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A Teologia poètica de Casaldáliga

A Teologia poètica de Casaldáliga

Em 1978, a Faculdade de Teologia da Catalunha, para comemorar seu 25º aniversário, decidiu por unanimidade de seu senado acadêmico nomear o Bispo Pedro Casaldáliga Doutor Honoris Causa. Mas houve um veto do arcebispo local, argumentando que Casaldàliga não era um teólogo, mas um poeta.

O teólogo benedictino Lluís Duch escreveu: “Casaldáliga não foi oficialmente reconhecido como teólogo: para ele talvez seja uma sorte; para a instituição poderia ter significado a possibilidade de reconhecer um profeta em sua pátria”.

Nessa ocasião, escrevi um longo artigo sobre a teologia poética de Casaldáliga, que enviei a ele.

Casaldáliga contempla o belo mundo indígena (o Araguaia, as garças brancas, a aldeia dos índios Tapirapé…) como um antecipo da Terra sem Males, agora destruído pelo maldito latifúndio e pelo Império. Ele chama Romero de “São Romero da América” e diz a Pedro para deixar a Cúria. Casaldáliga vive a paixão e a cruz com o povo, teme ser morto de pé, sobe e desce do Carmelo, sem ter nada, sem carregar nada, nunca se cansa de esperar pelo Reino. Enxerga o Ressuscitado junto ao mar de Tiberíades, com as feridas e as brasas ardentes do pão. Vive sob o vento do Espírito e se apresenta ao Pai com seu coração cheio de nomes.

Casaldáliga não sabia nada do que aconteceu em Barcelona e agradeceu o meu artigo. Mais tarde nos reunimos várias vezes na Bolívia e novamente em São Paulo em uma reunião de bispos e teólogos latino-americanos promovida por ele.

Casaldáliga tem sido um bom pastor, um místico, profeta e poeta, teólogo dos pobres, deste oitavo sacramento que o Espírito administra: a voz do povo! Talvez isso mesmo seja o que alguns acham difícil de reconhecer.

 

Texto de Víctor Codina, SJ

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Deus e a COVID19

Deus e a COVID19

Esta consulta é sobre o “papel” de Deus durante a pandemia de COVID19. Foi recebida no portal teológico amigo servicioskoinonia.org. Acreditamos que o ponto de vista que oferece pode ser interessante para você nos dias que estamos vivendo.

 

«Por favor, me ajudaria muito se pudessem me indicar alguma reflexão ou leitura que me ilumine sobre o seguinte dilema:

Em uma família cristã, um de seus membros está infectado com o coronavírus. Ele passa mal e é internado na UTI, mas felizmente se recupera e volta para casa com saúde; toda a família dá graças a Deus pela sua misericórdia, pela sua bondade e por ter cuidado de seu parente.

Na família vizinha, porém, também cristã, um de seus membros contraiu o coronavírus e, infelizmente, faleceu poucos dias depois. Aflitos e cheios de dor, eles não dão graças a Deus.

Alguém de uma terceira família pensa, entretanto, que sempre ‘tem que agradecer a Deus por tudo’.

Como pode ser explicado de forma simples e teológica que Deus é misericordioso e bom para TODOS, sempre? »


 

Olá amigo.

Veja bem, os três casos que você coloca estão dentro do mesmo pressuposto: lá em cima está Deus, que vê, sabe e pode fazer tudo e, portanto, pode nos proteger de qualquer dano. Essa “suposição” é o que filosoficamente chamamos de “teísmo”: uma forma de compreender a Realidade, que considera um segundo andar, um mundo sobrenatural paralelo, o céu, habitado por um Ser Supremo, criador, governante do mundo. Os gregos chamaram Ele de Theos … uma palavra que se transformou depois em Deus em latim e passou para o português. É por esse motivo que falamos em “teísmo”. A sua pergunta encontra-se, portanto, “dentro desta estrutura de compreensão” que você considera natural, o teísmo.

Porém, é tão difícil responder à sua pergunta, que, de fato, a humanidade ainda não conseguiu, e temos estado acompanhados por Theos por cerca de seis milênios. Filósofos antigos – alguns até cristãos – já o consideravam há mil e quinhentos anos nos mesmos termos que hoje. O dilema que eles colocavam era:

Suponhamos que Theos-Deus é onipotente e bom. Nesse caso:

– se ele pode nos livrar do mal e não quer fazê-lo, é porque não é tão bom;
– e se ele quer nos livrar do mal, mas não pode, é porque ele não é onipotente.

Como os filósofos não encontraram a resposta, tradicionalmente se fala do “mistério do mal”. Porque não se trata de um problema, mas de um Mistério; mistérios, de fato, não podem ser resolvidos; eles são inatingíveis para a nossa razão; apenas uma “fé” religiosa pode tentar.

Vejamos esse dilema desde o ponto de vista da fé tradicional, então.

Para algumas pessoas, a terceira família tem razão, pois a fé nos garante que Deus nos ama apesar de tudo, mesmo que não pareça, mesmo que nos envie a morte com a COVID19. Para a fé tudo é possível, porque acreditar em Deus significa confiar nele, cegamente, aconteça o que acontecer. A fé é uma afirmação voluntária de confiança e teimosa, contra todas as evidências. A fé teísta é um recurso muito valioso da natureza humana, porque nos transforma e nos dá uma força indestrutível. Nada é impossível para quem tem fé teísta: Deus estará sempre com essa pessoa, com essa comunidade ou com esse povo.

Essa terceira família tem mais fé do que você? Não, eles simplesmente tem uma fé “teísta”. Eles recorrem a esse recurso e é bom para eles. Você também pode fazer isso.

É essa “fé em Deus apesar de tudo” então, a resposta que você procura para o problema do mal? Para nós, não existe uma resposta única … existem muitas. E nenhuma delas é “obrigatória” ou definitiva.

Na verdade, já faz algum tempo que muitos cristãos pensam que o teísmo, essa forma de entender a realidade que diz que existe um Ser Onisciente e Onipotente lá em cima que cuida de nós e nos protege até com anjos da guarda, não é a melhor maneira de imaginar a estrutura e o funcionamento da realidade. Parece uma explicação feita sob a medida da nossa imaginação. Ou seja: uma explicação muito humana (antropomórfica, dizem): lá acima um Ser Supremo, uma Pessoa como nós, um Pai precisamente, que tudo sabe e pode fazer, que tudo controla e, claro, nos protege.

No entanto, estamos preocupados com que esta forma de entender a realidade – toda ela baseada na pedra angular desta Pessoa Suprema lá em cima – não seja uma explicação satisfatória, porque, de fato, há muitos casos em que ela não funciona, pois Ele parece não nos proteger. Há muitos crentes que não estão satisfetios com essa explicação “teísta” e se sentem aliviados sabendo que não é a única explicação que existe, e que podem não acreditar nela e procurar uma nova maneira de explicar a realidade: sem segundo andar, sem um nível sobrenatural ou celestial, sem um Theos lá em cima/lá fora, que intervém sempre que necessário para cuidar de nós. São pessoas para as quais, pelo que refletiram, a explicação clássica (o “teísmo”) lhes parece incrível, como se tivesse sido elaborada para crianças.

E se aquilo que temos chamado de Deus seja a alma, o poder, o Mistério, a criatividade deste cosmos fantástico em que estamos e de onde viemos, mas não um Alguém; não um Senhor misterioso fora ou acima do mundo?

E se o cosmos, a Realidade, não tivesse dois andares?. E se a explicação do mundo não consiste na existência de uma Super-pessoa onipotente e onisciente controladora em um segundo andar? E se aquilo que temos chamado de Deus fosse a alma, o poder, o Mistério, a criatividade deste cosmos fantástico em que estamos e de onde viemos, mas não Alguém; não um misterioso Senhor exterior ou superior ao mundo? Somos a primeira geração à qual a ciência moderna deu um conhecimento que os humanos que nos precederam nunca imaginaram. Não é estranho então que as explicações que as gerações anteriores nos transmitiram não nos sejam mais utéis; foram explicações muito perspicazes e cheias de boas intenções, mas hoje, para nós, estão ficando para trás, estamos aquém.

Nossos bisavós pensavam que o mundo tinha 6.000 anos – o que a Bíblia havia dito a eles. Quando nossos pais nasceram, foi descoberto que estávamos em “uma” galáxia, e eles pensaram que o mundo era essa galáxia. Agora sabemos que pode haver trezentos bilhões de galáxias, com duzentos bilhões de estrelas cada. Sabemos que a história conhecida deste cosmos não tem menos de 13,7 bilhões de anos. Passaram-se apenas 25 anos (1996) desde que descobrimos que existem planetas fora do nosso sistema solar. E o cosmos interior, planetas como o nosso, com capacidade de ter vida … podem ser trilhões de trilhões que contenham vida … (vegetal, animal, humana, espiritual, religiosa…?). Será que esses “humanos” também explicam a Realidade recorrendo à existência de um Deus que lhes deu o mundo e cuida deles diante de qualquer perigo local?

Começamos a perceber que deve haver uma explicação maior, mais desinteressada, mais profunda … que foge do nosso entendimento e que apenas intuímos; e que é sagrada, onde quer que se olhe: desde as partículas subatômicas e o mar profundo da sopa quântica que as constitui, até esse corpo cósmico global que transborda de Criatividade e Mistério.

Admirando o profundo e belo mistério da Realidade, matéria, estrelas, galáxias, a evolução do cosmos, o surgimento da Vida, a espécie humana, a entrada da Terra (com os humanos) ao nível da Consciência, reflexão, espiritualidade … cientistas, e muitos homens e mulheres reflexivos, estão começando a perceber que é possível que exista uma explicação maior, mais desinteressada e mais profunda, que foge do nosso entendimento e que apenas intuímos; que é sagrada, onde quer que se olhe: desde as partículas subatômicas e do mar profundo da sopa quântica que as constitui, até esse corpo cósmico global que transborda de Criatividade e Mistério. Talvez esse Cosmos fantástico, tão radicalmente diferente daquele que nos ensinaram quando crianças, não precise de um relojoeiro para montá-lo … nem de um vigia universal para supervisionar qualquer possível erro (que seja real ou que nos pareça), nem de Alguém que assuma a posição de proteger a nossa espécie frente todas as outras – inclusive a dos desconcertantes vírus mutantes. Hoje a ciência pensa que não somos o mais importante neste cosmos, e que não é muito razoável pensar que existe Alguém que se encarrega de canalizar tudo para que nada de mal nos aconteça. .. nem mesmo a COVID.

As pessoas que sentem isso não podem mais continuar acreditando com a mesma certeza com que nossos avós acreditaram na história, nem no significado do cosmos que as religiões lhes apresentavam como uma doutrina de fé exigida sob pena de pecado mortal (!).

A verdade mais verdadeira e humilde é que não temos explicação. A ciência nos diz que “estamos apenas abrindo nossos olhos” … Ainda não sabemos onde estamos: o que é isso, ou de onde vem, ou para onde vai. Ainda não sabemos o que fazemos aqui, ou se somos apenas um capítulo fugaz de uma aventura cósmica infinitamente maior. As pessoas que sentem isso não podem mais continuar acreditando com a mesma certeza com que nossos avós acreditaram na história, nem no significado do cosmos que as religiões lhes apresentavam como uma doutrina de fé exigida sob pena de pecado mortal (!).

Estamos em um momento histórico realmente interessante: assediados por um vírus, deslumbrados pela ciência, decepcionados com a nossa velha segurança religiosa que ficou para atrás, como aquelas roupas que deixamos para trás quando crescemos. Não é fácil apreender o todo, nem reconhecer e localizar as limitações de nosso conhecimento. Mas é possível que a contemplação do Mistério da Realidade nos encha de compreensão, humildade e abertura, para continuarmos acreditando na Vida, no Cosmos e na Criatividade Misteriosa em que tudo está impregnado.

Mesmo sem ter uma resposta à pergunta “sobre Deus, a COVID e o problema do mal”, talvez possamos nos acochegar na Paz e na confiança, em comunhão com o sábio Divino Mistério do Cosmos, depois de fazer tudo o que for possível para controlar o Coronavírus. Embora seus ataques nos causem dor e não tenhamos respostas para saber o que está acontecendo, podemos nos sentir serenos e confiantes nesta comunhão divina com o Cosmos.

Talvez esta seja nossa melhor “resposta”.

 

Resposta na página: servicioskoinonia.org

 

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Dia do índio 2021: a luta Xavante continúa

Dia do índio 2021: a luta Xavante continúa

Uma das lutas mais intensas e significativas dos Povos Indígenas em todo o Brasil foi a retomada da Terra Indígena Marãiwatsédé, em Mato Grosso, ocorrida em 2012 após mais de 50 anos de luta.

Em 1965, famílias Xavante foram retiradas a força de suas terras ancestrais pelo governo militar, e levadas em aviões da Força Área Nacional (FAB) para a Missão Salesiana São Marcos. O grupo agrícola Ometto — da família da gigante sucroalcooleira Cosan — tomou a área. Em decorrência dessa remoção forçada, faleceram mais de 150 indígenas e as famílias do Povo Xavante de Maraiwãtsédé foram separadas.

 

[…] E os brancos começaram a se aproximar para roubar a terra. Então, cada vez mais, eles chegavam. A nossa tradição era dividir aldeia, porque o espaço era grande. Já estava perto de abare’u fazer a cerimônia, mas quando os brancos já estavam próximos o nosso uuu não tinha feito a cerimônia. Daí começou a encurralada atrás da terra. Eles eram espertos.
Tserewa’waDepoimento ao MPF

 

As terras dos Xavante foram vendidas posteriormente a holdings internacionais do agronegócio, como a italiana Agip Petroli, que explorava a fazenda Suiá-Missu, construída sobre a deportação. Segundo explica Pedro Casaldáliga em sua Carta Pastoral de 1971, a Fazenda Suiá-Missu possuía cerca de 695 mil hectares na década de 70, «extensão que superava a do próprio Distrito Federal».

Durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente de 1992, celebrada no Rio de Janeiro, os Xavante pressionaram as autoridades nacionais e internacionais e o presidente da Agip, Gabriele Cagliari, -que cometeria suicido pouco depois em uma prisão da Itália, acusado de corrupção, se comprometeu publicamente a devolver a área dos Xavante.

Porém, como relatava o jornal italiano La Repubblica em 1993: «o sonho dos Xavante, expulsos de suas terras em 1966, permaneceu um sonho. Os 168 mil hectares da fazenda Suia Missu, no Mato Grosso, um ano depois, ainda são de propriedade da Agip Petroli».

O litigio com os Xavante ainda permaneceu sob a inação do governo brasileiro por mais de 5 anos, até que a Terra Indígena Marãiwatsédé foi homologada pelo presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, em 1998.

Agência Pública: Mapa da área Xavante no Araguaia

Antes disso, porém, o poder público de São Félix do Araguaia e alguns fazendeiros da região incentivaram 2 mil posseiros a invadirem a área. O conflito tornou-se iminente: Em 2004, houve notícia de que três fazendeiros invasores da terra haviam contratado um pistoleiro para matar dom Pedro Casaldáliga. Mesmo ameaçado, recusou escolta policial e continuou seu trabalho pastoral e social normalmente, dizendo que só a aceitaria quando todos os camponeses tivesses direito a ela.

Ao longo de 50 anos de exilio forçado, os Xavante foram constantes em defender os seus direitos. Quando foram expulsos, deportados — esta é a palavra, eles foram deportados —, seguiram vinculados a esse terreno, vinham todos os anos recolher pati, uma palmeira para fazer os enfeites.

Os Xavante sempre reivindicavam a terra onde estão enterrados seus velhos. E tiveram sempre presente a sua terra.

“A Terra Marãiwatsédé está em nossos corações”

Nos últimos meses de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) ordenou a remoção dos invasores e a entrada efetiva do Povo Xavante na Terra Indígena Marãiwatsédé. No dia 7 de novembro de 2012 começaram a entregar no local as notificações que pedian a saída dos invasores. Finalmente, após quarenta e seis anos de exilio, os Xavante tiveram definitivamente reconhecido o direito a seu território. 

A saída dos invasores, porém, não seu de forma pacífica e foi necessária a intervenção da Força Nacional para poder retirar as pessoas que permaneciam na área. Houve enfrentamentos organizados com a policia e atos vandálicos para destruir (ainda mais) a terra dos indígenas. Por causa desse conflito, Pedro Casaldáliga teve que abandonar a sua casa em São Félix do Araguaia devido às ameaças de morte que recebeu.

 

Marãiwatsédé hã
Tôtsena ti’a na watsiri’ãmo Wahõiba duré
Höiba-téb’ré hã, Ãhawimbã Date itsanidza’ra hã
Ahãta te Oto aimatsa’ti’ a na Ítémé we’re’iwadzõ
mori hã adza Oto ãma wawa’utudza’rani
Ti’a’a’a’ana… Ai’uté hã ãma ipótódza’ra hã
Tedza Oto ãma tsitébrè ti’a’a’a’ana.

A Terra Marãiwatsédé está em nossos
corações e em nossas almas
Ainda pequenos nos retiraram deste lugar
Mas hoje reconquistamos nossa terra,
nosso lar Agora de volta vou descansar nesta terra,
nesta terra, nesta terra…
Aquí eu nasci e nesta terra vão se criar nossas crianças

Marcio Tserehité Tsererãi’ré

 

A terra que os indígenas retomaram, no entanto, era bem diferente daquela da qual foram retirados à força: em 2012, pelo menos dois terços dos 165 mil hectares da reserva haviam sido desmatados por madeireiros, fazendeiros e posseiros. Marãiwatsédé chegou a liderar o ranking de terras indígenas mais desmatadas do país.

Marãiwatsédé, que foi o lar farto dos Xavante por séculos, enfrenta hoje o desafio vital da escasez de alimentos, da falta de água, dos solos degradados por causa do desmatamento e, ainda, as invasões pontuais e os incêndios criminosos que, ainda hoje, se registram na área.

Porém, aos poucos e sempre em luta, os Xavante estão conseguindo viver em sua terra ancestral e estão construíndo aldéias e se organizando. Mais de 1.200 indígenas moram hoje nas terras de Marãiwatsédé.

O caminho é longo e vai ser muito difícil. As ameaças não faltam.

Mas, o Povo Xavante de Marãiwatsédé não tem medo. Para eles, a esperança sempre vence!

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A Semana Santa de Casaldáliga

A Semana Santa de Casaldáliga

MARÇO DE 1985

 

Semana Santa. De noite, imensa, a lua cheia entre as exuberantes árvores de Luciara. E pancadas de chuva e um silêncio assustador. Bancos de peixes sobem o Araguaia e a pesca é feita, nestes dias, como uma brincadeira fácil. Vamos celebrar a Ceia do Senhor.

“Meu presbitério”, disperso, cada padre no meio de suas comunidades, todos longe. Eu, bispo apesar de tudo, com eles, com todo este povo de Deus no sertão. Cristão como todos; querendo ser Bispo de todos eles. Esta é minha herança nesta pátria que o Espírito tem me designado.

Aqui, em Luciara, hoje consagrei os santos óleos. Digamos que onde está o bispo, lá está a sua catedral.

Um moço, já homem, me pergunta em nome de seus companheiros se “faz mal” jogar baralho hoje, em casa, só para matar o tempo, nessa abstinência total de bares, bilhar e música. Com os peixes da abstinência – aqui tão próximos – também se comem hoje, ritualmente, batata-doce e abóbora, banhadas em leite de coco.

A meninada – com as velas e os mosquitos, as poças de lama e a penumbra das ruas – e outros menos jovens também, tumultuam o Via Cruscis da rua.

A Vigília Pascal será às margens do Araguaia. Uma alta fogueira sob a lua íntegra. A água do rio numa bacia karajá e o círio e as velas, a luz de Cristo e sua Eucaristia, a nova Páscoa, a nossa Páscoa. Levei a comunhão para onze doentes, vários deles já no limiar da paz. E amanhã será “aquele dia que o Senhor fez” para sempre.

A solidão e a simplicidade tornam a fé acessível. E a dor do mundo torna a Páscoa apaixonadamente desejável.

Nesta parede nua de nossa casa de missão – as velhas palhas e os morcegos – o Cristo de Dalí, visto do Pai, se lança, oferecido, sobre o mundo. E o mundo é um caos de nuvens, talvez de mar, relato da primeira criação; mas a luz do Crucificado já irrompe nele – lembrança do Dia. Outra luz, talvez a fé, vem do mundo e estende generosamente o braço esquerdo de Cristo em uma sombra sem fim, como o perdão, como a caridade.

Nas margens do Araguaia, abençoamos o novo fogo da Páscoa e a água batismal. A lua nos preside como uma imensa clarabóia. E na procissão de velas e cantos e no pote karajá caminhamos até a igreja para celebrar a Eucaristia da Vigília Maior.

Eu carreguei o círio pascal, para aprender a ser um servo diácono, talvez. De repente, uma ventada apagou o círio e quase todas as velas da procissão. Mas ao meu lado, como um símbolo evangélico, uma menina cotinuou com a sua vela acesa, e devolveu a luz ao bispo e a toda a comunidade.

 

Pedro Casaldáliga, 1985

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Carta aberta ao irmão Romero

Carta aberta ao irmão Romero

Eu deveria estar aí… e estou: de alma inteira. Esta pequena Igreja de São Félix do Araguaia tem você muito presente, irmão. Você está visível no meu quarto, na capela do quintal, em nossa catedral, em muitas comunidades, no Santuário dos Mártires da Caminhada Latinoamericana. Até quando cai uma manga sobre o telhado eu me lembro do sobressalto que você sentia quando caiam as mangas sobre seu retiro do Hospitalito.

No mês de março de 1983 eu escrevia em meu diário:

«Não consigo entender de jeito nenhum, ou até o entendo demais: A fotografia do mártir Monsenhor Romero com João Paulo II, nos cartazes mais do que normais para a visita do Papa, tem sido proibida pela comissão mista Governo-Igreja de El Salvador. A imagem do mártir dói. Ao Governo, perseguidor assassino; e é natural que lhe doa; que doa à certa Igreja… também é natural, tristemente natural.

De todos modos, nós, aqui, neste recanto do Mato Grosso, e muitos cristãos e não cristãos da América e do Mundo, vamos celebrar outra vez, neste mês de março, o martírio de São Romero, bom pastor da América Latina.

 A tua imagem nos conforta, nos compromete e nos une; como uma versão entranhável do Bom Pastor Jesus.

 

Você ressuscitou em seu povo, que não vai permitir mais que o império e as oligarquias continuem a submetê-lo, nem vai se deixar levar pelos revolucionários arrependidos o pelos eclesiásticos espiritualizados.

 

E agora estamos aí, milhões, de muitas maneiras, celebrando o jubileu do seu testemunho definitivo, aquela homilia de sangue que ninguém fará calar. Você tem poder de convocação, um poder macroecumênico de santo dos católicos e dos evangélicos e até dos ateus. Estamos aí celebrando, reparando, assumindo. Você é muito comprometedor, na linha de Jesus de Nazaré: esse Jesus histórico que tantas vezes se dilui para nós em dogmatizações helenísticas e em espiritualismos sentimentais, o Jesus Pobre solidário com os pobres, o Crucificado com os crucificados da História.

Você tinha razão, e isso queremos celebrar também, com júbilo pascal. Você ressuscitou em seu povo, que não vai permitir mais que o império e as oligarquias continuem a submetê-lo, nem vai se deixar levar pelos revolucionários arrependidos o pelos eclesiásticos espiritualizados. E você ressuscita nesse Povo de milhões de sonhadores e sonhadoras que acreditamos que outro Mundo é possível e que é possível outra Igreja.

Porque do jeito que hoje estão, Romero irmão, nem o Mundo vai e nem vai a Igreja. Continuam as guerras, agora até preventivas; continuam a fome, o desemprego, a violência –do Estado ou da multidão enlouquecida–; continuam as falsas democracias, o falso progresso, os falsos deuses que dominam com o dinheiro e a comunicação, com armas e a política.

 

Passamos da Segurança Nacional à segurança do capital transnacional, e das ditaduras militares à macro ditadura do império neoliberal.

 

E continua havendo muita Igreja muda. Passamos da Segurança Nacional à segurança do capital transnacional, e das ditaduras militares à macro ditadura do império neoliberal.

São também os 25 anos da Conferência de Puebla. Aqueles rostos, Romero, que são o próprio rosto de Jesus ‘destazado’, têm se multiplicado em número e em deformação. Aquelas revoluções utópicas –belas e atordoadas como uma adolescência da História– têm sido traídas por uns, desprezadas olimpicamente por outros e continuam sendo saudosas –de outro modo, mais ‘al suave’, com jeito, em maior profundidade pessoal e comunitária– por muitas e muitos dos que estamos aí, com você, pastor do ‘acompanhamento’, companheiro de pranto e de sangue dos pobres da Terra. Como estamos necessitando hoje que você ensine aos pobres a ‘se encorpar’, a fazerem se corpo, em solidariedade, em organização, em teimosa esperança!

Com você, dizia o mestre mártir Ellacuría, “Deus passou por El Salvador”, por todo o nosso Mundo. E o teólogo de fronteira José María Vigil fez de você três rotundas afirmações que são, mais do que verdades para crer, desafios de urgência para assumir:

• «Romero: símbolo máximo da opção pelos pobres e da teologia da libertação.

Romero: símbolo máximo do conflito da opção pelos pobres com o Estado.

Romero: símbolo máximo do conflito da opção pelos pobres com a Igreja institucional».

Não é que você deixasse de ser ‘institucional’ e comportado. Sempre me admirou em você a aliança da disciplina com a liberdade, da piedade tradicional com a Teologia da Libertação, da profecia mais ousada com o perdão mais generoso.

Você era um santo se fazendo, em constante processo de conversão. De você tem se repetido com edificação que era você um bispo convertido. Com Deus e com o Povo, sem dicotomias.

 

Você nos avisa de que «aquele que se compromete com os pobres terá que percorrer o mesmo destino que os pobres: ser desaparecidos, ser torturados, ser capturados, aparecer cadáveres»

 

Sua homilia do 23 de março de 1980, véspera da oblação total, você a intitulou precisamente assim: «A Igreja a serviço da libertação pessoal, comunitária, transcendente».

Recordamos você tanto porque necessitamos de você, Romero, irmão exemplar.

Você nos anima, você continua a nos pregar a homilia da libertação integral. Você continua gritando «cesse a repressão», a todas as forças repressivas na Sociedade, nas Igrejas, nas Religiões. Você nos avisa de que «aquele que se compromete com os pobres terá que percorrer o mesmo destino que os pobres: ser desaparecidos, ser torturados, ser capturados, aparecer cadáveres», e nos lembra que, comprometendo-nos com as causas dos pobres, não fazemos mais do que «pregar o testemunho subversivo das Bem-aventuranças, que tudo reviram».

 

Sua memória não é simplesmente saudade nem uma veneração sacralizada que fica no ar do incenso. Queremos que seja, vamos fazer que seja, compromisso militante, pastoral de libertação.

 

Você confiava –e não vamos defraudar você– que «em quanto houver injustiça haveria cristãos que a denunciassem e que se poriam da parte das vítimas» dessa injustiça.

Seu sangue, irmão, como você pedia é verdadeiramente «semente de liberdade».

Sua memória não é simplesmente saudade nem uma veneração sacralizada que fica no ar do incenso. Queremos que seja, vamos fazer que seja, compromisso militante, pastoral de libertação.

Nosso teólogo, o teólogo dos mártires, Jon Sobrino, resume assim a tarefa evangelizadora e política que, por fidelidade à memória de você, nos demanda hoje o Reino: Enfrentar a realidade com a verdade; analisar a realidade e suas causas; trabalhar pela  mudança estrutural; levar a bom termo uma evangelização madura, libertadora, crítica e autocrítica; construir a Igreja como Povo de Deus; dar esperança a esse Povo que tanto sofre…

Esta semana do seu jubileu, em San Salvador, acabará sendo um sínodo popular, um encontro de aspirações e compromissos dentro desse processo conciliar que estamos vivendo, uma grande vigília pascal em torno a você e a tantas testemunhas fieis, conhecidas ou anônimas, mas todas luminosas no Livro da Vida, seguidores e seguidoras até o fim da suprema Testemunha Fiel.

 

Seguiremos falando, irmão Romero. Todo dia. Você acompanhando-nos da Paz total, pelo caminho árduo e libertador do Evangelho. Tantas vezes nos sentimos como os discípulos de Emaús, defraudados, sem rumo, porque ‘pensávamos que…’

 

«Estamos outra vez em pé de testemunho», eu dizia a você naquele meu poema. E estamos mesmo. Somos do grande Fórum Social Mundial, com o Evangelho e pelo Reino, indo para outro Mundo possível, para outra Igreja –de Igrejas unidas e libertadoras–, para outra Pátria Grande, Nossa América do Caribe e do Sul e da entranhável América Central; com um Norte outro, irmão também por fim, dês-imperializado.

Estão-nos anunciando a V Conferência Episcopal Latinoamericana, possivelmente para o 2007 e esperamos que seja na América Latina. Você ajude a prepará-la, irmão. Façam celestiais horas extras todos os santos e santas da Nossa América para que essa Conferência seja um Medellín, e atualizado.

Seguiremos falando, irmão Romero. Todo dia. Você acompanhando-nos da Paz total, pelo caminho árduo e libertador do Evangelho. Tantas vezes nos sentimos como os discípulos de Emaús, defraudados, sem rumo, porque ‘pensávamos que…’

A tua carta, Romero, que guardamos em nosso arquivo, timbrada como «relíquia», reza assim:

«… Querido irmão no episcopado:

Com profundo afeto agradeço lhe sua fraternal mensagem pela pena da destruição da nossa emissora.

Sua calorosa adesão alenta consideravelmente a fidelidade à nossa missão de continuarmos sendo expressão das esperanças e angústias dos pobres, alegres por corrermos como Jesus os mesmos riscos, por nos identificarmos com as causas justas dos despossuidos.

Á luz da fé, sinta-me estreitamente unido no afeto, na oração e no triunfo da Ressurreição.

Oscar A. Romero, Arcebispo».

Sua última palavra escrita, e assinada com sangue, não podia ser mais cristã.

Querido São Romero da América, irmão, pastor, testemunha: Você vivia e dava a vida porque acreditava de verdade no «triunfo da Ressurreição». Ajude-nos a crermos de verdade nesse triunfo, para vivermos e darmos a vida como você, com os pobres da Terra, seguindo o Crucificado Ressuscitado Jesus.

Pedro Casaldáliga, 24 março de 2005

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