por Administrador/a | 22 jun, 2021 | A vida de Pedro Casaldáliga
A Prefeitura de Barcelona, a Associação Araguaia e a Fundação Pedro Casaldáliga celebram uma homenagem conjunta a Pedro Casaldáliga na cidade de Barcelona. O evento será realizado na próxima segunda-feira, dia 28 de junho.
Apresentado pelos jornalistas Mònica Terribas e Antoni Bassas, contará com a participação dos atores Eduard Fernàndez, Clara Segura e Núria Valls, além da artista catalã-brasileira Priscila Barbosa.
A palavra direta, clara e sempre lúcida de Casaldáliga será a protagonista principal, acompanhada ao piano pelo músico Carles Cases e acochegada por dezenas de testemunhas que trabalharam com ele e que o conheceram profundamente, do mundo todo.
Casaldáliga foi uma das referências mais importantes na luta pela terra e a favor dos Povos Indígenas da Amazônia. Desde sua morte em 8 de agosto e devido à pandemia, as entidades convocadoras não puderam se despedir deste claretiano internacional como gostariam. Portanto, uma vez que as restrições o permitem, e coincidindo com a véspera de São Pedro, este ato de memória será realizado aberto ao público.
Devido à situação atual, haverá ainda limitações de capacidade, mas o evento completo poderá ser acompanhado ao vivo no site da Fundação Pedro Casaldáliga (www.fperecasaldaliga.org), em sua conta no Facebook e no canal YouTube da Prefeitura Municipal de Barcelona.
Em 26 de março de 2021, o plenário da Prefeitura Municipal de Barcelona aprovou por unanimidade a entrega da Medalha de Ouro pelo Mérito Cívico, postumamente, a Pedro Casaldáliga “em reconhecimento à sua luta permanente contra os abusos de poder e a exploração, e pelo seu firme compromisso com a justiça social, a igualdade e a dignidade dos Povos Indígenas”.
Fundação Pedro Casaldáliga
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por Administrador/a | 7 jun, 2021 | A vida de Pedro Casaldáliga
Com maior ou menor lucidez, com uma lógica vital mais ou menos consistente, faz tempo que descobrimos a sociedade como um sistema, dentro da estrutura que nos envolve e nos condiciona, sob a inevitável solicitação da conjuntura diária.
A Igreja, boa conhecedora da eternidade e menos conhecedora da história, durante séculos, muitas vezes, considerou apenas às pessoas ou os indivíduos; ou, ainda mais dicotomicamente, às vezes só considerava as almas…
Sem nunca deixar de enfrentar aquela globalidade estrutural na qual a história humana é forjada e dentro da qual o Reino acontece, devemos agora redescobrir, de forma comprometida, a pessoa, membro da sociedade e protagonista da história e do Reino.
O homem e a mulher são seres estruturados e estruturantes. A história, o sistema e o Reino o fazem, mas, por sua vez, ele faz o sistema, a história e o Reino.

Em nossa América Latina, por exemplo, hoje acordando convulsivamente para a segunda libertação total, dois grandes homens marxistas proclamaram, com suas palavras e com suas vidas – e com sua morte-, a utopia do novo homem, o sonho incontrolável do “homem da manhã” : Ché e Mariátegui. E na revista “Amanecer” de março e abril deste ano de morte e Graça de 1982 acabo de ler um trecho do premiado livro do comandante sandinista, Omar Cabezas, sobre “o olhar do novo homem” e “o novo homem que está na montanha…”. [Casaldáliga se refere à obra disponível AQUI.]
A reflexão e a experiência de uma espiritualidade de libertação na América Latina (no Terceiro Mundo, no mundo em geral, creio sinceramente), deve ter como consideração e exigência básica a utopia necessária do novo homem.
Há dias estou tentando esboçar, para mim mesmo, os traços fundamentais do novo homem. E essa tentativa é o que ofereço agora, como uma contribuição gaguejante ao livro da DEI sobre “Espiritualidade e Libertação na América Latina”.
Nossos teólogos, nossos sociólogos, nossos psicólogos e nossos pastores dirão sua palavra principal, cientificamente. E nossos santos e nossos mártires tornarão realidade – eles já o estão fazendo com uma grande efusão – a face latino-americana do novo homem.
As características do novo homem seriam, em minha opinião:
1. A LUCIDEZ CRÍTICA
Uma atitude de crítica “total” aos supostos valores, mídia, consumo, estruturas, tratados, leis, códigos, conformismo, rotina…
Uma atitude de alerta, impossível de subornar.
A paixão pela verdade.
2. A GRATIDÃO ADMIRADA, DESLUMBRADA
A gratuidade contemplativa, aberta à transcendência e acolhedora do Espírito. A gratuidade da fé, o viver da Graça. Viver em um estado de oração.
A capacidade de ficar maravilhado, de descobrir, de agradecer.
Amanhecer todos os dias.
A humildade e a ternura da infância evangélica.
O maior perdão, sem mesquinhez e sem servidão.
3. A LIBERDADE DESINTERESSADA
Ser pobre para ser livre diante do poder e das seduções.
A livre austeridade daqueles que estão sempre em peregrinação.
Uma morigerada vida de combate.
A liberdade total daqueles que estão dispostos a morrer pelo Reino.
4. A CRIATIVIDADE EM FESTA
A criatividade intuitiva, desinibida, bem humorada, lúdica, artística.
Viver em estado de alegria, de poesia, de ecologia.
A afirmação de autoctonia.
Sem repetições, sem esquemas, sem dependências.
5. A CONFLITIVIDADE ASSUMIDA COMO MILITÂNÇA
A paixão pela justiça, em espírito de luta, pela paz verdadeira.
A teimosia incansável.
A denúncia profética.
A política, como missão e como serviço.
Estar sempre definido, ideologicamente e experiencialmente, do lado dos mais pobres.
A revolução diária.
6. A FRATERNIDADE IGUALITÁRIA
A igualdade fraterna.
O ecumenismo, por cima da raça e da idade e do sexo e do credo.
Conjugar a mais generosa comunhão com a salvaguarda da própria identidade étnica, cultural e pessoal.
A socialização, sem privilégios.
A verdadeira superação econômica e social das classes que existem, para o surgimento de uma única classe humana.
7. O TESTEMUNHO COERENTE
Ser o que se é. Falar o que se acredita. Acreditar no que se prega. Viver o que se proclama. Até as últimas conseqüências e nas minúcias diárias.
A disposição habitual para o testemunho do Martírio.
8. A ESPERANÇA UTÓPICA
Histórica e escatológica. Desde o hoje para o amanhã. A esperança credível das testemunhas e construtores da ressurreição e do Reino.
É sobre utopia, a utopia do Evangelho. O homem novo não vive apenas de pão; ele vive de pão e de utopia.
Apenas os homens novos podem fazer o mundo novo. Penso que estes traços correspondem aos traços do Homem Novo Jesus. Foi assim que Ele viveu utopicamente; foi assim que Ele ensinou em Belém, na Montanha e na Páscoa; foi assim que Seu Espírito, derramado em nós, nos configurou com cuidado.
Publicado no livro “Experiência de Deus e Paixão pelo Povo. Escritos Pastorais”, em 1983.
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por Administrador/a | 18 abr, 2021 | As causas de Pedro Casaldáliga
Uma das lutas mais intensas e significativas dos Povos Indígenas em todo o Brasil foi a retomada da Terra Indígena Marãiwatsédé, em Mato Grosso, ocorrida em 2012 após mais de 50 anos de luta.
Em 1965, famílias Xavante foram retiradas a força de suas terras ancestrais pelo governo militar, e levadas em aviões da Força Área Nacional (FAB) para a Missão Salesiana São Marcos. O grupo agrícola Ometto — da família da gigante sucroalcooleira Cosan — tomou a área. Em decorrência dessa remoção forçada, faleceram mais de 150 indígenas e as famílias do Povo Xavante de Maraiwãtsédé foram separadas.
[…] E os brancos começaram a se aproximar para roubar a terra. Então, cada vez mais, eles chegavam. A nossa tradição era dividir aldeia, porque o espaço era grande. Já estava perto de abare’u fazer a cerimônia, mas quando os brancos já estavam próximos o nosso uuu não tinha feito a cerimônia. Daí começou a encurralada atrás da terra. Eles eram espertos.
Tserewa’waDepoimento ao MPF
As terras dos Xavante foram vendidas posteriormente a holdings internacionais do agronegócio, como a italiana Agip Petroli, que explorava a fazenda Suiá-Missu, construída sobre a deportação. Segundo explica Pedro Casaldáliga em sua Carta Pastoral de 1971, a Fazenda Suiá-Missu possuía cerca de 695 mil hectares na década de 70, «extensão que superava a do próprio Distrito Federal».
Durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente de 1992, celebrada no Rio de Janeiro, os Xavante pressionaram as autoridades nacionais e internacionais e o presidente da Agip, Gabriele Cagliari, -que cometeria suicido pouco depois em uma prisão da Itália, acusado de corrupção, se comprometeu publicamente a devolver a área dos Xavante.
Porém, como relatava o jornal italiano La Repubblica em 1993: «o sonho dos Xavante, expulsos de suas terras em 1966, permaneceu um sonho. Os 168 mil hectares da fazenda Suia Missu, no Mato Grosso, um ano depois, ainda são de propriedade da Agip Petroli».
O litigio com os Xavante ainda permaneceu sob a inação do governo brasileiro por mais de 5 anos, até que a Terra Indígena Marãiwatsédé foi homologada pelo presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, em 1998.

Antes disso, porém, o poder público de São Félix do Araguaia e alguns fazendeiros da região incentivaram 2 mil posseiros a invadirem a área. O conflito tornou-se iminente: Em 2004, houve notícia de que três fazendeiros invasores da terra haviam contratado um pistoleiro para matar dom Pedro Casaldáliga. Mesmo ameaçado, recusou escolta policial e continuou seu trabalho pastoral e social normalmente, dizendo que só a aceitaria quando todos os camponeses tivesses direito a ela.
Ao longo de 50 anos de exilio forçado, os Xavante foram constantes em defender os seus direitos. Quando foram expulsos, deportados — esta é a palavra, eles foram deportados —, seguiram vinculados a esse terreno, vinham todos os anos recolher pati, uma palmeira para fazer os enfeites.
Os Xavante sempre reivindicavam a terra onde estão enterrados seus velhos. E tiveram sempre presente a sua terra.
“A Terra Marãiwatsédé está em nossos corações”
Nos últimos meses de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) ordenou a remoção dos invasores e a entrada efetiva do Povo Xavante na Terra Indígena Marãiwatsédé. No dia 7 de novembro de 2012 começaram a entregar no local as notificações que pedian a saída dos invasores. Finalmente, após quarenta e seis anos de exilio, os Xavante tiveram definitivamente reconhecido o direito a seu território.
A saída dos invasores, porém, não seu de forma pacífica e foi necessária a intervenção da Força Nacional para poder retirar as pessoas que permaneciam na área. Houve enfrentamentos organizados com a policia e atos vandálicos para destruir (ainda mais) a terra dos indígenas. Por causa desse conflito, Pedro Casaldáliga teve que abandonar a sua casa em São Félix do Araguaia devido às ameaças de morte que recebeu.
Marãiwatsédé hã
Tôtsena ti’a na watsiri’ãmo Wahõiba duré
Höiba-téb’ré hã, Ãhawimbã Date itsanidza’ra hã
Ahãta te Oto aimatsa’ti’ a na Ítémé we’re’iwadzõ
mori hã adza Oto ãma wawa’utudza’rani
Ti’a’a’a’ana… Ai’uté hã ãma ipótódza’ra hã
Tedza Oto ãma tsitébrè ti’a’a’a’ana.
A Terra Marãiwatsédé está em nossos
corações e em nossas almas
Ainda pequenos nos retiraram deste lugar
Mas hoje reconquistamos nossa terra,
nosso lar Agora de volta vou descansar nesta terra,
nesta terra, nesta terra…
Aquí eu nasci e nesta terra vão se criar nossas crianças
Marcio Tserehité Tsererãi’ré
A terra que os indígenas retomaram, no entanto, era bem diferente daquela da qual foram retirados à força: em 2012, pelo menos dois terços dos 165 mil hectares da reserva haviam sido desmatados por madeireiros, fazendeiros e posseiros. Marãiwatsédé chegou a liderar o ranking de terras indígenas mais desmatadas do país.
Marãiwatsédé, que foi o lar farto dos Xavante por séculos, enfrenta hoje o desafio vital da escasez de alimentos, da falta de água, dos solos degradados por causa do desmatamento e, ainda, as invasões pontuais e os incêndios criminosos que, ainda hoje, se registram na área.
Porém, aos poucos e sempre em luta, os Xavante estão conseguindo viver em sua terra ancestral e estão construíndo aldéias e se organizando. Mais de 1.200 indígenas moram hoje nas terras de Marãiwatsédé.
O caminho é longo e vai ser muito difícil. As ameaças não faltam.
Mas, o Povo Xavante de Marãiwatsédé não tem medo. Para eles, a esperança sempre vence!
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por Administrador/a | 2 abr, 2021 | A vida de Pedro Casaldáliga
MARÇO DE 1985
Semana Santa. De noite, imensa, a lua cheia entre as exuberantes árvores de Luciara. E pancadas de chuva e um silêncio assustador. Bancos de peixes sobem o Araguaia e a pesca é feita, nestes dias, como uma brincadeira fácil. Vamos celebrar a Ceia do Senhor.
“Meu presbitério”, disperso, cada padre no meio de suas comunidades, todos longe. Eu, bispo apesar de tudo, com eles, com todo este povo de Deus no sertão. Cristão como todos; querendo ser Bispo de todos eles. Esta é minha herança nesta pátria que o Espírito tem me designado.
Aqui, em Luciara, hoje consagrei os santos óleos. Digamos que onde está o bispo, lá está a sua catedral.
Um moço, já homem, me pergunta em nome de seus companheiros se “faz mal” jogar baralho hoje, em casa, só para matar o tempo, nessa abstinência total de bares, bilhar e música. Com os peixes da abstinência – aqui tão próximos – também se comem hoje, ritualmente, batata-doce e abóbora, banhadas em leite de coco.
A meninada – com as velas e os mosquitos, as poças de lama e a penumbra das ruas – e outros menos jovens também, tumultuam o Via Cruscis da rua.
A Vigília Pascal será às margens do Araguaia. Uma alta fogueira sob a lua íntegra. A água do rio numa bacia karajá e o círio e as velas, a luz de Cristo e sua Eucaristia, a nova Páscoa, a nossa Páscoa. Levei a comunhão para onze doentes, vários deles já no limiar da paz. E amanhã será “aquele dia que o Senhor fez” para sempre.
A solidão e a simplicidade tornam a fé acessível. E a dor do mundo torna a Páscoa apaixonadamente desejável.
Nesta parede nua de nossa casa de missão – as velhas palhas e os morcegos – o Cristo de Dalí, visto do Pai, se lança, oferecido, sobre o mundo. E o mundo é um caos de nuvens, talvez de mar, relato da primeira criação; mas a luz do Crucificado já irrompe nele – lembrança do Dia. Outra luz, talvez a fé, vem do mundo e estende generosamente o braço esquerdo de Cristo em uma sombra sem fim, como o perdão, como a caridade.
Nas margens do Araguaia, abençoamos o novo fogo da Páscoa e a água batismal. A lua nos preside como uma imensa clarabóia. E na procissão de velas e cantos e no pote karajá caminhamos até a igreja para celebrar a Eucaristia da Vigília Maior.
Eu carreguei o círio pascal, para aprender a ser um servo diácono, talvez. De repente, uma ventada apagou o círio e quase todas as velas da procissão. Mas ao meu lado, como um símbolo evangélico, uma menina cotinuou com a sua vela acesa, e devolveu a luz ao bispo e a toda a comunidade.
Pedro Casaldáliga, 1985
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por Administrador/a | 24 mar, 2021 | A vida de Pedro Casaldáliga
Eu deveria estar aí… e estou: de alma inteira. Esta pequena Igreja de São Félix do Araguaia tem você muito presente, irmão. Você está visível no meu quarto, na capela do quintal, em nossa catedral, em muitas comunidades, no Santuário dos Mártires da Caminhada Latinoamericana. Até quando cai uma manga sobre o telhado eu me lembro do sobressalto que você sentia quando caiam as mangas sobre seu retiro do Hospitalito.
No mês de março de 1983 eu escrevia em meu diário:
«Não consigo entender de jeito nenhum, ou até o entendo demais: A fotografia do mártir Monsenhor Romero com João Paulo II, nos cartazes mais do que normais para a visita do Papa, tem sido proibida pela comissão mista Governo-Igreja de El Salvador. A imagem do mártir dói. Ao Governo, perseguidor assassino; e é natural que lhe doa; que doa à certa Igreja… também é natural, tristemente natural.
De todos modos, nós, aqui, neste recanto do Mato Grosso, e muitos cristãos e não cristãos da América e do Mundo, vamos celebrar outra vez, neste mês de março, o martírio de São Romero, bom pastor da América Latina.
A tua imagem nos conforta, nos compromete e nos une; como uma versão entranhável do Bom Pastor Jesus.
Você ressuscitou em seu povo, que não vai permitir mais que o império e as oligarquias continuem a submetê-lo, nem vai se deixar levar pelos revolucionários arrependidos o pelos eclesiásticos espiritualizados.
E agora estamos aí, milhões, de muitas maneiras, celebrando o jubileu do seu testemunho definitivo, aquela homilia de sangue que ninguém fará calar. Você tem poder de convocação, um poder macroecumênico de santo dos católicos e dos evangélicos e até dos ateus. Estamos aí celebrando, reparando, assumindo. Você é muito comprometedor, na linha de Jesus de Nazaré: esse Jesus histórico que tantas vezes se dilui para nós em dogmatizações helenísticas e em espiritualismos sentimentais, o Jesus Pobre solidário com os pobres, o Crucificado com os crucificados da História.
Você tinha razão, e isso queremos celebrar também, com júbilo pascal. Você ressuscitou em seu povo, que não vai permitir mais que o império e as oligarquias continuem a submetê-lo, nem vai se deixar levar pelos revolucionários arrependidos o pelos eclesiásticos espiritualizados. E você ressuscita nesse Povo de milhões de sonhadores e sonhadoras que acreditamos que outro Mundo é possível e que é possível outra Igreja.
Porque do jeito que hoje estão, Romero irmão, nem o Mundo vai e nem vai a Igreja. Continuam as guerras, agora até preventivas; continuam a fome, o desemprego, a violência –do Estado ou da multidão enlouquecida–; continuam as falsas democracias, o falso progresso, os falsos deuses que dominam com o dinheiro e a comunicação, com armas e a política.
Passamos da Segurança Nacional à segurança do capital transnacional, e das ditaduras militares à macro ditadura do império neoliberal.
E continua havendo muita Igreja muda. Passamos da Segurança Nacional à segurança do capital transnacional, e das ditaduras militares à macro ditadura do império neoliberal.
São também os 25 anos da Conferência de Puebla. Aqueles rostos, Romero, que são o próprio rosto de Jesus ‘destazado’, têm se multiplicado em número e em deformação. Aquelas revoluções utópicas –belas e atordoadas como uma adolescência da História– têm sido traídas por uns, desprezadas olimpicamente por outros e continuam sendo saudosas –de outro modo, mais ‘al suave’, com jeito, em maior profundidade pessoal e comunitária– por muitas e muitos dos que estamos aí, com você, pastor do ‘acompanhamento’, companheiro de pranto e de sangue dos pobres da Terra. Como estamos necessitando hoje que você ensine aos pobres a ‘se encorpar’, a fazerem se corpo, em solidariedade, em organização, em teimosa esperança!
Com você, dizia o mestre mártir Ellacuría, “Deus passou por El Salvador”, por todo o nosso Mundo. E o teólogo de fronteira José María Vigil fez de você três rotundas afirmações que são, mais do que verdades para crer, desafios de urgência para assumir:
• «Romero: símbolo máximo da opção pelos pobres e da teologia da libertação.
• Romero: símbolo máximo do conflito da opção pelos pobres com o Estado.
• Romero: símbolo máximo do conflito da opção pelos pobres com a Igreja institucional».
Não é que você deixasse de ser ‘institucional’ e comportado. Sempre me admirou em você a aliança da disciplina com a liberdade, da piedade tradicional com a Teologia da Libertação, da profecia mais ousada com o perdão mais generoso.
Você era um santo se fazendo, em constante processo de conversão. De você tem se repetido com edificação que era você um bispo convertido. Com Deus e com o Povo, sem dicotomias.
Você nos avisa de que «aquele que se compromete com os pobres terá que percorrer o mesmo destino que os pobres: ser desaparecidos, ser torturados, ser capturados, aparecer cadáveres»
Sua homilia do 23 de março de 1980, véspera da oblação total, você a intitulou precisamente assim: «A Igreja a serviço da libertação pessoal, comunitária, transcendente».
Recordamos você tanto porque necessitamos de você, Romero, irmão exemplar.
Você nos anima, você continua a nos pregar a homilia da libertação integral. Você continua gritando «cesse a repressão», a todas as forças repressivas na Sociedade, nas Igrejas, nas Religiões. Você nos avisa de que «aquele que se compromete com os pobres terá que percorrer o mesmo destino que os pobres: ser desaparecidos, ser torturados, ser capturados, aparecer cadáveres», e nos lembra que, comprometendo-nos com as causas dos pobres, não fazemos mais do que «pregar o testemunho subversivo das Bem-aventuranças, que tudo reviram».
Sua memória não é simplesmente saudade nem uma veneração sacralizada que fica no ar do incenso. Queremos que seja, vamos fazer que seja, compromisso militante, pastoral de libertação.
Você confiava –e não vamos defraudar você– que «em quanto houver injustiça haveria cristãos que a denunciassem e que se poriam da parte das vítimas» dessa injustiça.
Seu sangue, irmão, como você pedia é verdadeiramente «semente de liberdade».
Sua memória não é simplesmente saudade nem uma veneração sacralizada que fica no ar do incenso. Queremos que seja, vamos fazer que seja, compromisso militante, pastoral de libertação.
Nosso teólogo, o teólogo dos mártires, Jon Sobrino, resume assim a tarefa evangelizadora e política que, por fidelidade à memória de você, nos demanda hoje o Reino: Enfrentar a realidade com a verdade; analisar a realidade e suas causas; trabalhar pela mudança estrutural; levar a bom termo uma evangelização madura, libertadora, crítica e autocrítica; construir a Igreja como Povo de Deus; dar esperança a esse Povo que tanto sofre…
Esta semana do seu jubileu, em San Salvador, acabará sendo um sínodo popular, um encontro de aspirações e compromissos dentro desse processo conciliar que estamos vivendo, uma grande vigília pascal em torno a você e a tantas testemunhas fieis, conhecidas ou anônimas, mas todas luminosas no Livro da Vida, seguidores e seguidoras até o fim da suprema Testemunha Fiel.
Seguiremos falando, irmão Romero. Todo dia. Você acompanhando-nos da Paz total, pelo caminho árduo e libertador do Evangelho. Tantas vezes nos sentimos como os discípulos de Emaús, defraudados, sem rumo, porque ‘pensávamos que…’
«Estamos outra vez em pé de testemunho», eu dizia a você naquele meu poema. E estamos mesmo. Somos do grande Fórum Social Mundial, com o Evangelho e pelo Reino, indo para outro Mundo possível, para outra Igreja –de Igrejas unidas e libertadoras–, para outra Pátria Grande, Nossa América do Caribe e do Sul e da entranhável América Central; com um Norte outro, irmão também por fim, dês-imperializado.
Estão-nos anunciando a V Conferência Episcopal Latinoamericana, possivelmente para o 2007 e esperamos que seja na América Latina. Você ajude a prepará-la, irmão. Façam celestiais horas extras todos os santos e santas da Nossa América para que essa Conferência seja um Medellín, e atualizado.
Seguiremos falando, irmão Romero. Todo dia. Você acompanhando-nos da Paz total, pelo caminho árduo e libertador do Evangelho. Tantas vezes nos sentimos como os discípulos de Emaús, defraudados, sem rumo, porque ‘pensávamos que…’
A tua carta, Romero, que guardamos em nosso arquivo, timbrada como «relíquia», reza assim:
«… Querido irmão no episcopado:
Com profundo afeto agradeço lhe sua fraternal mensagem pela pena da destruição da nossa emissora.
Sua calorosa adesão alenta consideravelmente a fidelidade à nossa missão de continuarmos sendo expressão das esperanças e angústias dos pobres, alegres por corrermos como Jesus os mesmos riscos, por nos identificarmos com as causas justas dos despossuidos.
Á luz da fé, sinta-me estreitamente unido no afeto, na oração e no triunfo da Ressurreição.
Oscar A. Romero, Arcebispo».
Sua última palavra escrita, e assinada com sangue, não podia ser mais cristã.
Querido São Romero da América, irmão, pastor, testemunha: Você vivia e dava a vida porque acreditava de verdade no «triunfo da Ressurreição». Ajude-nos a crermos de verdade nesse triunfo, para vivermos e darmos a vida como você, com os pobres da Terra, seguindo o Crucificado Ressuscitado Jesus.
Pedro Casaldáliga, 24 março de 2005
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