Convite para decolonizarmos nossas Teologias e Espiritualidades
Todas as correntes espirituais e teológicas nos foram propostas desde o colonialismo. Portanto, precisamos nos libertar e refazê-los completamente.
Ninguém se espante com este convite. De fato, assim como todo o sistema de educação e o nosso olhar sobre a vida, também as teologias e espiritualidades precisam ser decolonizadas. E não se trata de assunto que diz respeito só a religiosos/as
Todo caminho espiritual se baseia em uma visão teológica, ou seja, parte de uma concepção de Deus, do mundo e da vida. E isso tem muita influência no modo de organizar a sociedade e as relações humanas. Todas as correntes espirituais e teológicas nos foram propostas a partir do colonialismo. Por isso, todas precisam ser libertadas e refeitas.
É quase inevitável que, ao expressar em livros a sabedoria própria dessas tradições espirituais, a linguagem e a lógica ainda sejam da sociedade dominante. O colonialismo tem muitas formas, níveis e disfarces e temos de estar sempre alertas a isso.
Para isso é importante percebermos como as teologias cristãs legitimaram a colonização. Assim, essas terras, que chamamos Brasil e América Latina, foram alcançadas com o aprisionamento e a objetificação, para não dizer bestialização, dos corpos não brancos. Infelizmente, a Teologia que sustentou e legitimou a Cristandade Ocidental não somente foi conivente, como participou da incumbência de transformar os povos originários e os nativos do continente africano em escravizados, legitimando o poder supremo do colonizador que pretendia representar Deus.
Por tantos séculos e até hoje, as tradições espirituais dos povos originários e das comunidades afrodescendentes deram força de resistência às comunidades, vítimas do Colonialismo. No entanto, em nossos dias, muitas vezes, elas também são obrigadas a se expressar em linguagem e categorias das culturas dominantes. Convivem com questões como a economia capitalista para sobreviver. Além disso, é quase inevitável que, ao expressar em livros a sabedoria própria dessas tradições espirituais, a linguagem e a lógica ainda sejam da sociedade dominante.
El colonialisme té moltes formes, nivells i disfresses i hem d’estar sempre alertes. Tanmateix, com els dos que escrivim aquesta pàgina som sacerdots cristians i parlem amb els peus i el cor a Amèrica Llatina, víctima del projecte europeu del Cristianisme colonial, demanem permís per centrar la nostra reflexió en les espiritualitats i teologies descolonials cristianes.
Vocês que aceitam o nosso convite querem saber na prática como viver espiritualidades e fazer teologias decoloniais. Sem pretender esgotar o assunto, propomos alguns elementos e cuidados que podem nos ajudar neste mutirão profético:
1) Retomar o princípio de que toda boa teologia procede da práxis transformadora.
Desde a década de 1970, os teólogos da libertação nos dizem que o ato primeiro é a práxis. Daí decorre uma elaboração teológica. Para uma teologia decolonial, a prática já tem de ser antecipadamente anti-colonial e mesmo pós-colonial.
Na década de 1960, desobedecendo à orientação sempre conservadora das hierarquias eclesiásticas, na América Latina e Caribe, cristãos de várias Igrejas participaram de movimentos sociais transformadores e aderiram à práxis revolucionária. Pastores/as e teólogos/as passaram a refletir sobre a fé, não mais a partir da obediência e sim da desobediência civil. As teologias aprofundaram a dimensão evangélica do protesto e da revolta e não mais da submissão. É preciso, hoje, voltar aos fundamentos dessas teologias, construídas na contramão da sociedade dominante e das Igrejas. Assim, surgiram teologias cristãs a partir de baixo, ou seja, dos movimentos populares, da caminhada dos povos originários e das comunidades negras.
2) Deslegitimar as teologias coloniais da Cristandade e da neo-cristandade, atualmente ainda tão frequentes nos seminários e púlpitos.
Desde a celebração do 5º centenário da conquista, em 1992, papas, bispos e autoridades evangélicas pediram perdão aos povos originários e às comunidades negras pelos pecados que cristãos do passado cometeram contra esses povos.
Ora, infelizmente, esse tipo de espiritualidade e de teologia que legitimou a conquista, a escravização e outros crimes sociais, até hoje, persiste em não poucos círculos católicos, evangélicos e pentecostais.
Alguns falaram nos pecados cometidos “por alguns filhos da Igreja”. No entanto, os que cometeram esses pecados foram papas e bispos, representantes oficiais da instituição e fizeram isso porque a espiritualidade e a teologia oficial não só permitiam tais pecados, como os promoviam como necessidade da missão.
Ora, infelizmente, esse tipo de espiritualidade e de teologia que legitimou a conquista, a escravização e outros crimes sociais, até hoje, persiste em não poucos círculos católicos, evangélicos e pentecostais. A forma com que, até hoje, setores da hierarquia católica tratam a mulher não é por acaso.
A homofobia manifestada por numerosos padres, pastores e grupos cristãos tem seus fundamentos nessa mesma compreensão da fé. O racismo religioso, responsável por agressões e ataques a casas de reza indígenas e terreiros afrodescendentes não decorre apenas da ignorância de religiosos fanáticos.
Não se pode construir teologia e espiritualidade decolonial sem revelar a contradição com o Evangelho de Jesus contidos em algumas espiritualidades e teologias ainda vigentes.
O desprezo pela sacralidade da Terra e a mercantilização da natureza vem da mesma fonte. Há uma teologia e espiritualidade que legitimam esses crimes. Não se pode construir teologia e espiritualidade decolonial sem revelar a contradição com o Evangelho de Jesus contidos em algumas espiritualidades e teologias ainda vigentes.
A fé em um Deus Amor exige uma interpretação da Bíblia que seja amorosa, inclusiva e em função da Vida, como Jesus propôs o sábado a serviço do ser humano e não o contrário. As teologias decoloniais começam por ser anti-coloniais e se tornam pós-coloniais. Por fim, se tornam decoloniais, porque partem de princípios próprios e autônomos.
3) Com cores, com ginga, cheiros e sabores do Sul, abraçar as teologias inscritas nos corpos e feitas a partir da corporalidade.
Abraçar o corpo da mulher, o corpo indígena e negro, os corpos diferentes e belos das diversidades de gênero é o chão das teologias decoloniais que redescobrem a beleza do erotismo, a espiritualidade do prazer e a dignidade das revoluções que se propõem a restaurar a vida das pessoas e do universo. Isso nos faz testemunhar a ação do Espírito Divino no encanto dos espíritos da mata (os Encantados), na sabedoria dos ancestrais, na força dos Orixás e no sorriso negro e índio da Vida.
Esse corpo a se abraçar é o mesmo corpo que as colonialidades do poder, do saber e do ser, descritas por Anibal Quijano, continuam optando por negar, por escravizar, por ferir. No entanto, é nesse corpo que, a partir do direito que, como afirmava Paulo Freire, cada sujeito tem de dizer a sua palavra, podemos dançar a sua dança e esperançar com a espiritualidade que a ação do Espírito nos impulsiona.
É na dimensão do corpo da terra que ela se manifesta em vida, mesmo ainda gemendo e esperando a manifestação dos filhos e filhas de Deus (Rm 8: 19-22 ). É na comunhão do universo, seu templo e morada (1 Cor 6:19 ; 3: 16), que se manifesta o Amor que cria e recria modos de manifestar sua energia criadora. Assim, cremos que o Amor Divino é sempre novo, cada manhã e, neste momento, recria o universo. Está em cada molécula e cada célula da vida. Está conosco e em nós para restaurar relações e transformar o mundo. A regra é o inesperado. Somos todos e todas seres de esperança e podemos sonhar. Neste sonho cabem todos e todas. Se estamos nessa é porque fomos marcados pelo Amor Maior. Para nós, que escrevemos estas linhas, Jesus de Nazaré é quem nos abre o coração e nos envia para a decolonialidade e para testemunhar a Ternura Divina do Espírito presente na diversidade das culturas e das religiões, como em todo movimento pela Libertação e pela Vida.
Assim, ainda de forma inconclusa, convidamos você a completar este caminho, porque se trata de construção coletiva.
Na esperança de que você, que nos lê, atenda este convite: a descolonização de nossas teologias e espiritualidades se materializa no chão da vida real, onde o amor se materializa e nos permite ver os rostos e ouvir as vozes da multidão de irmãos e irmãs que o Colonialismo tentou silenciar.
Marcelo Barros [1]i Josias Vieira[2]. Publicado na Agenda Llatinoamerciana 2024.
[1] – Marcelo Barros é monge beneditino (78), teólogo e escritor. No Brasil, é assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais.
[2]– Josias Vieira é pastor na Igreja Batista em Coqueiral, teólogo por formação, mas ecoteólogo por conversão e fundador do Movimento Nós na Criação – Abya Yala.
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