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Recuperando a Amazônia

O sistema de reforestamento que dá certo

A região do Araguaia é uma área maior do que a Grécia ou Portugal situada no Estado do Mato Grosso, na Amazônia brasileira. Esta enorme extensão de terra corresponde à Prelazia [Diocese] de São Félix do Araguaia, da qual foi bispo Dom Pedro Casaldáliga.

Está na transição entre dois dos biomas mais importantes do mundo: a Amazônia e o Cerrado. Além destes biomas, tem varjões alagados, com vegetações únicas no mundo como os murundus que ficam qualhados de muricis depois que as águas secam. Tem Cerrado baixo, onde ficam os nascedouros das águas e de peixes e tem Cerrado alto que vai se misturando com a mata. Essa imensa riqueza se traduz na palavra diversidade e, nisso, o Brasil é o país mais rico do mundo.

Mapa de região da Prelazia de São Félix do Araguaia

É nessa diversidade que anualmente em torno de 270 pessoas de assentamentos rurais moram no campo aplicando uma forma de vida que tem se mostrado altamente eficaz na luta contra o desmatamento, na mitigação dos impactos das mudanças climáticas, na resistência frente à agroindústria e em prol da Soberania Alimentar das famílias do Araguaia: o sistema “Casadão”.

Sob o lema Natureza beleza, alimento na mesa e alegria no coração, famílias de agricultores e agricultoras dos assentamentos Dom Pedro, Mãe Maria, Casulo I e II e Bordolândia, estão construindo, promovendo e implementando uma nova forma de plantio, de produção, de consumo, de relações e de vida na terra.

Fruto do trabalho coletivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Associação Terra Viva (ATV) por mais de 20 anos, as famílias do campo, as organizações sociais e os movimentos populares do Araguaia têm ido construindo coletivamente um sistema, por nome “Casadão”, que está sendo capaz de:

 

1. Garantir a alimentação de qualidade das famílias, com fruta, produtos da roça e pequenos animais.

2. Recuperar a biodiversidade das áreas de assentamento que tinham sido desmatadas devido à implementação do modelo capitalista do gado;

3. Preservar e recuperar os córregos, mananciais e rios que abastecem as comunidades;

4. Dispor de um excedente de produção para vender nos mercados e feiras locais e obter renda de seu trabalho no campo;

5. Trabalhar em condições de saúde melhores, na sombra, sem ter que percorrer grandes distâncias;

6. Construir comunidade e uma identidade comum entorno à ideia da agroecologia.

Um sistema de plantio inovador

 

 

Tecnicamente falando, o Casadão é um sistema de plantio consorciado (ou seja, que mistura muitas espécies), estratificado (com várias camadas) e com um componente arbóreo.

Ou seja, ele é diversificado horizontalmente e verticalmente e conta não só com uma diversidade de espécies como uma diversidade de tipos de plantas, como cultivos anuais, perenes, árvores, arbustos, ervas e até cipós.

No Casadão, valorizam-se os processos naturais e ecológicos, conduzindo o sistema de produção como em um processo de regeneração natural.

Para mim, o Casadão é como uma festa. Eu acho que é porque o Casadão a gente tem umas árvores mais velhas, outras mais novas, e assim é o Casadão. É igual festa, festa é uma mistura de gente. Então, o Casadão é como se fosse uma festa, tem árvore de todo lado, de todo tipo.

João Botelho

Agricultor, Assentamento Manah

Adotar esse sistema que chamamos de “Casadão” e que envolve o plantio, em uma mesma área, de muitas espécies de plantas (ciclo curto, médio e longo prazo) juntas, representa uma diferença substancial em relação aos métodos “convencionais” e foi concebido considerando elementos específicos da realidade: solo pobre (o plantio de espécies de vários ciclos permite a adubação verde), elevado grau de erosão (que impede, por exemplo, as plantações em linha), a escassez de água (o adensamento de culturas permite uma maior conservação da umidade), isolamento das famílias (o autoconsumo é essencial para elas), etc.

O Casadão é um sistema vivo e, portanto, está sempre sendo construído e evolui junto com os processos ambientais, económicos, sociais e políticos das comunidades que o implementam.

A evolução do mesmo se produz através da experiência/vivência do dia-a-dia do campo e do acompanhamento que a Associação de Educação e Assistência Social Nossa Senhora da Assunção (ANSA) oferece às famílias dos assentamentos.

Fruto desse diálogo vai se construindo um conhecimento coletivo que se completa nos encontros, nas reuniões e nas formações que a ANSA promove periodicamente nos assentamentos.

Por isso por exemplo, no último ano, a crise da COVID19 tem feito que algumas comunidades tenham priorizado a incorporação de mais espécies de “roça” como mandioca, feijão, milho, abobora, etc, destinadas principalmente à alimentação das famílias, com o objetivo de se manter na terra, evitar deslocamentos desnecessários e garantir a alimentação.

Uma forma de vida alternativa

 

Adotar ou praticar o sistema Casadão não se limita, portanto, ao uso de técnicas agrícolas “diferentes”, mas, de uma forma abrangente, considerando a multiplicidade de aspectos que influenciam a situação dos assentamentos e comunidades rurais, tenta construir coletivamente formas de vida socialmente justas, ambientalmente sustentáveis, economicamente viáveis e “relacionalmente” solidárias. Formar parte dos grupos “casadão” implica estar atento e atenta a esses princípios fundamentais.

No campo, plantar em uma terra degradada devido a erosão e a ação do sol significa iniciar um processo de recuperação dos nutrientes; fazer um plantio de diversas espécies implica cuidar carinhosamente das sementes e das mudas; preparar a terra com as mãos e uma enxada e garantir a água. Depois, zelar, cuidar, controlar as pragas e repor as plantas que morrem no processo.

Chegando a hora de colher as primeiras culturas, de 8 a 12 meses depois, é necessário garantir armazenamento para alguns produtos e, para outros, levar eles para a feira e tentar vender. Ao mesmo tempo, as culturas de ciclo médio e longo precisam continuar a serem cuidadas, repostas quando necessário.

Herdando a visão de Pedro Casaldáliga, o Casadão parte da ideia de uma ecologia entendida não apenas como “um processo técnico para o gerenciamento de recursos naturais escassos”, mas como “uma arte, (…) um novo paradigma, isto é, (…) como uma nova forma de relação com a terra, com a natureza, com os processos de produção ou formas de distribuição[1]

 

[1] Leonardo Boff. Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. 2004.

Ao mesmo tempo, o Casadão envolve também uma nova forma de se relacionar, com “alegria no coração” e por isso, o isolamento em que vivem algumas famílias nos assentamentos é quebrado organizando reuniões, intercâmbios, momentos de confraternização ou formações nas quais se partilham as dificuldades, os sonhos e as esperanças.

Porém, aos poucos, o ciclo da natureza se completa, as relações se estreitam e o conhecimento coletivo, forjado na natureza e partilhado igualitariamente, impulsiona a energia da terra e das comunidades.

Uma ação política

 

O Araguaia Xingu é uma região situada na “porta de entrada” da Amazônia. Localizada entre dois dos maiores rios do Brasil, que lhe dão o nome: o Araguaia e o Xingu e na transição entre dois dos mais ricos biomas do Mundo: o Cerrado e a Amazônia.

Inicialmente, a região era povoada por índios de várias etnias: Karajá, Xavante, Tapirapé, Kayapó, etc. Porém, desde meados do século XX, a região foi sendo incorporada paulatinamente à dinâmica nacional: primeiro, através de uma emigração espontânea de posseiros que atravessavam o Araguaia na procura de pastos, e depois, muito mais drasticamente, com a implementação de diversas “políticas de colonização” impulsionadas pelo Governo, que reconfiguraram definitivamente o perfil da região.

No início, a base econômica da região era agroextrativista na qual os primeiros nordestinos e goianos que chegaram espontaneamente pela ilha do bananal, vinham com os seus animais, seus bois, aproveitando aquela riqueza de pastagens naturais e faziam suas roças de toco, com a mesma tecnologia que os índios usavam: o fogo. Essa imensidão de mundo, do tamanho de um país, podia albergar a todos, índios e posseiros, de maneira pouco conflitiva. A natureza era farta e generosa.

No campo, o modelo produtivo é caracterizado pelo uso extensivo da terra com pouca ocupação de mão de obra para uma produção pouco diversificada e de baixo valor agregado, voltada para o mercado externo à região.

Pedro Casaldáliga

1971

No entanto, a partir da década de 60, o latifúndio passou a ser a célula estrutural do novo modelo de ocupação. Implantado com o apoio de isenções fiscais, subsídios e facilidades na hora de obtenção dos títulos de propriedade, os grandes proprietários ligados ao poder militar da época, estabeleceram grandes fazendas para a criação de gado. A política implementada chegou sustentada pela mentira do vazio populacional, “terra sem gente para gente sem terra” e da conspiração internacional sobre a Amazônia, “integrar para não entregar”.

Na segunda metade do século vinte, a região foi testemunha desse parto traumático da modernidade: vários mundos contraditórios envolvidos na disputa de terras em uma miríade de conflitos esquecidos deram como resultado a morte de milhares de pessoas e a destruição de maior parte da diversidade natural da região. Índios, posseiros, boias frias, colonos, fazendeiros criaram uma torre de babel, como tantas, às portas da Amazônia. Um diálogo impossível em um tempo em que o estado ditatorial apoiava fortemente os interesses econômicos das elites e cujas consequências se alastram até os dias de hoje.

Neste cenário regional, marcado por uma história de conflitos pela terra; de violência contra os Povos Indígenas e contra as famílias do campo; de implementação de um modelo económico baseado na monocultura do gado e recentemente da soja; de falta de presencia do estado; do desmatamento de mais de 80% da vegetação original, etc., como explica o militante Valdo da Silva:

O Casadão vá em direção contrária o sistema imposto pelo capitalismo. Não é um sistema de arranjo ou a busca por resultados econômicos, nós buscamos um novo jeito de viver. É tirar o sustento da terra e conviver com ela e com todos os seres vivos de modo harmônico

Valdo da Silva

Agricultor e militante

Essa nova forma de se posicionar na realidade, de “assumir, carregar e se encarregar da realidade”[1] implica optar por uma visão e uma práxis diferente daquela que vem imposta pelo grande capital e promovida pelo governo e significa também, nesse sentido, um ato de resistência dos camponeses e camponesas que, além de assumirem o desafio de recuperar seu entorno natural danificado e lutarem para alimentar as suas famílias com dignidade, estão sendo capazes de construir formas de vida alternativas que, profeticamente, mostram que, apesar de “ser tarde”, ainda “é a nossa hora”.

 

[1] Jon Sobrino: “Hacerse cargo, cargar y encargarse de la realidad”

Resultados esperançadores

 

Nos últimos 5 anos, 208 famílias agricultoras trabalharam com o sistema Casadão, conseguindo plantar e reflorestar áreas que tinham sido degradadas, assim como participar das reuniões, momentos de partilha ou capacitações que a ANSA e seus parceiros promoveram. As comunidades envolvidas foram os Assentamentos Dom Pedro, Mãe Maria, Casulo Vida Nova I e Casulo Vida Nova II e, em menor medida, o Assentamento Bordolândia.

Famílias que participam no projeto de reflorestamento

A cada ano, antes do início da temporada das chuvas (que vai de outubro a abril) é feito o planejamento das áreas que as famílias se dispõem a utilizar para seus plantios. Através de reuniões, encontros e visitas técnicas às áreas das famílias envolvidas são definidos os critérios dos plantios, os apoios que a ANSA vai dar às famílias, os tempos dos plantios, as espécies mais adequadas para cada área, etc.

Para isso, são considerados os interesses e as possibilidades de cada família, lançando mão de diferentes espécies, desenhos e técnicas de plantio para fazer o reflorestamento. São usadas mudas de árvores nativas consorciadas com o plantio direto diversificado de sementes.

Numericamente falando, ao longo dos últimos 5 anos, a adoção do sistema Casadão tem permitido iniciar o processo de recuperação de 449 hectares de áreas que estavam degradadas e que tinham perdido toda a sua vegetação como consequência da adoção do “modelo do fazendeiro” que considera a natureza como um impedimento ao “desenvolvimento”

Como explicado, o Casadão é muito mais do que uma técnica de plantio mas, mesmo assim, tem um objetivo claro de melhorar a alimentação das famílias do campo e de reflorestar áreas de assentamento que tinham sido queimadas ou degradadas.

Nos últimos 5 anos foram plantadas 10.937 árvores de 39 espécies diferentes e mais de 2.000 Kg de sementes foram utilizadas para enriquecer os plantios em 449 hectares de terras da Amazônia e do Cerrado.

Ana Lúcia Silva Sousa

Coordenadora do Projeto SócioAmbiental, ANSA

Por esses motivos, o sistema Casadão se consolida como uma forma de resistência camponesa; de luta concreta frente à emergência climática; de prova de que existe uma outra forma de produzir, consumir e viver no campo; que consegue resultados concretos e mensuráveis através da geração de conhecimento coletivo e da união entre famílias, organizações, movimentos populares e igrejas da libertação.

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