Somos as Causas que assumimos, as que vivemos, pelas quais lutamos, e pelas quais estamos dispostos a morrer. Eu sou eu e minhas causas. Minha vida valerá o que valham minhas Causas. A América Latina é o Continente mais consciente de sua comunitária identidade. Pela sua unidade histórico-militante, de sangue e utopia, de morte e esperança, ela pode falar coletivamente de umas Causas próprias.
E essas Causas, enquanto latino-americanas e enquanto assumidas como desafio existencial e como processo político, levam consigo três constantes, tâo utópicas quanto necessárias, e complementares entre si:
a) a opção pelos pobres, opção pelo povo;
b) a libertação integral;
c) a solidariedade fraterna.
Quatro são as grandes Causas da Pátria Grande que esta Agenda privilegia, por julgá-las fundamentais no contexto social e espiritual desta sua “hora”.
1. As culturas raiz e testemunho
Perseguidas e até proibidas, marginalizadas e até massacradas. A cultura indígena, a cultura negra, a cultura mestiça, a cultura migrante. Cada uma delas com sua especificidade, mais ou menos conflitiva, segundo os tempos e as latitudes. Hoje, as quatro — esqueleto e carne, sangue e pele de Nossa América — vêem-se confrontadas por essa niveladora “cultura chegante”, que nega as identidades, proíbe a alteridade e subjuga neocolonizadoramente.
As quatro defendem sua autoctonia. E para sobreviver e, particularmente, para contribuir com sua originalidade, devem fazer aliança fraterna e se defender dos novos invasores, como uma só América plural. índia, negra, mestiça, migrante, que seja cada vez mais ela mesma, esta Nossa América singular.
2. O popular alternativo
O socialismo latino-americano, a democracia integral, a civilização da pobreza compartilhada mas militante, a luta pelos direitos humanos e pelas transformações sociais juntamente com a gratuidade e a festa.
Morto o “socialismo real”, viva o socialismo utópico! Viva a democracia popular! Que vá morrendo a democracia neoliberal que se considera a única saída para a sociedade humana e “fim da história”.
O popular, e por ser popular, “alternativo”, diferente do que nos é dado, contrário ao que nos é imposto, criativo diante do fatalismo rotineiro, é o programa mais realista e o desafio histórico mais eficaz para os Povos latino-americanos, para seus líderes e políticos, para seus partidos e sindicatos, para as Igrejas que queiram ser latino-americanamente cristãs e para esse novo sujeito emergente coletivo que é o Movimento Popular.
3. A Mulher
Ela, nem menos nem mais. Secularmente marginalizada em quase todas as culturas e também, é claro, nesta machista América Latina que, de fato, é mais Mátria do que Pátria Grande, Abia Yala, terra virgem mãe em constante fecundidade.
As mulheres, todas as mulheres, também as negras, e as índias também, e as pobres e as usadas e as submetidas, estão-se colocando em pé de consciência coletiva e organizada, e são, com muita freqüência, suporte e maioria nas diferentes esferas do movimento popular. E o serão cada vez mais. E não só na práxis mas também no pensamento, não só na militância, mas também na liderança. E os homens e a Sociedade e a Igreja haverão de reconhecer e respeitar e dialogar, porque já a mulher latino-americana se reconhece altivamente, exige o respeito da igualdade e dialoga à altura fraterna. Nem quer os privilégios tolos de certo feminismo primeiro-mundista, nem aceitará facilmente que a Sociedade ou a Igreja continuem declarando como dogma de fé a presença e a ação da mulher num segundo plano subordinado.
4. A ecologia integral
A comunhão harmoniosa com a Natureza, mãe e esposa, habitai e veículo. Uma ecologia contemplativa ao mesmo tempo que funcional. Sem as distâncias interessadas com que o Primeiro Mundo defende facilmente a ecologia distante…. Em intersolidariedade ecológica, dos diferentes Povos do Continente, dos Continentes entre si e até no cotidiano da vizinhança.
Herança ancestral dos povos indígenas que tão bem souberam amar c respeitar a Natureza, a América Latina pode e deve dar ao mundo esta lição atualíssima da ecologia integral. Não queremos a Terra como um museu intocável, nem aceitamos a técnica, a indústria, o mercado como a lei e o futuro onipotentes. O primeiro elemento essencial para nossa ecologia é o próprio ser humano, a espécie viva mais ameaçada de extinção pela ambição da própria espécie.
Nós mesmos queremos ser ecologia consciente, convivência pacífica, terra cultivada e utopia sonhada.
Se a América Latina é nossa Causa, estas grandes Causas da Pátria Grande haverão de ser, diariamente, nossas grandes Causas ao longo do ano de 1993, que segue o famoso 1992. A vivência entusiástica, a defesa militante, e a diária utopia dessas quatro grandes Causas nos possibilitarão viver outros 500 anos, mas muitos “outros”, quinhentos e milhares… E seremos amanhã o ontem mártir já florescido, “e seremos milhões”…
Assim, a partir de nossa alteridade assumida e respeitada, poderemos dar a contribuição específica que o único Mundo Humano, já sem Primeiro e sem Terceiro, espera de nós.
E essa convivência da América Latina com os outros Povos da Terra Humana irá parecendo cada vez mais com o Reino de Deus.
Sauidi, Axé, Shalom!
Texto de Pedro Casaldáliga, na Agenda Latinoamericana Mundial de 1993.