Teo-poeta da libertação e intelectual compassivo
Pedro Casaldáliga foi “um poeta de vida e palavra consubstanciada”, como o poeta e professor de Estética da Universidade de Barcelona José María Valverde o definiu, e “teo-poeta da libertação”, como eu o considero, acredito, que junto com Rubem Alves e Ernesto Cardenal. Ele era um esteta da palavra encarnada, um mestre do bom discurso, que nele é “ser”, “viver” e “fazer”. A sua poesia não é evasiva, mas está fundamentada na realidade, está cheia de indignação e dor pela injustiça e fome que a maioria da população do mundo sofreu – e ainda sofre -.
Ele era um revolucionário universalista que acreditava “na Internacional de frentes elevadas, da voz igual e das mãos entrelaçadas” e acompanhava as revoluções na América Latina, até com a sua presença física, como no caso da Revolução Sandinista.
Casaldáliga analisou a realidade com os olhos dos pobres, olhos que, como ele diz, “vêem com uma luz diferente”. Foi essa luz que o levou a criticar o neoliberalismo, que ele chamou “a grande blasfêmia do século XXI”. Em meio à era neoliberal, Pedro era um “trabalhador da utopia” de Outro Mundo Possível, em conexão com a proposta do Fórum Social Mundial, que organizou sete edições no Brasil. Utopia de libertação, que ele não considerava um ideal irrealizável, mas um objetivo que pode ser alcançado através do compromisso com o caminho da “esperança contra toda esperança”.
Casaldáliga também foi um profeta de olhos abertos que despertou as consciências adormecidas de muitos cidadãos conformistas e de muitos cristãos que, nas palavras do escritor francês Georges Bernanos, são “capazes de se sentar confortavelmente sob a cruz de Cristo”. Era um revolucionário universalista que acreditava “na Internacional de frentes elevadas, de vozes entre iguais e das mãos entrelaçadas” e acompanhava as revoluções da América Latina, até com a sua presença física, como no caso da Revolução Sandinista.
Ele confrontou e despiu os grandes sistemas de dominação apenas com a palavra e a exemplaridade da vida.
Casaldáliga agiu como um intelectual crítico, inconformista e compassivo com as vítimas do colonialismo, capitalismo, patriarcado, aporofobia e exploração da Terra. Ele foi sem dúvida um dos intelectuais mais lúcidos da América Latina, que ofereceu narrativas alternativas às narrativas oficiais do sistema, construiu espaços de convivência e diálogo simétrico ao invés de campos de batalha e monólogos, desestabilizou a (des)ordem estabelecida e revolucionou as mentes instaladas. Foi crítico com todos os poderes: político, religioso, econômico, incluindo os poderes ocultos da “Santa Sé”, a ponto de ter a audácia de pedir ao Papa João Paulo II que deixasse o Vaticano e seguisse o caminho do Evangelho. Ele confrontou e despiu os grandes sistemas de dominação apenas com a palavra e a exemplaridade da vida.
Outra de suas opções fundamentais foi a ecologia, seguindo o ecologista Francisco de Assis. Junto com seu colega e amigo próximo Tomás Balduino, bispo de Goiás, criou a Comissão Pastoral da Terra na Conferência Episcopal Brasileira e apoiou as lutas e demandas do Movimento dos Sem Terra (MST). Casaldália reivindicou o direito dos povos originais, os primeiros ambientalistas, ao seu território, que foi roubado pelos latifundiários, que os exploram sem demonstrar qualquer compaixão pela terra ou por seus legítimos habitantes. Reclamou também o reconhecimento dos direitos da Mãe Terra (Pachamama), que os povos nativos consideram sagrados e com os quais formam uma comunidade eco-humana. A melhor representação simbólica de sua consciência ecológica foi a Missa da Terra Sem Males.
Espiritualidade contra-hegemônica
Um missionário a serviço dos setores mais vulneráveis da sociedade, um místico solidário com os processos revolucionários, um contemplativo na libertação, um bispo em rebelião e insurreição evangélica, um pastor a serviço do povo.
Na esfera religiosa destacou-se como missionário a serviço dos setores mais vulneráveis da sociedade, místico solidário com os processos revolucionários, contemplativo na libertação, bispo em rebelião e insurreição evangélica, pastor a serviço do povo. Viveu uma espiritualidade contra-hegemônica e anti-imperial. “Cristianamente – afirma – a consigna é muito clara (e muito exigente) e foi o próprio Jesus de Nazaré quem nos encomendou…: contra a política opressiva de qualquer império, a política libertadora do Reino“. Aquele reino do Deus vivo, que pertence aos pobres e a todos aqueles que têm fome e sede de justiça. Contra a agenda do império, a agenda do Reino”. Casaldáliga pregou o Reino de Deus em luta contra o Império e criticou a Igreja “quando ela não coincide com o Reino”.
Pais e mães da Igreja Latinoamericana
Casaldáliga seguiu o caminho dos bispos que José Comblin chama “Pais da Igreja da América Latina”, que puseram em prática o Pacto das Catacumbas assinado por quarenta bispos na catacumba de São Domitilla em Roma, em novembro de 1965, durante a quarta sessão do Concílio Vaticano II, e ao qual aderiram mais de quinhentos depois. Eles optaram por uma Igreja pobre e dos pobres, denunciaram as ditaduras, foram perseguidos, colocaram suas vidas em risco e alguns foram assassinados e se tornaram mártires, como Monsenhor Romero, José Gerardi, Angelelli… Foram submetidos a processos judiciais, vigilância policial, investigações inquisitoriais pelas Congregações do Vaticano, sofreram condenações e até foram afastados de suas funções episcopais.
No final do livro me pergunto se houve e ainda há “Mães da Igreja Latinoamericana” e respondo afirmativamente, embora não sejam reconhecidas como tais. A falta de reconhecimento é a melhor prova da sobrevivência do patriarcado, mesmo na libertação do cristianismo.
“Minhas causas são mais importantes do que minha vida”
Pedro Casaldáliga afirmou repetidamente: “Minhas causas são mais importantes do que minha vida”. E assim foi. No livro dedico um extenso capítulo a essas causas, entre as quais destaco cinco que considero as mais importantes:
1) A causa das comunidades afrodescendentes, indígenas e camponesas, sujeitas ao colonialismo, ao racismo e ao capitalismo selvagem. Sua Missa da Terra Sem Males é a melhor expressão de sua solidariedade e identificação com os povos indígenas. Sua Missa dos Quilombos é o melhor reconhecimento da dignidade dos povos afro-descendentes submetidos à escravidão durante séculos e ainda hoje, da defesa de sua identidade cultural e religiosa e de seus territórios.
2) A causa das mulheres discriminadas por serem mulheres, por serem pobres, por pertencerem às classes populares, culturas nativas e grupos étnicos, desprezadas e submetidas à violência pelo patriarcado político e religioso até o feminicídio, e por praticarem espiritualidades e religiões que não correspondem às chamadas “grandes religiões”. Pedro assumiu a causa das mulheres camponesas, indígenas, negras e prostitutas, cuja marginalização social denunciou constantemente.
3) A causa da Terra, considerada sagrada pelas comunidades indígenas, sujeita de direitos e não venal.
4) A causa do diálogo interreligioso, intercultural e interétnico. Casaldáliga não impôs nunca a sua fé, nem afirmou que a religião cristã era a única religião verdadeira, mas respeitou e compartilhou as visões de mundo, espiritualidades e sabedoria das comunidades originais, dialogou com elas sem arrogância ou superioridade e sem estabelecer hierarquias, ao mesmo tempo em que reconheceu suas deidades.
5) A causa dos mártires, a começar pelo proto-mártir do cristianismo, Jesus de Nazaré, seguido pelo Padre João Bosco, assassinado em sua presença pela polícia, Monsenhor Romero, arcebispo profético de San Salvador, a quem declarou santo em seu memorável poema “São Romero da América, Nosso Pastor e Mártir”, e pelo martírio coletivo dos “índios crucificados”, sobre o qual escreveu um dramático e denunciante artigo no International Journal of Theology Concilium, em 1983.
Seus textos, apoiados pela autenticidade de sua vida, são, em minha opinião, a melhor resposta a esta guinada política da ultra-direita e constituem a base para a proposta de uma alternativa democrática radical.
Casaldáliga é um dos símbolos mais luminosos do cristianismo libertador em meio à ascensão dos movimentos religiosos fundamentalistas que estão mudando o mapa religioso e político da América Latina. Ele se tornou um farol iluminador na escuridão do presente e em meio à ascensão da extrema direita política em nível local e global, que está mudando o mapa político e é uma ameaça à democracia. Seus textos, apoiados pela autenticidade de sua vida, são, em minha opinião, a melhor resposta a esta guinada política ultra-direita e constituem a base para a proposta de uma alternativa de democracia radical, ou seja, participativa, de base e em todas as áreas: ética, política, econômica, social, trabalhista, cultural, educacional, ecológica, etc.
Ignacio Ellacuría disse: “Com Monsenhor Romero, Deus passou por El Salvador”. Atrevo-me a afirmar: “Com Pedro Casaldáliga, ‘o Deus de todos os nomes’ passou pelo Brasil”.
Texto de Juan José Tamayo, teólogo.
Fonte: Revista Ameríndia
Tradução e montagem: Raul Vico