”, por uma pessoa simultaneamente humana, batizada e latino-americana. Para tanto, nosso livro está dividido em três grandes capítulos: I. O Espírito e a Espiritualidade; II. O Espírito libertador em nossa Pátria Grande; III. No espírito de Jesus Cristo libertador.

A esses três capítulos acrescentamos “as 7 características do novo povo”, conscientes de que “de novas mulheres e novos homens nasce o novo povo”:

  1. lucidez crítica;
  2. contemplação na caminhada;
  3. a liberdade dos pobres;
  4. solidariedade fraterna;
  5. a cruz e o conflito;
  6. a insurreição evangélica (a revolução de as Boas Novas);
  7. a tenaz esperança da Páscoa.

E apresentamos também as “constantes da espiritualidade da libertação”:

  • profundidade pessoal;
  • reinocentrismo;
  • uma espiritualidade do cristão essencial e universal;
  • a localização: na realidade, na história, no lugar, nos pobres, na política;
  • a crítica;
  • a práxis;
  • a integralidade, sem dicotomias e sem reducionismos.

Com outras palavras, mais ou menos sinônimas, poderíamos também caracterizar a espiritualidade da libertação como:

  • Cristológica, da prática de Jesus, em seu seguimento;
  • situada, localizada, política, histórica; um “tropeçar no Deus dos pobres” (Leonardo Boff), encontrar Deus nas práticas mais cotidianas, mais sociais, mais comunitárias;
  • na cruz da profecia e do conflito, assumida para a Páscoa;
  • “entre livre e exigente” (G. Gutiérrez);
  • ser contemplativa na libertação, decodificando o Reino ou o Anti-Reino na realidade, aqui e agora;
  • enraizada em nossas culturas e história;
  • herdeira comprometida com o sangue de mártir;
  • profeticamente alternativa ao sistema de morte e exclusão;
  • em uma co-responsabilidade eclesial, adulta, livre e serena;
  • em espírito ecumênico e macroecumênico;

6. Hoje, aqui

Toda a América Latina, que faz parte do terceiro mundo, vive uma hora de globalização, de neoliberalismo, de pós-modernidade. Esta hora certamente tem muito “poder das trevas”, mas pode ter muito mais se acreditarmos no espírito, “caídos do Reino”.

Há, sem dúvida, uma crise de estratégias libertadoras “clássicas”, uma confusão entre os militantes, um sentimento de “sem saída”, de depressão psicossocial. Para muitos discípulos e discípulas, nesta noite ao longo do caminho para a segurança, a sensação de baixa hora é a mesma dos discípulos de Emaús desanimados: “Nós esperávamos que …” (Lc 24:21). Acrescente, para maior desorientação, aquela avalanche de fundamentalismos, exotismos e esoterismos que convulsionam o mundo.

A globalização está se impondo como neoliberal, com um sistema único, com um mercado total, mercantilizante da vida humana, idólatra, com uma escatologia imediata em um estúpido “fim da história”, imoladora da maioria nas garras do progresso consumista, privatizadora da sociedade, sem alternativa socializadora possível.

A pós-modernidade nega o radicalismo espiritual, o compromisso, a utopia; substitui a ética pela estética, o utópico pelo fruitivo; ignora os pobres e negligencia a justiça; renuncia às “grandes histórias”; é narcisista: dizem até que fomos de Prometeu a Narciso. Tudo na vida deve ser light, de acordo com o momento e o instinto.

Eu mesmo tenho alertado, ao longo do tempo, diante de três grandes tentações que nos esperam nesta hora neoliberal da “noite escura dos pobres” e de seus aliados: a tentação de renunciar à memória e à história; a tentação de renunciar à cruz e à militância; a tentação de desistir da esperança e da utopia.

De nossa parte, acreditamos que a globalização legítima, a outra globalização, é a vontade do único Deus, o destino da família humana, que é uma, em uma casa na terra e no céu. Intercomunicação, intersolidariedade, autoridade plural na unidade humana, o concerto universal de todos os povos, respeitados igualmente, complementares entre si, todas as pessoas “iguais e diferentes” ao mesmo tempo, na macro-harmonia da criatura que Deus sonhou.

Acreditamos também em uma legítima modernidade/pós-modernidade que potencializa a autonomia, a subjetividade, a liberdade, a igualdade, os sonhos lúcidos e prazerosos, a fricção do cosmos e da vida, cantando diariamente as águas próximas, na interioridade, na família, na amizade , na cidadania; a integração da pessoa humana na festa da criação divina.

Na Igreja deste tempo entramos, há muito tempo, segundo o teólogo Rahner, numa espécie de inverno involucionista, depois da bela primavera inaugurada pelo Concílio Vaticano II. Víctor Codina fala de “medo e insegurança na Igreja”. Muitos medos, muitas perplexidades, muitos cortes, muitas irritações. O mesmo Jubileu do ano 2000 – mais do que legítimo para a celebração penitencial e agradecimento da nossa fé e da história da nossa Igreja – pode tornar-se uma fuga, uma festa católica ou cristã, quando poderia ser o momento forte de renunciar profeticamente ao anti-Reino neoliberal e de anunciar profeticamente o Reino de Deus de vida de justiça e paz: O porquê e para que Deus se tornou em Jesus Cristo o Deus -tão-completamente -conosco-!

Também, falando da igreja, podemos cantar, em troca,  muitas realizações esperançosas, na espiritualidade, na liturgia, na teologia, na experiência bíblica; nas comunidades eclesiais, na vida religiosa e inserida, nas pastorais específicas; na diversidade dos mistérios, no profetismo de leigos e leigas, com uma crescente presença conquistadora de mulheres também no altar; no ecumenismo das bases e de alguns dirigentes generosos; no diálogo inter-religioso ou macroecumênico; na presença e participação da Igreja comprometida com a luta pelos direitos humanos, pela cidadania, pela ecologia, pela terra, pela saúde, pela habitação, pela educação, pela comunicação.

O bispo mártir da Argentina, Enrique Angelelli, pastor do “interior”, durante o período de ditadura militar em seu país, proclamou uma esperança inabalável com estas palavras evangélicas: “Estou feliz por viver nos tempos em que vivo. Tudo o que estamos vivenciando é certamente cheio de vida. A Igreja torna-se mais evangélica, mais simples, mais missionária, comprometida com o seu povo. Quando nós cristãos limpamos nossa cara suja e transformamos nosso coração de carne em coração pascal, é a Igreja que vive; nossa Igreja rejuvenesce, caminha e se torna mais servidora, louvando o Pai dos Céus. É ali que nossa Igreja se fortalece com o poder do Espírito Santo. Torna-se mais livre e não se prende a interesses que o tornam infiel à sua missão. Brilha melhor como o grande sacramento de Jesus Cristo entre nós”.

Nós também, como Angelelli, podemos nos sentir felizes – ele em meio a uma ditadura militar, nós em meio ao neoliberalismo – desde que, como ele, nos despojemos e nos comprometamos, desde que troquemos nosso coração de pedra por um “coração de Páscoa”.

 

Pedro Casaldáliga
Nossa espiritualidade
[Pode baixar e/ou ler livremente esta obra de Casaldáliga, no original em espanhol]

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As nossas causas de cada dia

As nossas causas de cada dia

Somos as Causas que assumimos, as que vivemos, pelas quais lutamos, e pelas quais estamos dispostos a morrer. Eu sou eu e minhas causas. Minha vida valerá o que valham minhas Causas. A América Latina é o Continente mais consciente de sua comunitária identidade. Pela sua unidade histórico-militante, de sangue e utopia, de morte e esperança, ela pode falar coletivamente de umas Causas próprias.

E essas Causas, enquanto latino-americanas e enquanto assumidas como desafio existencial e como processo político, levam consigo três constantes, tâo utópicas quanto necessárias, e complementares entre si:

a) a opção pelos pobres, opção pelo povo;

b) a libertação integral;

c) a solidariedade fraterna.

Quatro são as grandes Causas da Pátria Grande que esta Agenda privilegia, por julgá-las fundamentais no contexto social e espiritual desta sua “hora”.

1. As culturas raiz e testemunho

Perseguidas e até proibidas, marginalizadas e até massacradas. A cultura indígena, a cultura negra, a cultura mestiça, a cultura migrante. Cada uma delas com sua especificidade, mais ou menos conflitiva, segundo os tempos e as latitudes. Hoje, as quatro — esqueleto e carne, sangue e pele de Nossa América — vêem-se confrontadas por essa niveladora “cultura chegante”, que nega as identidades, proíbe a alteridade e subjuga neocolonizadoramente.

As quatro defendem sua autoctonia. E para sobreviver e, particularmente, para contribuir com sua originalidade, devem fazer aliança fraterna e se defender dos novos invasores, como uma só América plural. índia, negra, mestiça, migrante, que seja cada vez mais ela mesma, esta Nossa América singular.

2. O popular alternativo

O socialismo latino-americano, a democracia integral, a civilização da pobreza compartilhada mas militante, a luta pelos direitos humanos e pelas transformações sociais juntamente com a gratuidade e a festa.

Morto o “socialismo real”, viva o socialismo utópico! Viva a democracia popular! Que vá morrendo a democracia neoliberal que se considera a única saída para a sociedade humana e “fim da história”.

O popular, e por ser popular, “alternativo”, diferente do que nos é dado, contrário ao que nos é imposto, criativo diante do fatalismo rotineiro, é o programa mais realista e o desafio histórico mais eficaz para os Povos latino-americanos, para seus líderes e políticos, para seus partidos e sindicatos, para as Igrejas que queiram ser latino-americanamente cristãs e para esse novo sujeito emergente coletivo que é o Movimento Popular.

3. A Mulher

Ela, nem menos nem mais. Secularmente marginalizada em quase todas as culturas e também, é claro, nesta machista América Latina que, de fato, é mais Mátria do que Pátria Grande, Abia Yala, terra virgem mãe em constante fecundidade.

As mulheres, todas as mulheres, também as negras, e as índias também, e as pobres e as usadas e as submetidas, estão-se colocando em pé de consciência coletiva e organizada, e são, com muita freqüência, suporte e maioria nas diferentes esferas do movimento popular. E o serão cada vez mais. E não só na práxis mas também no pensamento, não só na militância, mas também na liderança. E os homens e a Sociedade e a Igreja haverão de reconhecer e respeitar e dialogar, porque já a mulher latino-americana se reconhece altivamente, exige o respeito da igualdade e dialoga à altura fraterna. Nem quer os privilégios tolos de certo feminismo primeiro-mundista, nem aceitará facilmente que a Sociedade ou a Igreja continuem declarando como dogma de fé a presença e a ação da mulher num segundo plano subordinado.

4. A ecologia integral

A comunhão harmoniosa com a Natureza, mãe e esposa, habitai e veículo. Uma ecologia contemplativa ao mesmo tempo que funcional. Sem as distâncias interessadas com que o Primeiro Mundo defende facilmente a ecologia distante…. Em intersolidariedade ecológica, dos diferentes Povos do Continente, dos Continentes entre si e até no cotidiano da vizinhança.

Herança ancestral dos povos indígenas que tão bem souberam amar c respeitar a Natureza, a América Latina pode e deve dar ao mundo esta lição atualíssima da ecologia integral. Não queremos a Terra como um museu intocável, nem aceitamos a técnica, a indústria, o mercado como a lei e o futuro onipotentes. O primeiro elemento essencial para nossa ecologia é o próprio ser humano, a espécie viva mais ameaçada de extinção pela ambição da própria espécie.

Nós mesmos queremos ser ecologia consciente, convivência pacífica, terra cultivada e utopia sonhada.

Se a América Latina é nossa Causa, estas grandes Causas da Pátria Grande haverão de ser, diariamente, nossas grandes Causas ao longo do ano de 1993, que segue o famoso 1992. A vivência entusiástica, a defesa militante, e a diária utopia dessas quatro grandes Causas nos possibilitarão viver outros 500 anos, mas muitos “outros”, quinhentos e milhares… E seremos amanhã o ontem mártir já florescido, “e seremos milhões”…

Assim, a partir de nossa alteridade assumida e respeitada, poderemos dar a contribuição específica que o único Mundo Humano, já sem Primeiro e sem Terceiro, espera de nós.

E essa convivência da América Latina com os outros Povos da Terra Humana irá parecendo cada vez mais com o Reino de Deus.

Sauidi, Axé, Shalom!

 

Texto de Pedro Casaldáliga, na Agenda Latinoamericana Mundial de 1993.

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