A Prelazia de São Félix do Araguaia foi criada aos 13 de maio de 1969 pela Bula Quo Commodius do Papa Paulo VI. Foi confiada pela Santa Sé aos cuidados da Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria (Claretianos). No primeiro momento, Pedro Casaldáliga foi nomeado Administrador Apostólico dessa nova “diocesi”, até que em 1971 foi consagrado Bispo.
Estas são algumas das chaves principais para conhecer essa igreja particular que se tornaria referência mundial da luta pela Justiça.
1. Do tamanho de um país
A Prelazia de São Félix do Araguaia ocupa uma área de quase 130.000Km2 dentro da Amazônia Legal, no nordeste do estado de Mato Grosso, na divisa com o Pará e o Tocantins. Está encravada entre os rios Araguaia e Xingu e lhe faz como espinha dorsal, de Sul a Norte, a Serra do Rocandor.
Se a região fosse um estado da Federação, seria o décimo oitavo em extensão, uma vez que possui uma área maior que estados como o Pernambuco ou Santa Catarina. O espaço ocupado pela Prelazia de São Félix do Araguaia tem uma superfície maior do que países como o Portugal ou a Guatemala inteiros.
Os deslocamentos habituais para a vida estão marcados por esta realidade de enormes distâncias e infraestruturas precárias: uma consulta ao médico, um agendamento no banco ou uma visita familiar são, muitas vezes, sinônimo de 4, 6, 8,…10 ou até 24 horas de ónibus.
Pedro Casaldáliga, que viajava quase sempre de ónibus por toda a região, sempre dizia que «no ónibus se perde tempo, mas se ganha gente».
2. Na área de encontro de dois dos biomas mais biodiversos do mundo
A região que ocupa a Prelazia de São Félix do Araguaia tem o privilégio de testemunhar a rica transição de biomas do Cerrado para a Amazônia, o que lhe confere uma diversidade de formas de vida vegetais e animais única, que se espalha desde as savanas do Cerrado até a densa floresta amazônica.
É em meio essas paisagens deslumbrantes e diversas que a Prelazia de São Félix do Araguaia se situa. O Rio Araguaia majestoso e sua fauna selvagem, as baixadas alagadas com seus buritis, as florestas imponentes que anunciam a proximidade da Amazônia, esta é a Região do Araguaia. Em meio à fartura da transição do Cerrado para a Amazônia, a região apresenta diversas espécies nativas de frutas, ervas e cipós e o gosto popular por elas. São sabores únicos como a cagaita, a bacaba e a mangaba, que marcam a vida das comunidades locais e são parte da cultura dos Povos Indígenas.
O modelo de desenvolvimento construído sobre a base do latifundio e alavancado pela concentração de renda nas mãos de poucos tem levado à rápida depredação ambiental. Estima-se que tenha se desmatado uma área maior que os estados de Alagoas ou Sergipe ou que países como o Haití ou a Bélgica inteiros.
Porém, essas paisagens naturais cada vez mais têm disputado espaço com nuvens de queimadas, pastos monótonos e imensas plantações de soja. De fato, o modelo produtivo dominante é caracterizado pelo uso extensivo da terra com pouca ocupação de mão-de-obra para uma produção pouco diversificada e de baixo valor agregado, voltada para o mercado externo à região.
3. Terra de migrantes e mistura cultural
Araguaia Xingu é uma região situada na “porta de entrada” da Amazônia. Localizada entre dois dos maiores rios do Brasil, que lhe dão o nome, o Araguaia e o Xingu.
No inicio, povos indígenas como os Karajá, os Tapirapé ou os Xavante viviam principalmente da riqueza natural que existia. O povoamento do “homem branco” se deu a partir da década de 50-60, com grupos de nordestinos e goianos que chegaram espontaneamente pela ilha do bananal. Eles vinham com os seus animais, seus bois, aproveitando aquela riqueza de pastagens naturais. Essa imensidão de mundo, do tamanho de um país, podia albergar a todos, índios e posseiros, de maneira pouco conflitiva. A natureza era farta e generosa.
O sertanejo é a vítima da ganância alheia, da inconsciência dos patrões, da exploração dos trêfegos políticos que na região aparecem de eleição em eleição (…). Esse infeliz, sobejo das pragas e das verminoses, vive na penumbra de um futuro incerto. Indiferentemente a tudo, eles vão ganhando o pão de cada dia, pois para eles só existem dois direitos: o de nascer e o de morrer.
Pedro Casaldáliga, 1971
A partir de 1950, porém, redefiniu-se a política de ocupação e colonização de Mato Grosso “visando a incorporação da fronteira agrícola da região à economia nacional” com a pretensão de absorver excedentes populacionais de outras regiões brasileiras como também ocupar terras através da colonização privada. Desta forma, o governo privilegiou a instalação de amplos latifúndios cujos proprietários eram, na maioria das vezes, empresários do Centro-Sul, convertendo o Mato Grosso no Estado que apresentou a maior concentração de projetos de colonização privada do Brasil.
As pessoas foram chegando daqui e dalí em busca de terra, de trabalho, de fartura, de vida. Os primeiros chegaram do Sul, depois de Goiás- Tocantins, Minas Gerais, de outras partes do Mato Grosso, do norte e nordeste, enfim, de todos os cantos. Atualmente, são cerca de 40 comunidades, sendo que a mais próxima dista 33 Km da sede do município (de Confresa) e a mais distante 110 Km.
Equipe Pastoral de Confresa.
Jornal Alvorada, Maio-Junho 2006.
A instalação dos latifúndios, os projetos de colonização e o crescimento dos serviços públicos atraíram pessoas de todas as regiões do Brasil que, aos poucos, foram ocupando a região. De fato, atualmente, convivem no Araguaia culturas muito diferentes como a dos gaúchos do sul, a dos nordestinos e, é claro, as diversas culturas de cada um dos Povos Indígenas do Araguaia.
4. Patrimônio Indígena
Entre os Rios Xingu e Araguaia moram 21 mil indígenas de 22 etnias diferentes em 16 Terras Indígenas.
No inicio, povos indígenas como os Karajá, os Tapirapé ou os Xavante viviam principalmente da riqueza natural que existia. O povoamento do “homem branco” se deu com grupos de nordestinos e goianos que chegaram espontaneamente pela Ilha do Bananal. Eles vinham com os seus animais, seus bois, aproveitando aquela riqueza de pastagens naturais. Essa imensidão de mundo, do tamanho de um país, podia albergar a todos, índios e posseiros, de maneira pouco conflitiva. A natureza era farta e generosa.
Há 500 anos que “o índio é aquele que deve morrer”. 500 anos proibidos para esses povos classificados com um genérico apelido, negadas as identidades, criminalizada a vida diferente e alternativa. 500 anos de sucessivos impérios invasores e de sucessivas oligarquias “herdeiras da secular dominação”. 500 anos sob a prepotência de uma civilização hegemônica, que vem massacrando os corpos com as armas e o trabalho escravo e as almas com um deus em exclusiva. Por economia de mercado, por política imperial, por religião imposta, por bulas e decretos e portarias pseudocivilizados e pseudocrístãos.
Pedro Casaldáliga
Apresentação do livro Povos Indígenas aqueles que devem viver: Manifesto contra os decretos de extermínio, do CIMI.
Desde meados do século XX, porém, a região do Araguaia foi sendo incorporada paulatinamente à dinâmica nacional: primeiro, através de uma migração espontânea de posseiros que atravessavam o Araguaia na procura de pastos, e depois, muito mais drasticamente, com a implementação de diversas “políticas de colonização” impulsionadas pelo Governo, que reconfiguraram definitivamente o perfil da região.
A Prelazia de São Félix do Araguaia teve um papel determinante para entendermos o indigenismo atual. Um caso paradigmático é a vida-missão das Irmãzinhas de Jesus que conviveram com o povo Tapi’itawa por mais de 50 anos sem qualquer tentativa de evangelização, de “conversão” e muito menos de integração e que possibilitou a sobrevivência desse povo no Araguaia.
Mas a ação local das irmazinhas e de tantos e tantas que dedicaram a sua vida à Causa Indígena teve uma dimensão nacional e internacional: seu compromisso, seu trabalho, a sua formação e a sua militância ativa estão no berço das políticas indigenistas modernas e das reivindicações indigenas que procuram a libertação.
5. “Não se esqueçam que aqui foi sangue”: Uma configuração social construída na luta
Na região da Prelazia de São Félix do Araguaia, os conflitos violentos e os maiores crimes ambientais envolvem sobretudo os povos indígenas e trabalhadores rurais, como são os recentes casos da Terra Indígena Marãiwatsédé, em Bom Jesus do Araguaia, ou a ocupação sistemática de áreas demarcadas e homologadas que se produz, por exemplo, na Terra Indígena Urubu Branco, entre Santa Terezinha, Porto Alegre do Norte e Confresa.
Ao mesmo tempo, a falta de políticas públicas realistas para apoiar a Agricultura Familiar (em uma região com 75 assentamentos) e a pressão do agronegócio dos grãos e do gado, condenam a maior parte das famílias do campo a uma economia de subsistência e à precariedade dos serviços mínimos essenciais: a saúde e a educação continuam sendo extremamente insuficientes.
Teodomiro Monteiros dos Santos morreu aqui, em São Félix, no dia 28 de julho (de 1970). Eu mesmo o enterrei. Veio da fazenda “Suiá-Missu”, num estado extremo de hepatite, já sem esperança nenhuma. Caso como tantos outros que deveria ter sido atendido muito antes e mandado para Goiânia ou Brasília.
Pedro Casaldáliga
Escravidão e feudalismo no norte do Mato Grosso. Setembro 1970
Por esse motivo, hoje, o termo ‘conflitos pela terra’ adquiriu um significado muito mais amplo. Ele se refere não apenas aos tradicionais embates, por vezes deveras violentos, entre campesinos e latifundiários, ou entre militantes sem-terra e forças repressoras do Estado que se deram na região do Araguaia nas décadas de 70 e 80.
Hoje, o conceito engloba também impasses demarcatórios de terras indígenas e deslocamentos populacionais em função de megaprojetos governamentais ou empresariais, como, por exemplo, construções de grandes usinas hidrelétricas ou a implementação de grandes fazendas ou plantações de soja que forçam o deslocamento das famílias.
As lutas e a violência explícita do passado, sem terem ainda terminado, tem dado passo à pobreza e a marginalização estrutural do presente.
Um rapaz de São Félix contava profundamente chocado a impressão de ver os peões, alguns deles casados, pais de família, chorando à beira do Araguaia, em Santa Terezinha, e pedindo por compaixão uma passagem nos barcos, para sair longe da Companhias…
Pedro Casaldáliga
Escravidão e feudalismo no norte do Mato Grosso. Setembro 1970
Nesse sentido, conhecer verdadeiramente a região onde atua a Prelazia de São Félix do Araguaia implica, também, estarmos cientes de que a realidade atual é decorrente da luta entre forças opostas: de um lado, os pequenos agricultores, posseiros e indígenas; de outro lado, fazendeiros, grileiros, jagunços e o próprio estado, que se tem posicionado sempre ao lado dos grupos dominantes.