Entrevista. O coronavírus mantém o mundo em choque. Em vez de combater as causas estruturais da pandemia, os governos estão se concentrando apenas nas medidas de emergência. No entanto, o modelo do agronegócio permanece intacto e sua responsabilidade pela saúde das pessoas não é questionada.

O mistério de Casaldáliga
O mistério de Casaldáliga
8 de setembro de 2020
O impacto da morte de Casaldáliga (Pere, dom Pedro, Pedro), tem sido enorme, impressionante, não apenas nos espaços eclesiásticos. Merece, sem dúvida, uma reflexão.
Surpreende que aquele jovem de Balsareny que entrou no seminário de Vic e depois nos Missionários Cordimarianos-Claretianos, bem na época da ditadura de Franco e da Igreja de cristiandade pré-conciliar, ao ir para o Brasil tenha se tornado um Santo Padre da Igreja dos pobres e profeta da libertação.

Casaldáliga morreu numa cidade perto de São Paulo e os seus restos mortais foram levados para a sua cidadezinha de São Félix do Araguaia. No caminho, o seu corpo foi velado por centenas de pessoas da sua Prelazia que queriam dar-lhe um último adeus. Foto: Dagmar Talga.
De onde foi que Casaldáliga tirou a força para trabalhar pastoralmente em São Félix do Araguaia com os Tapirapé e os Xavante; para defender os posseiros contra os latifundiários; para promover organizações e movimentos sociais e eclesiásticos no Brasil e em toda a América Latina; para criticar o Império do Norte e dizer a Pedro para deixar a cúria, desmantelar o sinedrio, a muralha e abandonar os filactérios? Como teve a liberdade profética de amaldiçoar as cercas e a propriedade privada que escravizam a terra e os seres humanos? Quem o fez resistir às ameaças de morte dos poderosos e às críticas, suspeitas e vetos dos seus irmãos de báculo e mitra?
Como conseguiu enfrentar a pobreza, as longas viagens de ónibus, a solidão e as limitações finais do irmão Parkinson, enquanto o seu coração estava alegre e “cheio de nomes”? De onde veio a sua esperança de que, embora sejamos combatentes derrotados, a nossa causa é invencível, caminhamos em direcção à Terra sem Males, em direcção à utopia, em direcção à Esperança com maiúscula?

Nas despedidas a Pedro Casaldáliga, os símbolos que representam as suas causas a favor dos trabalhadores rurais, dos Povos Indígenas e contra a propriedade privativa estavam muito presentes. Foto: Dagmar Talga.
Pedro não morreu de pé como as árvores, mas na cama, quase sem conseguir falar e totalmente dependente dos outros, não tendo nada, não carregando nada e não podendo nada.
Estamos diante de uma vida misteriosa. Ele não foi um simples planificador pastoral, não foi sociólogo, nem economista. Não foi apenas um revolucionário político. Qual foi a raiz última da sua vida, qual é o seu mistério oculto? Felizmente, a sua poesia oferece-nos a chave hermenêutica da sua vida.
Não se trata apenas de poemas estéticos, mas místicos, como os de São João da Cruz, que nos abrem para o Mistério último, para um Você, um Você com quem ele tem uma relação que não é meramente individual e religiosa, mas histórica, que o leva a subir e descer do Monte Carmelo, para ouvir o Vento do Espírito na rua.

«El tiempo y la espera» é um dos livros de poesia que Casaldáliga dedica: “Aos pobres, aos mártires, aos contemplativos, aos militantes e teólogos da libertação, para os quais e com os quais -por Ele, com Ele e para Ele- o tempo se torna cristão e e esperança esperançada”.
Esse Você é Jesus de Nazaré, versão de Deus na limitação humana, feito homem no ventre de Maria e classe na oficina de José. Para Casaldáliga, Jesus de Nazaré é a sua força e o seu fracasso, a sua herança e a sua pobreza, a sua morte e a sua vida. É o Jesus da cova de Belém e dos pastores, das bem-aventuranças, dos pobres e dos pequenos, das mulheres fiéis, da paixão e da cruz, do Jesus do Reino, do amor feito alimento.
Esse Jesus é pedra de escândalo e pedra angular, como também são os pobres; é o libertador total, assassinado pelo Templo e pelo Império, mas cujo túmulo vazio, tal como os túmulos do povo massacrado, anuncia a manhã da Páscoa. Para Casaldáliga existem apenas dois absolutos: Deus e a fome; onde há pão, lá está Deus.
O bispo de São Félix foi sempre tocado pelo capítulo 21 do evangelho de João, que ele o entendia como uma síntese da sua vida: a abundante pesca no lago de Tiberíades depois do fracasso da noite escura, enquanto na margem uma personagem misteriosa o convida para almoçar e pergunta a Pedro se ele o ama: «Jesus de Nazaré, filho e irmão,/ vivendo em Deus e pão na nossa mão,/ caminho e companheiro da viagem,/ libertador total da nossa vida/ que vem pelo mar, com a aurora,/ as brasas e as feridas ardentes».

«No amanhecer pascal da ressurreição, à beira do Araguaia, há Alguém que o espera de braços abertos para partilhar o pão.»
Agora, finalmente, Casaldáliga está enterrado junto ao rio Araguaia, um rio que simboliza o Mar Vermelho, o Jordão e o lago de Tiberíades. E no amanhecer da Páscoa da ressurreição, à beira do Araguaia, há Alguém que o espera de braços abertos para partilhar o pão. E talvez uma garça branca vigie a sua sepultura. O mistério da vida de Casaldáliga nos foi finalmente revelado. Os pobres o ensinaram a ler o evangelho.
Obrigado, Pedro, porque com a tua transparente vida evangélica, você nos aproxima do Mistério último e no meio das noites escuras, você faz mais confiante a nossa fé.
Texto de Víctor Codina para la Fundació Lluís Espinal
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