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Desse jeito foi a ordenação episcopal de Casaldáliga

Desse jeito foi a ordenação episcopal de Casaldáliga

O Pedro nunca quis ser bispo. Nunca gostou da ideia de fazer parte da ierarquia da igreja. Por isso, a primeira reação dele ao receber a comunicação de sua nomeação episcopal foi dizer “não”. Porque aceitou?

Fazia apenas 3 anos que tinha chegado ao povoado de São Félix do Araguaia, onde aos poucos, estava construindo uma comunidade eclesial fixa. Uma “missão” na Amazônia, ao nordeste do Mato Grosso, na divisa com o Pará e o Tocantins.

Casaldáliga chegou no Araguaia em julho de 1968, acompanhado de Manuel Luzón, os dois da Congregação dos Claretianos. Após uma breve passagem por São Paulo, chegaram na Amazônia depois de uma semana de caminhão.

A tarefa principal de estruturar uma igreja estável na região deparou-se rápidamente com a realidade: uma região de migrantes, vindos de muitas partes do Brasil atraídos pelas “políticas de colonização da Amazônia”.

 

Arribada de Casaldàliga i Manuel Luzón a São Félix do Araguaia

Aquesta és la primera fotografia que tenim de l’arribada de Casaldàliga i del seu company claretià Manuel Luzón a la regió de l’Araguaia el 1968.

 

Situada a mais de 1.200Km da capital do Estado, Cuiabá, a escassa presença do Estado condenava seus habitantes a ausência de qualquer serviço de saúde ou educacional. A estrutura fundiária, caracterizada pelas fazendas que chegaram a ter o tamanho de estados determinava uma sociedade rasgada no meio: de um lado, os grandes latifundiários, seus capatazes e seus “capangas”. Do outro, como explicava o próprio Pedro Casaldáliga:

 

«Camponeses nordestinos, vindos diretamente do Maranhão, do Pará, do Ceará, do Piauí…, ou passando por Goiás. Desbravadores da região, “posseiros”. Povo simples e duro, retirante como por destino numa forçada e desorientada migração anterior, com a rede de dormir nas costas, os muitos filhos, algum cavalo magro, e os quatro “trens” de cozinha carregados numa sacola».

Pedro Casaldáliga

 

Pere Casaldàliga a una comunitat indígena de l'Araguaia

La parella Luiz Gouveia i Eunice Dias de Paula van ser uns dels primers a arribar el 1973. Van viure amb els indígenes de Tapirapé i encara avui hi viuen. Han fet de professors bilingües al poblat indígena, ajudant en la formació dels professors indígenes i, per això, són en molta part responsables del fet que la llengua Tapirapé encara existeixi.

 

Chegamos a um mundo sem volta. A Missão possuía 150.000 quilômetros quadrados de rios e sertões e florestas, ao noroeste do Mato Grosso, dentro da Amazônia denominada “legal”, entre os rios Araguaia e Xingu, incluindo também a Ilha do Bananal, a maior ilha fluvial do mundo.

Sem outra “base” eclesiástica que a nossa casa, de 4×8, às margens do Araguaia, maravilhoso e turbo, sem saber por onde começar, sem saber quem habitava a região, onde as distâncias de todas as espécies justificavam todas as indecisões.

A única estrada que existia ainda estava se abrindo, vermelha e empoeirada, na selva e nos campos abertos que acabamos de atravessar, e a “onça” materialmente concreta tinha todo o direito de cortar a estrada em frente ao caminhão.

Havia apenas um médico na área, não havia correio, eletricidade, telefone, telégrafo, havia 3 jipes antigos por todo São Felix e eram os únicos carros no local.

Pedro Casaldáliga

 

Pedro faz o compromisso radical

 

Em pouco tempo, a problemática da terra, a pobreza e a violência contra peões e posseiros impactaram Casaldáliga e a sua equipe. Nos primeiros anos, enterraram centenares de trabalhadores rurais “muitas vezes sem nome” que tentavam sobreviver naquela terra. Foi lá que decidiram se comprometer radicalmente com o povo.

 

Mato Grosso foi, ainda é, um terra sem lei. Alguém o classificou como o «Estado curral» do país. Não encontramos nenhuma infraestrutura administrativa, nenhuma organização trabalhista, nenhuma inspeção. O Direito era a lei do mais forte. O dinheiro e o 38. Nascer, morrer, matar, eram os direitos básicos. Verbos conjugados com incrível facilidade.

Pedro Casaldáliga, 1971

 

A construção de uma igreja organizada e estruturada, começou primeiro com o atendimento das necessidades mais básicas: a saúde e a educação foram a prioridade. Como celebrar missa e administrar os sacramentos sem se comprometer ao mesmo tempo com as necessidades das famílias?

Aos poucos, conseguiram construir uma pequena escola (que, depois, daria luz a um projeto pedagógico que se tornaria referência da educação popular na Amazônia); organizaram um posto de saúde básica; fizeram de enfermeiros e…, nessa ação, se comprometeram a favor dos «posseiros» e se posicionaram contra o latifundio.

Uma igreja que rezava, que celebrava missa e administrava os sacramentos como qualquer outra, mas que se comprometia radicalmente na defesa dos mais pobres: posseiros, peões, ribeirinhos e Povos Indígenas. Nunca houve imposições nem intenção de evangelizar, no sentido antigo, arcaico, colonialista, da palavra.

 

Uma consagração bem diferente

 

Em julho de 1971, Casaldáliga recebeu a carta do Vaticano nomeando-o bispo. A resposta dele, de renuncia taxativa ao cargo, estava escrita e iria ser entregue ao Nuncio. Porém, reunidos a equipe pastoral junto ao Bispo Dom Tomás Balduíno, decidiram que Casaldáliga tinha que aceitar.

Era a única chance de dar voz aos sem voz; de fazer com que a situação nas fazendas fosse conhecida; de chamar a atenção internacional sobre uma problemática que o Brasil escondia. Ser uma “autoridade” da Igreja era a única opção para poder denunciar e não ter tantas represalias. A aceitação era obrigada.

Assim sendo, em decisão conjunta, o dia 23 de outubro, depois de uma tentativa de assassinato que falhou por pouco, Pedro Casaldáliga seria ordenado Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia.

«Ao ar livre, à beira do rio Araguaia», Pedro foi ordenado por Dom Fernando Gomes dos Santos, Arcebispo de Goiânia, Dom Tomás Balduino, bispo da Diocese de Goiás e Dom Juvenal Roriz, bispo de Rubiataba, GO.

Imatge d’un dels moments de l’ordenació episcopal de Casaldàliga. La celebració va ser a l’aire lliure i va assistir-hi tota la gent de São Félix do Araguaia.

 

Naquela noite de 23 de outubro de 1971, a abóbada celeste, as águas do Araguaia e todos nós que lá estávamos fomos testemunhas de que algo novo acontecia. Um bispo recusava as marcas do poder para mergulhar totalmente na vida do povo.

Antônio Canuto
Agente de Pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia

 

No cartão-lembrança de sua ordenação, Pedro declarava o bispo que seria:

«Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo; o sol e o luar; a chuva e o sereno,
o olhar dos pobres com quem caminhas, e o olhar glorioso de Cristo, o Senhor.
Teu báculo será a verdade do Evangelho e a confiança do teu povo em ti.
O teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador e a fidelidade ao povo desta terra.
Não terás outro escudo que força da Esperança e a Liberdade dos filhos de Deus;
nem usarás outras luvas que o serviço do Amor.»

 

Targeta original de record que es lliurà als presents a l’Ordenació Episcopal de Casaldàliga, al riu Araguaia, el 23 d’octubre de 1971

 

A primeira denuncia mundial sobre a situação da Amazônia

 

no mesmo dia de sua sagração episcopal que publicou o documento que é um “um dos mais importantes da história da luta pela terra no Brasil”.

Mais de 80 páginas com dados estatísticos, referências e análises em que se colocava a gravidade da situação da Amazônia. O documento também apontava nomes de empresas e de responsáveis e relatava casos concretos. O documento de Casaldáliga fez que, pela primeira vez, o Brasil soubesse que havia trabalho escravo, exploração e assassinatos por conflitos de terra.

 

Jornais do Brasil relatam o impacto da carta

L’impacte del document de Casaldàliga, ara bisbe, va ressonar a tot Brasil

 

Na noite do dia em que assinei o documento – era noite de «luar» – saí para ver a grande lua, respirar o ar mais frio e me oferecer ao Senhor. Senti então que, com o documento, eu também poderia ter assinado a minha própria pena de morte; pelo menos, acabava de assinar um desafio.

De fato, alguns dias depois começou a chegar o aviso de um dos maiores proprietários de terras e garimpeiros do Brasil, tantas vezes depois repetido por muitos outros proprietários de terras, vozes eclesiásticas, «amigos»: não era para eu entrar nessas questões porque eles poderiam me acusar de subversivo; de fato, a polícia federal estava nos controlando; o vice-delegado de São Félix era um agente; o fazendeiros iriam me processar; etc.

Pedro Casaldáliga

 

Não havia volta atrás: a Prelazia de São Félix do Araguaia e o seu recém consagrado Bispo, optava pelos pobres e se colocava contra o latifúndio. Em cada gesto, em cada palavra e em cada documento.

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Novo projeto: Equipamos o laboratório do Hospital Regional do Araguaia

Novo projeto: Equipamos o laboratório do Hospital Regional do Araguaia

A Fundação Pedro Casaldáliga, a Associação ANSA e o Consorcio Intermunicipal de Saúde iniciam um projeto que vai melhorar os atendimentos de mais de 20.000 pessoas na região do Araguaia.

 

A Fundação Pedro Casaldáliga, com apóio do Fundo Catalão de Cooperação, realiza um projeto para ampliar e melhorar o Hospital Regional de São Félix do Araguaia (CISA).

O centro é responsável por atender os municipios de São Félix do Araguaia, Alto Boa Vista e Luciara, onde vivem 20 mil pessoas, incluindo alguns Povos Indígenas.

O novo laboratório é ainda mais fundamental neste momento de pandemia pois o Brasil ultrapassa a os 600 mil mortos pela COVID19, sendo o segundo país do mundo em número absoluto de mortes, superado apenas pelos Estados Unidos.

A pandemia deixou um Brasil muito afetado, uma vez que tem atingido não apenas aqueles que tem sofrido a doença, mas toda a sociedade que tem vivido o sofrimento de familiares e amigos e, em muitos casos, a morte de seres queridos.

No Araguaia é, portanto, fundamental investir em métodos diagnósticos que permitam identificar doenças o mais rápido possível e assim prevenir contágios ou o agravamento de situações de saúde para a população.

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5 singularidades da Prelazia (diocesi) de Casaldáliga

5 singularidades da Prelazia (diocesi) de Casaldáliga

A Prelazia de São Félix do Araguaia foi criada aos 13 de maio de 1969 pela Bula Quo Commodius do Papa Paulo VI. Foi confiada pela Santa Sé aos cuidados da Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria (Claretianos). No primeiro momento, Pedro Casaldáliga foi nomeado Administrador Apostólico dessa nova “diocesi”, até que em 1971 foi consagrado Bispo.

Estas são algumas das chaves principais para conhecer essa igreja particular que se tornaria referência mundial da luta pela Justiça.

 

1. Do tamanho de um país

 

A Prelazia de São Félix do Araguaia ocupa uma área de quase 130.000Km2 dentro da Amazônia Legal, no nordeste do estado de Mato Grosso, na divisa com o Pará e o Tocantins. Está encravada entre os rios Araguaia e Xingu e lhe faz como espinha dorsal, de Sul a Norte, a Serra do Rocandor.

Se a região fosse um estado da Federação, seria o décimo oitavo em extensão, uma vez que possui uma área maior que estados como o Pernambuco ou Santa Catarina. O espaço ocupado pela Prelazia de São Félix do Araguaia tem uma superfície maior do que países como o Portugal ou a Guatemala inteiros.

Os deslocamentos habituais para a vida estão marcados por esta realidade de enormes distâncias e infraestruturas precárias: uma consulta ao médico, um agendamento no banco ou uma visita familiar são, muitas vezes, sinônimo de 4, 6, 8,…10 ou até 24 horas de ónibus.

 

Pedro Casaldáliga, que viajava quase sempre de ónibus por toda a região, sempre dizia que «no ónibus se perde tempo, mas se ganha gente».

 

Mapa de região da Prelazia de São Félix do Araguaia

Mapa de região da Prelazia de São Félix do Araguaia

 

2. Na área de encontro de dois dos biomas mais biodiversos do mundo

 

A região que ocupa a Prelazia de São Félix do Araguaia tem o privilégio de testemunhar a rica transição de biomas do Cerrado para a Amazônia, o que lhe confere uma diversidade de formas de vida vegetais e animais única, que se espalha desde as savanas do Cerrado até a densa floresta amazônica.

É em meio essas paisagens deslumbrantes e diversas que a Prelazia de São Félix do Araguaia se situa. O Rio Araguaia majestoso e sua fauna selvagem, as baixadas alagadas com seus buritis, as florestas imponentes que anunciam a proximidade da Amazônia, esta é a Região do Araguaia. Em meio à fartura da transição do Cerrado para a Amazônia, a região apresenta diversas espécies nativas de frutas, ervas e cipós e o gosto popular por elas. São sabores únicos como a cagaita, a bacaba e a mangaba, que marcam a vida das comunidades locais e são parte da cultura dos Povos Indígenas.

 

O modelo de desenvolvimento construído sobre a base do latifundio e alavancado pela concentração de renda nas mãos de poucos tem levado à rápida depredação ambiental. Estima-se que tenha se desmatado uma área maior que os estados de Alagoas ou Sergipe ou que países como o Haití ou a Bélgica inteiros.

 

Porém, essas paisagens naturais cada vez mais têm disputado espaço com nuvens de queimadas, pastos monótonos e imensas plantações de soja. De fato, o modelo produtivo dominante é caracterizado pelo uso extensivo da terra com pouca ocupação de mão-de-obra para uma produção pouco diversificada e de baixo valor agregado, voltada para o mercado externo à região.

 

El latifundi condiciona tota la regió

As enormes plantações (sobretudo de soja) representam um crime ambiental e são causantes da perda da diversidade ecológica, social e cultural do Araguaia.

 

3. Terra de migrantes e mistura cultural

 

Araguaia Xingu é uma região situada na “porta de entrada” da Amazônia. Localizada entre dois dos maiores rios do Brasil, que lhe dão o nome, o Araguaia e o Xingu.

No inicio, povos indígenas como os Karajá, os Tapirapé ou os Xavante viviam principalmente da riqueza natural que existia. O povoamento do “homem branco” se deu a partir da década de 50-60, com grupos de nordestinos e goianos que chegaram espontaneamente pela ilha do bananal. Eles vinham com os seus animais, seus bois, aproveitando aquela riqueza de pastagens naturais. Essa imensidão de mundo, do tamanho de um país, podia albergar a todos, índios e posseiros, de maneira pouco conflitiva. A natureza era farta e generosa.

 

O sertanejo é a vítima da ganância alheia, da inconsciência dos patrões, da exploração dos trêfegos políticos que na região aparecem de eleição em eleição (…). Esse infeliz, sobejo das pragas e das verminoses, vive na penumbra de um futuro incerto. Indiferentemente a tudo, eles vão ganhando o pão de cada dia, pois para eles só existem dois direitos: o de nascer e o de morrer.

 

Pedro Casaldáliga, 1971

 

Migrantes em Santa Terezinha

Vindos no nordeste à procura de terra para viver, as famílias foram ocupando o Araguaia

 

A partir de 1950, porém, redefiniu-se a política de ocupação e colonização de Mato Grosso “visando a incorporação da fronteira agrícola da região à economia nacional” com a pretensão de absorver excedentes populacionais de outras regiões brasileiras como também ocupar terras através da colonização privada. Desta forma, o governo privilegiou a instalação de amplos latifúndios cujos proprietários eram, na maioria das vezes, empresários do Centro-Sul, convertendo o Mato Grosso no Estado que apresentou a maior concentração de projetos de colonização privada do Brasil.

 

As pessoas foram chegando daqui e dalí em busca de terra, de trabalho, de fartura, de vida. Os primeiros chegaram do Sul, depois de Goiás- Tocantins, Minas Gerais, de outras partes do Mato Grosso, do norte e nordeste, enfim, de todos os cantos. Atualmente, são cerca de 40 comunidades, sendo que a mais próxima dista 33 Km da sede do município (de Confresa) e a mais distante 110 Km.

 

Equipe Pastoral de Confresa.

Jornal Alvorada, Maio-Junho 2006.

 

A instalação dos latifúndios, os projetos de colonização e o crescimento dos serviços públicos atraíram pessoas de todas as regiões do Brasil que, aos poucos, foram ocupando a região. De fato, atualmente, convivem no Araguaia culturas muito diferentes como a dos gaúchos do sul, a dos nordestinos e, é claro, as diversas culturas de cada um dos Povos Indígenas do Araguaia.

 

4. Patrimônio Indígena

 

Entre os Rios Xingu e Araguaia moram 21 mil indígenas de 22 etnias diferentes em 16 Terras Indígenas.

No inicio, povos indígenas como os Karajá, os Tapirapé ou os Xavante viviam principalmente da riqueza natural que existia. O povoamento do “homem branco” se deu com grupos de nordestinos e goianos que chegaram espontaneamente pela Ilha do Bananal. Eles vinham com os seus animais, seus bois, aproveitando aquela riqueza de pastagens naturais. Essa imensidão de mundo, do tamanho de um país, podia albergar a todos, índios e posseiros, de maneira pouco conflitiva. A natureza era farta e generosa.

 

Há 500 anos que “o índio é aquele que deve morrer”. 500 anos proibidos para esses povos classificados com um genérico apelido, negadas as identidades, criminalizada a vida diferente e alternativa. 500 anos de sucessivos impérios invasores e de sucessivas oligarquias “herdeiras da secular dominação”. 500 anos sob a prepotência de uma civilização hegemônica, que vem massacrando os corpos com as armas e o trabalho escravo e as almas com um deus em exclusiva. Por economia de mercado, por política imperial, por religião imposta, por bulas e decretos e portarias pseudocivilizados e pseudocrístãos.

 

Pedro Casaldáliga

Apresentação do livro Povos Indígenas aqueles que devem viver: Manifesto contra os decretos de extermínio, do CIMI.

 

Desde meados do século XX, porém, a região do Araguaia foi sendo incorporada paulatinamente à dinâmica nacional: primeiro, através de uma migração espontânea de posseiros que atravessavam o Araguaia na procura de pastos, e depois, muito mais drasticamente, com a implementação de diversas “políticas de colonização” impulsionadas pelo Governo, que reconfiguraram definitivamente o perfil da região.

 

As irmazinhas de Jesus permanecem ainda junto ao Povo Tapirapé

Aldeia Tapirapé Tapi’itawa. Urubu Branco, Confresa. 1976

 

A Prelazia de São Félix do Araguaia teve um papel determinante para entendermos o indigenismo atual. Um caso paradigmático é a vida-missão das Irmãzinhas de Jesus que conviveram com o povo Tapi’itawa por mais de 50 anos sem qualquer tentativa de evangelização, de “conversão” e muito menos de integração e que possibilitou a sobrevivência desse povo no Araguaia.

Mas a ação local das irmazinhas e de tantos e tantas que dedicaram a sua vida à Causa Indígena teve uma dimensão nacional e internacional: seu compromisso, seu trabalho, a sua formação e a sua militância ativa estão no berço das políticas indigenistas modernas e das reivindicações indigenas que procuram a libertação.

 

5. “Não se esqueçam que aqui foi sangue”: Uma configuração social construída na luta

 

Na região da Prelazia de São Félix do Araguaia, os conflitos violentos e os maiores crimes ambientais envolvem sobretudo os povos indígenas e trabalhadores rurais, como são os recentes casos da Terra Indígena Marãiwatsédé, em Bom Jesus do Araguaia, ou a ocupação sistemática de áreas demarcadas e homologadas que se produz, por exemplo, na Terra Indígena Urubu Branco, entre Santa Terezinha, Porto Alegre do Norte e Confresa.

Ao mesmo tempo, a falta de políticas públicas realistas para apoiar a Agricultura Familiar (em uma região com 75 assentamentos) e a pressão do agronegócio dos grãos e do gado, condenam a maior parte das famílias do campo a uma economia de subsistência e à precariedade dos serviços mínimos essenciais: a saúde e a educação continuam sendo extremamente insuficientes.

 

Teodomiro Monteiros dos Santos morreu aqui, em São Félix, no dia 28 de julho (de 1970). Eu mesmo o enterrei. Veio da fazenda “Suiá-Missu”, num estado extremo de hepatite, já sem esperança nenhuma. Caso como tantos outros que deveria ter sido atendido muito antes e mandado para Goiânia ou Brasília.

 

Pedro Casaldáliga

Escravidão e feudalismo no norte do Mato Grosso. Setembro 1970

 

A Agricultura Familiar é uma ameaça ao modelo do agronegócio

A família da Dona Lena, no Assentamento Dom Pedro, luta a cada dia pela sua sobrevivência no campo.

 

Por esse motivo, hoje, o termo ‘conflitos pela terra adquiriu um significado muito mais amplo. Ele se refere não apenas aos tradicionais embates, por vezes deveras violentos, entre campesinos e latifundiários, ou entre militantes sem-terra e forças repressoras do Estado que se deram na região do Araguaia nas décadas de 70 e 80.

Hoje, o conceito engloba também impasses demarcatórios de terras indígenas e deslocamentos populacionais em função de megaprojetos governamentais ou empresariais, como, por exemplo, construções de grandes usinas hidrelétricas ou a implementação de grandes fazendas ou plantações de soja que forçam o deslocamento das famílias.

As lutas e a violência explícita do passado, sem terem ainda terminado, tem dado passo à pobreza e a marginalização estrutural do presente.

 

Um rapaz de São Félix contava profundamente chocado a impressão de ver os peões, alguns deles casados, pais de família, chorando à beira do Araguaia, em Santa Terezinha, e pedindo por compaixão uma passagem nos barcos, para sair longe da Companhias…

 

Pedro Casaldáliga

Escravidão e feudalismo no norte do Mato Grosso. Setembro 1970

 

Nesse sentido, conhecer verdadeiramente a região onde atua a Prelazia de São Félix do Araguaia implica, também, estarmos cientes de que a realidade atual é decorrente da luta entre forças opostas: de um lado, os pequenos agricultores, posseiros e indígenas; de outro lado, fazendeiros, grileiros, jagunços e o próprio estado, que se tem posicionado sempre ao lado dos grupos dominantes.

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Esse é o documento que mudou a Amazônia

Esse é o documento que mudou a Amazônia

No mesmo dia de sua ordenação como bispo, Pedro Casaldáliga publicou um extenso documento denunciando a situação de escravidão em que vivia a maioria dos camponeses da Amazônia. O documento também questionou a hierarquia da igreja e nomeou os opressores…. A repressão logo desceu sobre ele e sua equipe. Logo, porém, esse documento mudaria a história da Amazônia.

 

No mesmo dia em que foi consagrado bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, 23 de outubro de 1971, Pere Casaldàliga publicou a primeira denúncia global sobre a situação da Amazônia.

O documento “Uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social” se tornaria um documento histórico. Impresso clandestinamente e distribuído na mídia brasileira, o documento significou uma virada na reivindicação e defesa dos povos indígenas, das famílias camponesas, do meio ambiente, da situação das mulheres e da luta pela terra.

Pela primeira vez um bispo manifestava aberta e publicamente a sua posição sobre o que estava acontecendo na Amazônia. Mas, além de dar a sua opinião, ao longo de mais de 80 páginas, Casaldáliga fornecia dados, analisava estatísticas, citava casos concretos e ouvia testemunhas do que estava acontecendo. Finalmente, esse Brasil continental -que vivia de costas para a distante Amazônia conhecia a realidade de exploração e violência que estava sendo imposta naquela região.

Como disse Berta Camprubí em seu artigo Pedro Casaldáliga, 90: Un día en la casa del obispo de los pobres, publicado em El Periódico de Cataluña:

 

Naqueles anos, as terras de Mato Grosso eram dominadas por títulos de terra sobrepostos, herdados principalmente da Lei de Terras de 1850, que distribuía ilegalmente territórios indígenas ancestrais, criando grandes propriedades, algumas com até 7.000 quilômetros quadrados. Eram terras de pistoleiros, de abandono legal e institucional. Ali, a violência era o método pelo qual todos os conflitos eram resolvidos. Casaldáliga enterrou muitos camponeses sem terra e povos indígenas naquela época.

 

Do que tratava concretamente o documento

 

Ao longo de 80 páginas cheias de casos e análises sociológicas que haviam sido realizadas naquela região, o documento pastoral do Bispo Pedro (Carta Pastoral) analisava rigorosamente a situação de escravidão e violência em que viviam os povos e comunidades da Amazônia; denunciava os problemas ambientais que estavam começando a ser percebidos como tais; e, sobretudo, revelava, com nome e sobrenome, os responsáveis pelo genocídio de indígenas e posseiros que os latifundiários estavam realizando com a cumplicidade do governo militar brasileiro.

 

Os primeiros pioneiros na região são os chamados “posseiros”(pessoas que não têm título de propriedade de suas terras). Eles vivem aqui há 5, 10, 15, 20 e alguns até 40 anos. Cultivo com os métodos mais primitivos, plantio de arroz, milho, mandioca. Pura agricultura de subsistência. Criação de gado. Sem cuidados de saúde e higiene, sem proteção legal, sem meios técnicos disponíveis. Eles se reúnem em pequenas aldeias, chamadas “Patrimonios” (que o estado lhes deu como terras virgens – Santa Terezinha, Porto Alegre, Cedrolândia, Pontinópolis) ou dispersas no campo a uma distância de 12 a 20 km umas das outras.
Pedro Casaldáliga, 1971

 

Nos anos 60 e 70, a Amazônia era o vasto território com o qual a ditadura brasileira estava obcecada em “desenvolver“. Era o território “selvagen” desconhecido pela maioria da população. Uma área equivalente à metade de toda a Europa que o governo brasileiro pretendia dividir entre seus amigos e as grandes empresas que apoiavam o regime.

Naquela época, quando quase ninguém falava sobre a causa indígena; quando a preocupação com o meio ambiente não estava na mesa de discussão; e quando a pobreza dos trabalhadores rurais, muitas vezes escravizados, era um assunto distante de qualquer foco da imprensa ou da Igreja, esta Carta-Documento Pastoral de Casaldáliga sacudiu o país, revelando as vergonhas do Brasil e os abusos da ditadura. A repercussão nacional da Carta-Documento foi um ataque direto à propaganda da ditadura. Pela primeira vez, a crueldade da situação econômica, social e ambiental da Amazônia foi internacionalizada.

Qual foi o impacto do documento?

 

O documento teve que ser impresso fora da região do Araguaia e isso foi possível graças, entre outros, à fiel colaboradora de Casaldáliga, a Irmã Irene Franceschini. Com estas palavras Maritxu Ayuso explicava como foi transportado o original da Carta-Documento:

 

Aquela mulher que, no meio da ditadura, levou a primeira carta pastoral de Pedro Casaldáliga como bispo dentro de uma caixa embrulhada em um lenço em um avião militar! Quando lhe perguntaram o que estava carregando, ela respondeu “remédios, algumas roupas, coisas sem importância… se você quiser abrir…”

A carta-documento do bispo Pedro ecoou na maioria dos jornais e publicações no Brasil e provocou uma revolução em meio à repressão militar.

 

Repercussão da Carta-Documento de Casaldáliga na mídia nacional

Jornais do Brasil relatam o impacto da carta

 

Após vários meses de rumores e calúnias, ameaças de prisão, ameaças de morte, “visitas” da polícia e do exército federal, (…) na primeira semana de setembro, o Sr. Ariosto da Riva, pai e mentor dos latifundiários, acompanhado por um padre, apresentou-se ao Núncio no Rio [de Janeiro] para tentar impedir minha consagração [como bispo]…

 

Naquela época, os interesses econômicos e os amigos do regime estavam se repartindo o centro-oeste do país às custas dos povos indígenas e do meio ambiente, e um bispo como Casaldáliga estava perturbando e colocando o foco da mídia sobre a Amazônia. De fato, como afirma o sociólogo José de Souza Martins (1995), “o documento de Casaldáliga é um dos mais importantes da história social do Brasil”.

 

Em sua carta pastoral de 1971, Casaldáliga propõe uma nova maneira de ver a situação da Amazônia [superexploração e falta de direitos dos trabalhadores rurais], faz uma longa e dura denúncia e inicia um trabalho pastoral consistente na Prelazia que começa primeiro pela desnaturalização desta violência e depois pela construção de uma rede de solidariedade entre os trabalhadores migrantes e a igreja local. Lucilene Aparecida Castravechi. XXVII Simpósio Nacional de História. Natal 2013.

 

O impacto da Carta-Documento provocou também a reação da Igreja Católica.De um lado, muitos se colocaram contra a posição de Casaldáliga, mas do outro, aquela denúncia provocou que outros documentos do mesmo caráter começassem a aparecer em diferentes regiões brasileiras. Dos bispos do noroeste veio o texto “Ouvi os gritos do meu povo”, em 1973. No mesmo ano, os bispos e missionários da Amazônia publicaram o documento urgente Y-Juca-Pirama. O índio: aquele que deve morrer”.

Mas foi somente dez anos após a denúncia de Casaldáliga, em 1980, que a CNBB [Conferência Episcopal Brasileira] se expressaria oficialmente sobre a situação que se vivia na Amazônia, publicando o documento intitulado “Igreja e problemas da terra“.

Leia a carta-documento original

 

No link a seguir poderá ler a Carta-Documento original, que se conserva no Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia: “Uma Igreja da Amazônia me conflito como o latifundio e a marginalização social”.

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LANÇAMENTO: «Ventos de profecia na Amazônia»

LANÇAMENTO: «Ventos de profecia na Amazônia»

Qual é a relevância social, política e eclesial dos 50 anos da Prelazia de São Félix do Araguaia? Como um grupo de religiosos, religiosas e militantes confrontou os “donos de grandes latifúndios e o Estado ditatorial” e as “estruturas da própria Igreja”?

Conheça da mão de Antônio Canuto a organização interna, a ação política, a estrutura pastoral e o trabalho social que fizeram da Prelaiza de São Félix do Araguaia “uma referência obrigatória para a compreensão dos projetos econômicos e dos modelos de sociedade que estavam em disputa na Amazônia; bem como dos projetos eclesiais enfrentados”.

[Contato para venda: (62) 98640-0247]

 

«Desde seu nascedouro a Prelazia de São Félix colocou no centro de suas preocupações os graves crimes contra os povos indígenas, ribeirinhos, posseiros e outras populações tradicionais e a assustadora devastação da Amazônia.

Luta de Davi contra Golias, mas que foi levada adiante nas circunstâncias mais desfavoráveis, tendo contra si o governo militar e seu projeto de ‘ocupação’ e ‘desenvolvimento’ da Amazônia, a ferro e fogo, sem respeito algum ao povo que ali vivia, sem qualquer cuidado com a natureza e a preservação ambiental. O governo financiou a través da Sudam e ‘legalizou’ a ocupação do território pelo latifúndio, a derrubada da floresta e a sua conversão em pastagens.

A Prelazia tinha contra si todo o grande capital nacional e internacional fosse ele comercial, industrial, financeiro. O capital gozou de isenção de impostos, fartos subsídios, financiamentos generosos e todo o apoio militar, jurídico e o que mais necessário fosse para incentivar e depois acobertar seus crimes ambientais e humanos.

Conflictes per terra a l'Araguaia

Quadro da minissérie “Descalço sobre a terra vermelha”, de 2012.

 

A Prelazia também sofreu o ataque sistemático da imprensa escrita, rádio e televisão: jornais e revistas, canais de rádio e televisão, lançaram uma guerra constante de informações distorcidas, calúnias, mentiras e difamações acusando aquela Igreja de ser “contra o progresso” do país e vinculada a interesses estrangeiros que perseguiam a “internacionalização da Amazônia”.
 

A estratégia era que o grito abafado dos expulsos de suas terras, dos indígenas deslocados ou dizimados, atingisse a opinião pública e sensibilizasse o restante da Igreja e da sociedade.

 
Tudo o que aconteceu na Prelazia de São Félix foi um “trailer” do desastre anunciado que se espalharia pela Amazônia nos anos posteriores, com uma diferença notável: na Prelazia houve, desde o início, a denúncia documentada dos excessos sociais e ambientais sofridos e também da resistência corajosa dos pequenos camponeses com o apoio da Igreja local. A estratégia foi que o grito abafado dos expulsos de suas terras, dos indígenas deslocados ou dizimados, atingisse a opinião pública e sensibilizasse o restante da Igreja e da sociedade.

A Prelazia esteve na frente ou ao lado das principais iniciativas contra essa situação ecocida em relação à terra, à água e à mata; etnocida em relação aos indígenas, genocída em relação aos posseiros e ribeirinhos.»
 

“Ventos da Profecia na Amazônia” quer eliminar o risco de perder a memória subversiva do que significou para a Igreja e a sociedade, a profecia da Prelazia de São Félix do Araguaia.

 

Portada de l'edició brasilera: «Ventos de profecia na Amazônia»

Capa do livro «Ventos de profecia na Amazônia»

 

O livro está dividido em 5 partes:

1. Na primeira conheceremos como era a presença da igreja na região do Araguaia e como foram seus primeiros contatos com indígenas, antes da chegada dos missionários claretianos, que assumiram a missão católica.

2. Na segunda parte o livro poderemos ficar por dentro dos detalhes da criação e instalação desta nova Prelazia, da nomeação e ordenação episcopal de Pedro Casaldáliga. Também aprofundaremos no processo de repressão e perseguição sofrido por esta igreja nos primeira década de sua existência, perseguição provinda dos governos militares da ditadura. O livro narra como a atuação desta Igreja com seu bispo incomodavam o Vaticano.

3. Na terceira parte, descobriremos como era a organização interna desta igreja, as equipes pastorais que reuniam bispos, padres, religiosas leigos e leigas todos, homens e mulheres, com direito a voz e voto nas decisões, as assembleias do povo e a avaliação pastoral feita sobre o trabalho desta igreja.

4. Na quarta parte conheceremos as ações pastorais, sociais e políticas da Prelazia: no campo da comunicação com seu boletim mensal Alvorada, no campo da educação popular e indígena; da cultura, da saúde e da militância em prol dos direitos humanos. conheceremos as estratégias seguidas na formação e ação na esfera política e social.

5. A última parte poderemos aprofundar na renúncia por idade de Pedro Casaldáliga, apresentada aos 75 anos, e na angustiada espera pela nomeação de seu sucessor até a chegada, finalmente, do novo bispo em 2005.

O prólogo, de Óscar Beozzo, termina dizendo:

“Parabéns ao seu autor, Antônio Canuto, e meu profundo agradecimento por ter recuperado a história da Prelazia de São Félix do Araguaia, inserido na caminhada da Igreja do Brasil e companheira e parceira de tantas outras Igrejas da Grande Pátria LatinaAmericana, paixão e compromisso de uma vida, de Pedro Casaldáliga.”

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